26 dezembro, 2012

notinhas aguçadas

* estava lavando a louça: esponja, espuma, água. mas na hora de colocar a travessa no escorredor, emborcada para baixo para secar bem direitinho, as costas da mão esbarraram na faca já lavada, a pontinha fina talhando um agora-machucado, uma amanhã-cicatriz.

* acabei de ler "o ano do pensamento mágico", da joan didion e estou lendo "noites azuis". tem angústia, tem desconcerto em todas as linhas. tem também uma certa melancolia em relação à palavra e à literatura - só os poemas e os livros sobre luto não são suficientes: também é necessário recorrer a estudos, a relatos científicos: tão abandonados estamos nessa experiência que a companhia possível está em nossa condição comum de mamíferos racionais, nunca em nossa condição humana. os que doem de saudade e incompreensão pela morte de alguém amado reintroduzem a própria morte no cotidiano; melhor se doerem privadamente.

* no meio da missa (na verdade quase no fim, naquela hora da consagração da hóstia, em que todos se ajoelham e um ar de respeito e adoração dá corpo à igreja), há um momento de recordar os mortos. eu gostava muito, dessa hora reservada em que lembramos dos que já foram. nas últimas vezes em que fui à missa, me espantava ver a lista crescendo, atropelando os tempos do rito: eu começava a pensar nos meus mortos e nunca terminava antes que o padre continuasse, após a breve pausa. da família para os amigos menos próximos; dos mortos mais antigos aos mais recentes; dos mais recentes aos mais antigos; dos mais queridos, aos mais distantes no afeto... não importava a ordem. nunca era suficiente.

* em cima da máquina de costura, à espera de um tempinho ou das férias - o que vier primeiro - a fronha cor-de-rosa com bordados brancos precisando de conserto. o algodão de trama ainda apertada. foi do enxoval da minha mãe, bordada pela minha bisavó em portugal. a bisavó que não conheci a não ser por fotos e nas brechas de relatos do meu avô, da minha avó, da minha mãe. a bisavó que analisou que minha avó seria uma boa esposa por lavar a louça rápido e sem deixar manchas de gordura. a bisavó portuguesa, de roupa escura, pastoreando as cabras. a personagem na paisagem da infância do meu avó, nas poucas fotos já amarelecidas e no meu imaginário sobre os camponeses nessa beirada da europa. o trabalho da minha bisavó materializado em seu bordado, nas costuras da fronha que tantos anos demoraram a vacilar. hoje, finalmente, passo nova costura na fronha cor-de-rosa com bordados brancos. não fica discreto - a engenharia delicada que permite as costuras invisíveis me escapa. a fronha agora cicatrizada, as distâncias descosturadas reunidas. brasil-portugal, três gerações mais tarde. a agulha correndo certa pelos minúsculos furinhos que um dia outra máquina perfurou.

05 dezembro, 2012

amor doidinho

Vai daí que o Edu um dia me mandou um vídeo da Clarice Falcão chamado "Macaé": eu assisti, ouvi, morri de rir porque é fofo e divertidíssimo ao mesmo tempo.
Depois disso, fui ouvir "Monomania", que é musiquinha delícia e gruda no cérebro que nem chiclete... 
Mas essa semana descobri "Uma canção sobre o amor, ah o amor..." e é simplesmente a melhor música ever. Vamos combinar: "brincar de sério no necrotério" é pura poesia :-) Então, Clarice Falcão pra gente começar a encerrar o ano com alegria e leveza!



19 outubro, 2012

Biscoito

ele é pequenino, só sete quilos. onze meses. está com a gente há menos de quinze dias. era medroso, se encolhia na calçada ao ouvir um carro ou outro cachorro. mas agora é um pouco menos. é valente quando se trata de espantar a assustadora máquina de lavar roupas ou o tenebroso aspirador de pó. dorme de barriga pra cima de modo a dar sentido à palavra "abandono". puxa os panos da casa pra sua cestinha, sem se importar com nada nem ninguém. bebe muita água. faz muito xixi. quando leva bronca, corre pra caminha, deita e esconde os olhinhos com as patinhas brancas. ele é grisalho, mesmo sendo criança. de roupa azul, é o vira-lata mais lindo desse mundo. a gente se escolheu e eu não consigo mais imaginar um dia-a-dia sem ele. suas patinhas pela casa fazem a palavra "companhia" ser feita de som. faz uns dez dias que entendi a clarice ainda melhor: bem poucas coisas valem mais que um cachorro vivo.

18 outubro, 2012

em loop

Bon Iver. Em loop, para amansar as violências de estar vivo.


17 outubro, 2012

três receitas vegetarianas - festa



Depois de tantos anos de idas e vindas, de distâncias e aproximações tateantes, finalmente chegaram ali. Aqui, melhor dizendo: aqui nessa cidade, nesse bairro, nessa casa. Aqui, um frente ao outro.
Os quarenta anos derretidos em vinte, feito o alho-poró que começava a fritar no azeite e espalhava um cheiro bom de tempero e mato pela cozinha. “Mas você já fez essa receita antes?” ele desconfiou, com medo que o trabalho fosse maior que o esperado. “Nunca fiz, mas já comi”. “E adianta, saber o final?”. “Bom, é mais fácil que não ter menor ideia de como as coisas devem parecer...”, sorriu, pensando agora não no sabor do prato mas nos casamentos anteriores – o dele, o dela. Ele, porém, falando só da comida.
Taça de vinho na mão, ele estava em pé ao lado dela, rodeando a bancada onde descansavam a couve-flor, a vagem cortada grosseiramente, o pimentão amarelo e os palmitos de pupunha, luas cheias naquele céu de picadinhos. Entre o morno que emanava do fogão e a respiração dele, também morna, sentia-se amparada: naqueles parênteses de quentura e aconchego cabia um infinito.
“O pimentão não devia ser verde ou vermelho? Amarelo na paella vai ficar apagadinho...”, ele palpitou. Ela sorriu antes dizer “pode até ser, mas pimentões verdes e vermelhos não me fazem bem, são fortes demais, só consigo comer se tirar a casca, aferventar... até gosto, mas nessa altura da vida, só quero o que me vai bem”. De novo, não sabia bem se estava falando da comida ou daquela novidade de tê-lo ao lado todos os dias e noites, nos dias úteis e finais de semana, na rotina e nas férias. Sentiu-se de um só golpe sábia e velha – a recusar a festa completa por pura preguiça.
“Já tem as vagens e as ervilhas: acho que não atrapalha a paleta de cores...”, desconversou, jogando os legumes, as ervilhas frescas e o pimentão na panela. E a cozinha ficou inteira perfumada de intensidades. Enquanto isso, pegou os tomates já lavados, pelados e sem sementes e os passou pelo processador. Também pegou a água fervente da chaleira elétrica e jogou na pequenina caçarola, sobre o caldo de legumes congelado.
Cutucou a couve-flor e a vagem, a ver se já estavam macias, mas ainda não. As coisas têm seu próprio tempo, não adianta a nossa vontade. “Minha avó sempre vinha com um o apressado come quente e cru quando a gente circundava a panela com nossa gula”, contou. “A minha também falava algo como isso. Os adultos, desde sempre a tentar domar nossas voragens”, ele filosofou, servindo-se de mais um pouco de vinho.
Jogou finalmente as grandes rodelas de pupunha, não sem antes quebrar uma no meio e dividir com ele – espécie de comunhão. Mal acreditando no coração disparado no simples gesto, na ternura borbulhando perigosa feito a fervura do caldo de legumes enquanto passava a mão no rosto recém-barbeado. Quarenta anos e a meninice recém-descoberta.
Virou-se ligeira, numa desconversa de corpos, e jogou o caldo sobre os legumes. Também um bocadinho de sal, um bocadinho de pimenta. Cuidadosa, abriu no centro um espaço para mais azeite, o alho bem picadinho a dourar. Então a páprica, o tomate, o açafrão. A colorir o já colorido, reforçando tons, descobrindo matizes. Inaugurando o novo no familiar.
“Paella é uma comida tão simples e tão elaborada, né?”, ele mapeou o caminho de seus pensamentos enquanto ela colocava o arroz na panela. E era mesmo: arroz, legumes, grãos. Mas os cheiros e cores, tão diversos do nosso tododia, a prometer ocasião especial. Ela jogou ainda um raminho de alecrim fresco e colocaram-se a esperar, a conversa cheia de pausas e silêncios, cuidadosa como o cozinheiro diante da receita nova.
Meia hora depois, o limão siciliano ainda com a casca amarela a espalhar seus gomos por entre a panela. “Era esse o prato que você imaginava?”, ele perguntou. “É um pouco diferente”, confessou diante daquela imensidão de amarelo pontuada de verde e branco. Sentaram-se à mesa, experimentando em pequenas garfadas. “É um pouco diferente”, ela disse de novo, “mas ainda assim bom”.
Aqui, agora mesmo – o pequeno rito a prometer um para sempre.

12 outubro, 2012

três receitas vegetarianas - veludo

para Veronika

Era nas tardes de domingo, aquelas tardes quentes e densas, o céu azul sem nuvens esticando sobre o tempo sua colcha de infinito. Era nessas tardes de domingo que doía mais. Doía tanto e tão fundo que às vezes era difícil caminhar. Mais um domingo em que acordava sem ele, que descia as escadas sem ele, em que era ela mesma a colocar na cafeteira o filtro, o pó, a água. E ele fazia falta em cada brecha entre os gestos, de modo que ao final de meia hora estava já exausta.
No quintal, o cachorro dormindo atento, fazendo menção de se aproximar ao mínimo sinal de atenção. Já o filho, desde sempre silencioso, sem vontade alguma de chegar perto. Pra ele também doía, ainda que ele cerrasse o queixo bem forte e represasse a enxurrada de lágrimas no fundo da pupila negra.
Naquele domingo, enquanto ela acabava de lavar a louça do café, o filho veio espiar a geladeira apesar da falta de vontade de comer. Abriu, fechou. Olhou na fruteira, voltou a abrir a geladeira. Inquieto. Até que comentou “mas pra que tanta maçã?”.
Surpresa, veio de luvas e espuma nas mãos verificar. Contou três sacos de maçã, de diferentes feiras. Talvez um deles ainda tivesse sido comprado por ele, pensou e doeu entre a constatação e a decisão. Deixadas ali, iriam estragar. Que agora eram dois, só os dois, a comer as frutas no café da manhã ou depois do almoço.
 “Acho que vou fazer uma torta de maçã”, finalmente pensou em voz alta, e o rosto do filho se iluminou em vontade. “Posso ajudar?”, ele perguntou e ela aceitou, oferecendo a ele uma cadeira para que a tarefa de lavar com cuidado as maçãs ficasse mais fácil.
Tirou a manteiga da geladeira, viu se tinha iogurte natural... Pegou a cerâmica branca e foi colocando, sem medir. Primeiro pouco mais de meio tablete de manteiga, que foi cortando em cubos e fatias. Depois o mesmo tanto de farinha, que resolveu peneirar para que o ponto ficasse mais fácil – foi então que se deu conta, sem pensar, que estava a desejar um domingo sem coágulos. Pôs as mãos na tigela e começou a misturar.
Na bancada, o filho esfregava as maçãs para depois secá-las, caprichoso.
Ainda na tigela, colocou uma colher de sopa iogurte natural e uma colher de chá de fermento químico. E então passou a contar as dez colheres de água. Uma, duas, três, quatro... sempre perdia a conta. Continuou a misturar a massa, sentindo o gelado do iogurte indeciso em se dissipar. Já nem se distinguiam mais os ingredientes, mas a ponta dos dedos sabia que ele estava ali, sem se decompor. Feito memória que mina água mansa nas brechas da vida a continuar.
O filhou acabou de lavar as maçãs e se cansou da ajuda. Foi para a sala, assistir tv.
Ela ficou ali, esticando a massa, colocando farinha, no esforço de esticar sem esgarçar a massa. Doía um pouco menos ver-se outra: massa fina e podre a procurar as bordas sem se rasgar. Não era mais ela mesma a se alongar cotidianamente, a tentar cobrir o buraco que ele deixou. Era só a massa, a massa de uma inesperada torta de maçã.
Abriu o armário para buscar o leite condensado. Pôs sobre o fogão a caçarola, a colher de pau atravessada, e a lata de leite condensado a escorrer. Pensou em chamar o filho, para ver se ele queria raspar o fundo, mas lembrou de um corte na mão e desistiu. Na geladeira, pegou o leite e os ovos. Uma lata de leite. Duas gemas, para o creme ter cor. Duas colheres de sopa de maisena. Mexeu bem antes de ligar o fogo – não queria nada empelotando, só a maciez do creme. “Creme veludo”, dizia a receita da avó. Sim, era de um pouco de veludo que precisava. O veludo da companhia dele, da quentura da sua presença macia. Mas tinha que se contentar com o doce na caçarola.
Mexeu bastante, até engrossar. Enquanto o creme esfriava, pôs-se a cortar as maçãs em meia-lua: tirou as sementes, cortou as fatias finas, jogou algumas gotas de limão para atrasar a oxidação.
O filho apareceu para roubar umas fatias, mas não se interessou em ficar. “já vai ficar pronto?”, mas a resposta negativa o levou de volta à sala, dessa vez para um desenho colorido.
Assou a massa até dourar. E quando o creme estava frio, colocou as duas gotas de baunilha e a lata de creme de leite, sem soro. Misturou bem, regozijando-se na textura lisa e amarelada. Na panela, a vida era macia e sem tumores.
Suspirou demoradamente antes de pegar a travessa com a massa e despejar, pão-duro em punho, o creme amarelado até quase as beiradas. Por cima, arranjou delicada as fatias finas de maçã, concêntricas. E só então se lembrou da cobertura, então correu para espremer duas laranjas e leva-las ao fogo com duas colheres de maisena. Ufa! Caldo engrossado, despejou-o sobre a torta, as meias-luas eclipsadas de laranja, já começando a cozinhar antes mesmo de entrar no forno.
Quantos anos não fazia aquela torta. Nos vinte anos que viveram juntos, nunca. Não era nem o trabalho, mas o medo de errar o ponto do creme, de servir as maçãs dançando soltas no branco aguado. Hoje, porém, o creme no ponto em poucos minutos. Agora, porém, o arrependimento até pelos erros não cometidos.
Depois do jantar – o dia chegando ao fim e a ilusão de eternidade dos domingos a se romper – ela e o filho inaugurando a torta. Meio a medo, o filho afirma “dessa torta o papai ia gostar”. O peito encharcado transbordando no olho enquanto corta o segundo pedaço. “Ele ia, não é?”. A torta derretendo na boca feito a vida no correr tempo.

04 outubro, 2012

seguro

não vai doer? vai passar? vai durar? não vai quebrar? você me garante? eu vou gostar? não vou me arrepender? não sei porque a gente insiste em querer garantia, a comum ou a estendida. se quando decide, já pulou da plataforma, já se encontra em pleno ar. adianta nada essa precaução depois que se decidiu. decidir revolve a gente, às vezes abre espaço, outras, um buraco. faz escorrer, vezemquando mel, vezemquando sangue. essa coisa que é viver a despeito de toda ilusão de seguro.

16 setembro, 2012

instantâneo

entre a piscina tépida e a quentura produzida no ir e vir ininterrupto, um respiro mais demorado aquece a garganta e sabe à rouquidão do desejo.

14 setembro, 2012

enamorada

Estou apaixonada pela literatura do Alejandro Zambra. Apaixonada por sua forma de arranjar as palavras, de contar histórias ao mesmo tempo em que fala sobre o próprio ato de escrever. Por sua literatura que é de primeira linha mesmo quando fala de personagens comuns, metidos em situações ordinárias, premidos por preocupações de tododia. Pela precisão com que fala de experiências que, de certo modo, também me tocam a mim: a mim que escrevo; a mim que vivo; a mim que sou latinoamericana e tenho trinta e tantos anos. Estou apaixonada por sua simplicidade. E por seu refinamento. Pelos ritmos que sua literatura inscreve nos meus pensamentos. Por ele ter me apresentado a palavra "jabalina", fazendo-a cruzar o céu da página e o céu da boca, na pronúncia em se tateiam os significados. Por ele ter me ensinado a espionar as conversas das árvores, quando acham que ninguém está ouvindo. Por me levar pela mão até o ponto do ônibus donde se embarca em direção ao passado, que ainda não passou. Apaixonada. Encantada. Enamorada.
(coisa boa que é ter um bom autor por companhia).

11 agosto, 2012

fofurices

Norah Jones, cantando o "bolo" que levou da letra y. :-)


27 julho, 2012

encontro

Ontem, por acaso, encontrei um livro de Shaun Tan. Que virou meu presente de aniversário antecipado, tão encantada fiquei com as histórias e as ilustrações.

E então, hoje, descobri esta animação, bem agridoce. Pra gente já ir enchendo a dispensa com provisões para enfrentar agosto.

20 julho, 2012

escribir

"Le conté sobre la novela nueva. Le dije que al comienzo avanzaba a pulso seguro, pero que de a poco había perdido el ritmo o la precisión. Por qué no la escribes de una vez, me aconsejó, como si no me conociera, como si no hubiera estado conmigo a lo largo de tantas noches de escritura. No lo sé, le respondí. Y en verdad no lo sé.
Lo que pasa, Eme, pienso ahora, un poquito borracho, es que espero una voz. Una voz que no es la mía. Una voz antigua, novelesca, firme.
O es que me gusta estar en el libro. Es que prefiro escribir a haber escrito. Prefiro permanecer, habitar ese tiempo, convivir con esos años, perseguir largamente imágenes esquivas e repasarlas con cuidado. Verlas mal, pero verlas. Quedarme ahí, mirando" (Alejandro Zambra. Formas de volver a casa. Barcelona: Anagrama, 2011: p.55).

13 julho, 2012

o gosto do cloro*

Nas minhas lembranças de criança, as infinitas tardes passadas na piscina, do clube ou do prédio. Entre amigos, brincadeiras e conversas, no final do dia todas as luzes cintilando arco-íris - os olhos vermelhos, o corpo tostado e exausto. Era bom.
Quando fazíamos aulas de natação, era diferente. A escola imensa, várias piscinas. O fim de tarde raspando a noite, e a gente ali, a obedecer as instruções: não me lembro de nenhuma-nenhuma-nenhuma. A memória de tudo isso só nos músculos. O que lembro é só do gosto da sopa de caneca, pra esquentar a parada abrupta e o vento tomado no trajeto do portão até o apartamento. Depois de nadar e esquentar e esfriar, esquentar de novo. Bom.
Uma vez, numas férias, a menininha bem pequena descobria a própria respiração. Extasiada, chamava insistente a mãe para ver as bolhas mágicas debaixo d'água. A mãe nem-te-ligo, distraída na conversa. E todo aquele espetáculo submerso se desvelando sob os olhos da filha. Tão bom.
Quando voltei a nadar, foi mais por necessidade que por vontade - as costas fracas sucumbindo ao próprio peso, doendo dores intensas, que nem as agulhas do acupunturista conseguiam dar jeito. A água a me salvar do sangue fervendo poças em torno da agulha. Eu chegava cedo, 6h30 da manhã, e me lançava na água, ainda adormecida. Era bom aquele silêncio de braçadas, vai-e-vem, de luz suavizada pelo verde dos óculos... o corpo aprendendo a deslizar, mobilizando forças para vencer a voragem do afogamento. Muito bom.
Ultimamente, nadar é me enfrentar comigo mesma. Meu corpo que envelhece. Minha memória falha, que confunde as instruções do professor em meio à série de exercícios. Meu joelho dolorido. Minhas dificuldades em reunir as pequenas correções de cada aula em um novo movimento, bonito e confortável. É me sentir aprendendo - de novo ou finalmente - com a fluidez da água. É me sentir pedra, dura e pesada. É me sentir plena de ar: suave, leve. Sim, é bom.

* título da delicadíssima graphic novel de Bastien Vivès (São Paulo: LeYa/Barba Negra, 2012).

08 julho, 2012

bonsai

"Escrever é como cuidar de um bonsai, pensei então, e penso agora: escrever é podar os ramos até tornar visível uma forma que já estava ali, escondida; escrever é cercar com arame a linguagem para que as palavras digam, de uma vez, o que queremos dizer; escrever é ler um texto não escrito, tal como observa Marcelo Pellegrini em um poema que naquele tempo constituía, para mim, uma inquietante música de fundo: Para ler o que quero ler / Teria que escrevê-lo / Mas não sei escrevê-lo / Ninguém sabe escrevê-lo." (Alejandro Zambra, em texto traduzido aqui).

06 julho, 2012

volta e meia

 o mundo gira e eu volto a esse poema.

Teoria do Mundo (Marcos Visnadi)

O mundo acaba a cada
vez: que alguém morre ou se
estraçalha uma bala de
fuzil num corpo
inerme, ou a conta não
é paga e te expulsam ou
te prendem. O mundo acaba
várias vezes.

Se uma árvore cai no
meio da floresta e ninguém
ouve faz barulho? Ela é menos
árvore?

Depois, esquilos saltam
do tronco o mundo renasce:
na matéria decomposta, nos novos
rumos da carne. Em quem encontra
a árvore morta e
chora, diz "Ai
esta árvore".

Ai esta Terra. Que
gira e deixa a gente
tonto. Chacoalha de si
tantos tipos de árvores.

Às vezes,
chacoalha também
algum tipo de monstro.

A gente gira junto.
Não podemos fazer de outro modo.
De girar e girar, de repente é que
a gente se encontra. E o mundo,
que tinha acabado,
reabre suas comportas.

A manhã, meu bem, é uma volta.

05 julho, 2012

no museu

os quadros, tão vívidos, me dão inveja. ou ao menos uma espécie de inveja: entre a admiração e a vontade de chegar ali, perto daquela conquista. na tela se fixa, além da imagem, a força da pincelada, a alquimia das cores, a pressa ou o cuidado, a fúria ou a delicadeza - uma parte do estado de espírito de quem derramou a própria urgência na trama branca.
as palavras, frente a essa experiência de ver, um pouco inodoras, insípidas e incolores. o arranjo da forma posto no mundo sem vestígios daquele que riscou as letras no caderno, a traçados leves e apressados ou em ponta de lápis firmemente apertada - as páginas seguintes a ecoar a escritura.
no tóxico da tinta que inebria se preserva o pintor. na seiva que escorre das entrelinhas, abranda a sede infinita do leitor.
no silêncio colorido do museu, me impaciento com as palavras, premidas entre o bonito e o útil. e fico querendo saber o mundo com os olhos e as mãos.

03 julho, 2012

coragem

pra responder ao chamado dessa lua indecorosa e se jogar na vida, com um tanto de coragem e outro tanto de alegria. pra já começar a reunir forças para atravessar agosto.



* o clipe do R.E.M. vi lá na Dani. O da Robyn foi dica da Bia e da Júlia.

02 julho, 2012

sísifo

linda, linda essa imagem da incapacidade de esquecer: I have buried you/ every place I've been (...) You keep ending up/ every place I've been.

30 junho, 2012

estranheza

Penso a palavra fase e o poema da Cecília Meireles me vem à cabeça: tenho fases como a lua/fases de andar escondida/fases de vir para a rua. A fase pendulando extremos - inscrevendo os picos da vida no que é ciclo e, assim, domando o imprevisível.
Penso a palavra fase e sei que meu filho, quando a escuta, imagina jogos de videogame ou computador: algo a se cumprir para continuar a brincadeira. Fase como obstáculo, como intermediária, sem sentido em si mesma. Bandeirolas largadas num caminho pré-definido.
Penso a palavra fase e ressoam as aulas de física: as fases da tensão elétrica, contínuas ou alternadas, o papel do dijuntor. A fase como o grilo que se esconde no quadro de força, cricrilando a alta tensão de chuveiros ou ferros de passar. De novo os picos, agora de energia.
Como pode uma pessoa pensar tanto a palavra fase? eu a pronuncio,  e a estranho enquanto ela ainda está suspensa no ar. Desde então, dou voltas em torno dela, escavando seus sentidos. Não me preocupo: essa estranheza dos termos mais banais há de ser somente uma fase.

28 junho, 2012

pudor

livro usado é duplo encontro: com o autor, com o primeiro dono. essa semana, durante a leitura, além das margens todas preenchidas do trabalho de compreender, e das frases sublinhadas, e das exclamações de quem congratula o autor ("ótima conclusão!"), também umas censuras - imputar, desgraça, danada, todas palavras com alguma letra riscada, como se parti-las ao meio salvasse o texto do pecado. neta da minha avó, entendo bem esse pudor. as palavras são mágicas: pronunciá-las é borrar limites, misturar à terra os mistérios do céu.

27 junho, 2012

crítica

Roger Bastide, sobre Antonio Candido:

"Não estou contente com seus últimos livros. A rigor aceito que o sociólogo e o filósofo precisam se esforçar para serem entendidos por todo mundo; que atenuem suas pesquisas e escondam todo o material sobre o qual repousa seu edifício, seus trabalhos pacientes de aproximação, suas fichas documentárias, suas elaborações estatísticas. Mas, noto no senhor uma tendência mais grave - fazer da poesia um método de sociologia" (citado por Luiz Carlos Jackson. A tradição esquecida. Estudo sobre a sociologia da Antonio Candido. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 16, n. 47, outubro, 2001, p.127-140.

* e pensar que da última vez que fui organizar uma fala por pouco não ia brincando que aprendi mesmo a fazer sociologia lendo a Hilda Hilst ;-)

26 junho, 2012

experiências

"A experiência, e não a verdade, é o que dá sentido à escritura. Digamos, com Foucault, que escrevemos para transformar o que sabemos e não para transmitir o já sabido. Se alguma coisa nos anima a escrever é a possibilidade de que esse ato de escritura, essa experiência em palavras, nos permita liberar-nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos para ser outra coisa, diferentes do que vimos sendo.
Também a experiência, e não a verdade, é o que dá sentido à educação. Educamos para transformar o que sabemos, não para transmitir o já sabido. Se alguma coisa nos anima a educar é a possibilidade de que esse ato de educação, essa experiência em gestos, nos permita liberar-nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos, para ser outra coisa para além do que vimos sendo".

(Jorge Larrosa e Walter Kohan, na apresentação da Coleção Educação: Experiência e Sentido, coordenada por ambos na Editora Autêntica).

21 junho, 2012

geografia do sonho

O mar, nos meus sonhos, é quase sempre pesadelo. A areia grossa na fina faixa e a água invadindo tsunâmica. Ou o sumiço do filho e a orla tão comprida e tortuosa a percorrer na busca. Ou ainda o afogamento, à traição, sem bóia ou salva-vida.
O mar e seu desejo furioso, suas funduras, seu excesso de horizonte. Me seduz e apavora essa falta de bordas.
As praias calmas que conheço, de areia fina, quase-lagos ou as piscinas de recifes não querem saber de emoldurar meus sonhos. Não: o mar, nos meus sonhos, sempre exagero de cinza e crispação de ondas.
Nos sonhos bons e coloridos, só terra, rios e montanhas. A trama de mato, galhos e pedras trazendo o horizonte mais para perto, distraindo do infinito.

16 junho, 2012

um abraço

aproximou-se de mim já refrigerante morno em copo de plástico - as paredes inúteis para conter o líquido e a espuma, o tenso limite entre controle e transbordamento.
a experiência ainda difícil nas frases interrompidas pelas lágrimas. que carregou, em segredo, uma festa. que seria o primeiro filho, bem-vindo. que de repente tudo borrou em marrom e vermelho e a felicidade escorreu, por entre os dedos e as pernas. que talvez tenha esperado demais. que ainda sente vazar a ferida aberta pelo medo.
eu tentei dizer coisas como: embora ninguém fale, isso é comum e por isso mesmo não é sinal de que é tarde demais. e nem de menos. que ser mãe já é esse abismar-se diante da vida. que mesmo quando a gente não crê, a vida é milagre pois há improváveis sementes que brotam no tronco da árvore enquanto outras dormem para sempre no fundo da terra mais fértil. que o filho sonhado já começa a virar verdade nesse enfrentamento com o próprio desejo e com os próprios limites. que haverá novamente o tempo da graça.
tentei dizer tudo isso, mas não quis espantar com certezas as bolhas frágeis das dúvidas. então, só falei com os braços.

15 junho, 2012

sra. raposa

Não sei se é do mergulho na escrita nesses últimos tempos (e nem é só escrita aqui, mas também acadêmica) ou se é do gato que Rodrigo e eu temos sonhado tanto em adotar, mas ontem acordei pensando na Clarice: "quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo".
E aí chegou o livro que mal ganhei de dia dos namorados e já fui lendo pelo caminho e me entregando como há tempos não fazia. Querendo saber mais sobre o autor encontrei uma citação que dizia assim "Sería preferible cerrar el libro, cerrar los libros, y enfrentar, sin más, no la vida, que es muy grande, sino la frágil armadura del presente" (Alejandro Zambra).
Nem escrever, nem ler: acho que vou passar a comer as palavras com sal, sem pimenta.

14 junho, 2012

modorra

dentro da palavra modorra moram as tardes de férias na casa da minha avó. moram o sol quente de verão e os tatu-bolas que investigávamos no jardim. moram também os cheiros: de xixi e cocô de cachorro evaporando no quintal recém-lavado pela chuva; de sabão de côco e amaciante, estendidos no varal.
no mapa da minha imaginação infantil, modorra fica ao lado do pecado, nas fronteiras com sodoma e gomorra. e é cidade inteira de pedra.
modorra é mais chão do que parede porque é mais cama que poltrona.
a palavra modorra está grávida e logo deve parir a lassidão.

13 junho, 2012

Parir não é um ato médico

Com o Rodrigo tão crescido, faz tempo que não falo aqui sobre parto. Mas frente à ameaça do Cremerj de denunciar o Dr. Jorge Kuhn por suas declarações em entrevista ao Fantástico do último domingo, não dá para ficar em silêncio.

Então, deixo aqui o link para a petição online cavando uma discussão sobre parto baseada em evidências, que não alimente mitos e medos, e devolva a nós os direitos sobre nossos corpos.

E no domingo, em São Paulo e em outras cidades, haverá mobilização, em defesa de Jorge Kuhn, mas principalmente em defesa da garantia de nossos direitos reprodutivos:

Local: Vão central do MASP, Parque Mário Covas - Passeata até o Cremesp
Data: 17 de Junho, domingo
Horário: 14h da tarde
Contatos: Ana Cristina Duarte (11) 9806-709

Já falei da minha própria experiência de um parto 'normal' em hospital aqui. Se um dia eu tiver outro filho de barriga, o plano A certamente será a nossa casa: sem raspagem de pêlos, sem ocitocina, sem anestesia, sem obrigação de ficar deitada, sem enfermeira em cima da minha barriga, sem episiotomia, sem colírio, sem vitamina k injetada, sem aspiração, sem corte rápido de cordão... Com respeito a mim e ao recém-chegado, aos nossos tempos e afetos. Parir não é um ato médico!

Veja também:

Carta aberta em repúdio ao Cremerj
Quem escolhe somos nós
Parto humanizado domiciliar: direito das mulheres
A mulher deve escolher onde e como quer ter o bebê


(im)potência

de uma conversa muito antiga com ele, sobre magia, linguagem e ação:

"Eu tenho à medida que designo - e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la - e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mão vazias. Mas - volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu. E é inútil procurar encurtar o caminho e querer começar já sabendo que a voz diz pouco, já começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver nunca se pode chegar antes. A via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com ela. A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio. A este só se chega quando se experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E só esta é a glória própria de minha condição. A desistência é uma revelação." (Clarice Lispector, na Paixão segundo G.H.).

11 junho, 2012

em pleno vôo

no meio de um domingo, o amigo morreu de repente: sem nenhum sinal, sem nenhum aviso. a família reunida na sala e o coração falseou, escorregando entre uma e outra batida, desacertando o passo.
numa terça-feira, alguém que me era tão caro, tão caro que me atava ao que na vida é perfeição se descobriu frágil: sem sinal ou aviso. o coração tropeçando as batidas, o sangue se perdendo no caminho, braços e pernas falhando no susto de saber-se mortal.
na sexta-feira, o professor se foi num sobressalto: sem sinal e sem aviso, o coração (de novo ele) desistindo de bater, feito soluço que interrompesse a respiração.
quando eu era pequena, achava que as pessoas só morriam velhas. ou de acidente: o mau encontro antecipando o natural das coisas. depois, à medida que a lista dos meus mortos aumentava, fui descobrindo que morre-se velho e novo, triste e feliz, solteiro e casado, quando a vida acaba e quando começa, sem filhos e com filhos, estando eles grandes e ainda na barriga, na lua de mel e nas bodas de ouro. morre-se. feito pássaro apanhado em pleno vôo.

10 junho, 2012

doçuras

a noite fria e chuvosa propõe obstáculo ao reencontro, mas em algum lugar entre a garganta e o coração um calor faz combustível para o primeiro passo fora de casa. encontramos abrigo na pequena cervejaria, mesa para dois, nem tão claro que fira a vista, nem tão escuro que os contornos do outro se borrem. a cerveja faz às vezes de champagne até no estouro educado, e o garçom derrama nos copos a promessa de memórias de frutas, ameixas e uvas. a leveza da bebida e a leveza da conversa, ainda que temas duros permeiem as risadas. envelhecer. futuro. casamento. corpo. o doce que os goles estalam na garganta amansando medos e dores. o olho no olho também: certeza de companhia e compreensão. lá fora a cidade fria e deserta - cá dentro, o queijo e mel em torno do qual arrulhamos fazendo as vezes de lareira.

09 junho, 2012

mariposa

a chuva contínua já quase nem se percebe (tão rápido nos acostumamos às mudanças, mesmo as mais cinzentas). caminhando por entre os pingos, a atenção é atraída para o estranho bicho pousado: no tronco do poste, uma mariposa de nylon descansa. o frágil guarda-chuva chinês que o vento virou, revirado em beleza. descartável. e ainda assim, capaz de acordar no rosto uma alegria.

PP

(pós-post): depois de escrever o post de ontem, me lembrei do Drummond, em Relógio do Rosário (Claro Enigma):

{...} Nem existir é mais que um exercício
de pesquisar de vida um vago indício,

a provar a nós mesmos que, vivendo,

estamos para doer, estamos doendo.

08 junho, 2012

carne viva

vezemquando a vida lateja mais. eu achava que era a falta de sol, a monotonia do cinza que faz dia e noite se parecerem. em dias de garoa fina, é como se o corpo ficasse sem pele e a alma arroxeasse a qualquer toque - rememoração de quaresma a pedir delicadeza e silêncio. mas não sei se é só a saudade do azul e amarelo que explica o coração em sobressalto, como se entre as batidas morasse uma tristeza fina querendo escapar. acho que é a dificuldade de respirar quando a gente caminha sentindo a vida passando, em toda suas intensidades, agridoce. tempo de lembrar os mortos, os caminhos abandonados. tempo de ouvir atentamente os prenúncios de vida - a primavera que mora dentro do inverno. tempo de respirar mais fundo, a leveza do suspiro pontuando o contínuo escorrer - da vida, da água, do tempo.

So may the sunrise bring hope where it once was forgotten:







07 junho, 2012

correnteza

porque escrever tem sido urgente, acordei pensando nisso: que escrever é exercício - às vezes ioga, com sua força e flexibilidade, às vezes cardio boxe, com sua fúria e violência. lutar com palavras é a luta mais vã, Drummond já dissera.
e porque já acordei pensando a escrita, imaginei que escrever é também trabalho manual - entre a alquimia da cozinha, misturando ingredientes e temperaturas, e a precisão do ikebana, no esforço delicado de arranjar as palavras em formas um pouco estranhas, ocupar espaços, redefinir a beleza. (já a escrita acadêmica, essa é a arte perdida da relojoaria: as palavras, engrenagens a fazer funcionar a maquinaria da explicação).
a possibilidade da escrita relampeja entre a distração e a concentração. a distensão que permite ser surpreendido, o susto arrancando a gente do que no tododia também é banal; a atenção que torna possível agarrar em pleno ar a estrela cadente: o escritor, um ninja.
escrever é estender a mão como caule que se projetasse repentino do fundo da terra. entre o desejo de comunicação e a pura e simples vontade de distribuir a beleza inventada.
a escrita, sempre entre uma coisa e outra, rio comprimido entre as margens. às vezes quase seco, às vezes cheia, às vezes a confusão do encontro com o mar. outras vezes, como agora, caudalosa e irresistível correnteza.

06 junho, 2012

sabedoria

na aula de ginástica, o professor explica o exercício "abre os braços e fecha as pernas". a voz da bisavó ecoa, firme através dos tempos, ensinando os cuidados em ser mulher. os braços, abertos para a acolhida. as pernas, fechadas para o desejo. atrás do beijo, vem o desejo. sabedoria antiga que alerta para a voragem e seus perigos.
essas vozes me alcançam, mas não me enredam. já todo o caminho na pele que o veludo do primeiro beijo abriu, esse sim me envolve sem salvação. me perco, de novo e de novo e de novo, imprudente. braços e pernas abertos ao mesmo tempo, dizendo sim às águas turvas e seus tragos.

05 junho, 2012

espera

a chuva escorre o cinza clarinho que sufoca o azul. tem dias em que para sempre é quanto a chuva dura. no ponto de ônibus os bancos estão todos encharcados, mas o sentimento é ainda de úmida gratidão - que a chuva é fina e não molha em rajadas quem se abriga sob o teto frágil. o trânsito, os motores acelerando, os aviões ao longe: tudo é ríspido e farpeja por dentro. e então o susto. desafiando o chumbo, uma revoada dança, uma vez para perto, outra vez para longe e ainda outra vez para perto. o contrário da pressa de alcançar o destino enfeita o céu a se despir: volteiam, procuram, tateiam o melhor pouso. olhos em festa, afrouxo como se tivesse chegado. nas poças do banco, a espera namorica a permanência.

04 junho, 2012

alongamento

na vida-fluxo, a impossibilidade de parar desgasta os músculos e dormir é apenas breve intervalo sem sonho. na vida-fluxo, sentir sem distração já é interromper: mesmo seguindo a correnteza, dar às braçadas uma direção.
às vezes, porém,  o corpo escapa para as margens e encontra alívio na beirada. o estiramento da luta constante ansiando pelo repouso. braços e pernas se alongam. sem o risco do afogamento, a alma se alonga também: relembra o horizonte, o céu, as nuvens. e também as pedras, a terra, os pássaros. rememora o ar quando entra sem esforço.
escrever é cravar as unhas nessas precárias bordas - inventar o repouso onde ele é difícil, amarrar as redes em pleno espaço.

03 junho, 2012

entrelinhas

Frente a frente, derramando enfim
todas as palavras, dizemos, com os
olhos, do silêncio que não é mudez. 

(Ana Cristina César. A teus pés).

02 junho, 2012

inflamação

há alguns anos ganhei uma flor de maio. que só dava flor em setembro - flores branquinhas e rosadas, que de repente enfeitavam as pontas do verde. o vaso foi ficando estreito para tanta raiz, e o que era um virou cinco. cinco vasos que na primavera pingenteavam delicadezas. no início do ano, novo milagre de multiplicação e mais duas novas mudas, essas ainda frágeis, tênues fios como raízes. desconfiei que não iam vingar.
na semana passada, porém, descobri em todas elas os botões: as pequenas contas arvoradas feito rosário que se rompesse em pleno ar. e hoje, a nova surpresa de descobrir nos dois vasos recentes, tão pequeninos e quase só folhas caídas sobre a terra, as inflamações brotando, vermelhas. sempre me assusto com essa determinação de vida - inventando raízes, tingindo novas cores, obstinando em vencer o silêncio da terra: arrebatamento a meio caminho entre a boniteza e a ferida.

01 junho, 2012

alquimia

a palavra condimentos no meio da sentença acadêmica distrai o pensamento. pelo nariz passeiam cheiros:  canela sobre o leite quente; cravo no doce-de-abóbora com coco cozinhando na panela de ferro; cominho na carne fritando; cardamomo no café recém-passado; louro fervendo no feijão preto; alecrim em meio a batatas assadas com casca; manjericão no tomate firme e fresco. e erva-doce quando perfuma o bolo de fubá. numa fração de segundo, todos os cheiros da casa quando viva - o sábado e domingo invadindo a sexta-feira. a palavra condimentos, por si mesma, põe toalha florida sobre a mesa-redonda. e deixa entrar, pelas frestas da tese, uma aragem de mato.

31 maio, 2012

proximidade

a criança brincando na praça enuncia a falta com poesia: vem, mãe, aqui no meu perto! de perto, a gente atenta o momento em que a escuta rebrilha os olhos em compreensão ou turva nos lábios um sorriso. de perto, as mãos traem o nervoso mal contido e se contorcem, travando os dedos como dentes que se cerrassem duros. de perto, o perfume percorre o caminho do nariz à pele, se esparramando sem pedir licença, inaugurando memórias. de perto é ainda longe quando - tropeço que interrompe a distração - a vertigem de beira de abismo acorda o desejo de pular. na lonjura mora a saudade. no perto, habita a urgência.

30 maio, 2012

trama

abro o e-mail de manhã e uma supresa deliciosa na caixa postal - uma história, traduzida com todo carinho, dividida com esperança e alegria. devoro a história como o sr. raposo devora os livros: cheia de fome e vontade, com sal, mas sem pimenta - que não estou acostumada e a língua fica dormente, a entravar a boca pra conversa ou pra outros gostos.
e como uma boa história que a gente devora também devora a gente, no caminho de volta da escola tem mãos dadas e um novo partilhar: cada passo desenrolando a trajetória do sr. raposo, seus hábitos alimentares, seu período de fast food - forma sem conteúdo, que não sacia de jeito nenhum...; sua descoberta da biblioteca, sua carreira criminal, sua volta por cima... a cada episódio, a mãozinha quente apertando mais forte a minha e perguntando "e aí? acaba assim?". a ansiedade de conhecer o final devorando mais que a fome da hora do almoço.
a ponta lançada do outro lado do oceano amarrada à trama de cá - costurando a presença onde a saudade, ela também, insatisfeita.

21 maio, 2012

urgência


sentada na biblioteca silenciosa, experimenta o livro com cuidado. o índice, o texto desejado. é só depois de levar o livro para casa, porém, que ao acaso abre o volume do avesso - a quarta capa confundida com a primeira. e então a surpresa: demora a perceber que a letra caprichada não é impressa - o esmero camuflando a subversão. mas se a forma engana, o texto não deixa dúvidas: rabanada e pudim de natal. o cheiro de ambos sobe dentre as páginas, assim como o desterro das festas de trabalho minorado pela delícia das comidas, das companhias, dos novos sabores. na pressa, retira da bolsa o único papel possível: a brancura da página final quase um novo presente de natal. sem pressa, anota a receita, devagar, saboreando em cada torneio da caneta o doce dos quitutes natalinos. o gosto inaugura lembranças, como aquela festa inaugura vida nova. nascer, renascer. a dureza do texto acadêmico afrouxando no vestígio de vida. é sobre o trabalho de pesquisa e sobre cotidiano o livro - e a receita quase impressa, misturando-se aos outros caracteres, ilustrando o momento em que o uso fez do livro outra coisa: improviso de caderno, inscrição urgente do momento que um desejo quis preservar.

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15 maio, 2012

reticências

quando é indizível mas incarregável, a gente não devia ter forma de expressar? não devia ter um jeito pra gente falar o silêncio e preencher com vazio? se a matemática inventou o zero, a poesia não devia inventar uma figura que dissesse calando? comunicando reticências alguém soube escutar a chuva. se eu desaguar a minha angústia no teclado, alguém vai ler o que eu não soube dizer? nos vãos entre os pontos pode morar uma compreensão? não a do saber, mas ao menos da mão estendida. se eu ficar bem quietinha, você vai ouvir eu te amo?

08 maio, 2012

(parênteses adolescente)

 
Mark Ruffalo + Bruce Banner + Hulk = amor eterno

(embora, confesso, o Gavião Arqueiro do Jeremy Renner também é tudo de bom!)

Imagem: daqui.

05 maio, 2012

patamar

"Agora que você chegou
não preciso mais me roubar.
E como farei com os versos
que escrevi?"

(Ana Cristina César)

23 abril, 2012

História da Sexualidade, v. 2

Na primeira página, anotado à caneta numa letra que é ao mesmo tempo minha e daquela que eu era, leio Fabiana Jardim, agosto de 2000, presente do Maurice. No gesto corriqueiro de tirar da estante o instrumento de trabalho, abrir o livro é (re)abrir um presente.

22 abril, 2012

talho

a semana passa rápido e o leite que ia ser iogurte se recusa a ferver: erra em soro e azedo. o inesperado acorda atavismos e decido fazer doce de leite. não sem antes consultar a minha avó - na casa dela, o leite direto da fazenda da D. Helena a borbulhar longamente, espalhando pela cozinha o cheiro doce da espuma assanhada na fervura. ela me manda colocar uma xícara de açúcar e me explica que, se eu quiser que fique pronto mais rápido, melhor é tirar o soro. eu agradeço, desligo o telefone e logo vou tratar de transformar o que estava coalhado em grãozinhos de doçura: sem pressa, misturo açúcar, acendo o fogo, e me distraio com o almoço, com as bolachinhas de chocolate, com o bolo de fubá. uma, duas, três horas pro que era azedume coagular em brandura. o branco amarelando, amarelando, até o marrom característico. o cheiro bom perfumando o domingo cinzinha e úmido, fazendo a alegria do filho pequeno a roubar uma colherada da compota recém-feita.
me talhou o leite, mas o que era catástrofe cotidiana virou festa: guiando a minha mão, os hábitos e habilidades da minha avó e antes dela a tia-avó e antes dela... uma, duas, três gerações pro que era necessidade transfigurar em capricho. no talhar do leite, o talho de uma linhagem.

12 abril, 2012

escritura

na história de uma casa, o sonho dos primeiros donos recém-casados que, oito anos e alguns filhos depois, precisam de lugar maior. ou vai ver que a vida é que deu rasteira e que ao invés de família maior e mais confortável, a venda financiou foi a volta para a cidade ou país de origem. na história de uma casa, os segundos donos, pais da dona atual, e sua vontade de dar às filhas meninas a segurança de tijolos e quintal. três marias, pequeninas, ainda em meio a bonecas e casinhas. na história de uma casa, na mesma penada se anotam o fracasso do casamento de uma irmã e a viuvez precoce da outra. na história de uma casa as três marias vendem e doam até que tudo fique para apenas uma delas. o documento anota, certifica, registra. mas também murmura e faz imaginar. celebro as conquistas de cada casal. entristeço com a separação de uma das marias. mas é a morte do marido da outra, só dois anos depois do casamento, que traz lágrimas aos olhos e vontade de abraço, pouco importa que - passados tantos anos - a cicatriz provavelmente já rosada. a vida, teimosa, sem autenticação nem carimbo.

10 abril, 2012

palomar

1. Na cômoda, no topo da pilha de livros, a capa amarela é objeto e lembrança. Dentro do livro, paulics à caneta. O livro mesmo uma partilha. Abro e fecho o livro; leio e releio a estrutura até não mais notá-la: um, dois e três, da descrição à meditação. Do ver o mundo a estar no mundo e de estar no mundo a pensá-lo. Vejo o mundo e antes de finalmente dormir ele é: a capa amarela, o miolo das letras, a companhia de palomar.

2. Nas férias de janeiro, os dias na praia se alternavam (1) no calor do sol,  tanta luz, tanto quente capaz de esvaziar pensamentos; (2) no assombro do menino crescido e destemido e companheiro; (3) em olhar e olhar e olhar a paisagem, silenciando o turbilhão com o ir e vir das ondas.
Sou pessoa de montanha - os contornos claros, sublinhados à contraluz, bordeando até onde a vista alcança. Mas por vezes é bom o mar e seus horizontes, ilusão de infinito, sem margem. O olho cresce, o azul e o cinza se inscrevem no corpo ao mesmo tempo que o sal. Ao menos brevemente, perco as bordas de mim.
Na volta das férias, na ida dos amigos, um livro emprestado no coreto da praça, como quem apresentasse um amigo antigo: "esse é palomar, aquele de quem te falei". O prazer, muito, subentendido.
Além da correria, o medo da saudade adia a leitura até que fica impossível adiar.
Então, ultimamente, conversas rápidas com palomar, um bocadinho por dia, sempre antes de dormir.  Por enquanto, ainda à beira da praia. Passeios homeopáticos, para esticar as páginas por trezentos e sessenta e cinco dias, uma tessitura fina a compor mosaico com as notícias-diário, os encontros breves no skype, os piqueniques de perto e de longe, se estendendo feito colcha atlântica.

3. Que um livro é vivo, faz companhia e chega mesmo a dar a mão. Apresentar a alguém um livro é um risco: livro e amigo podem não se gostar e a gente fica nu, como se tivessem desgostado da gente na lombada do outro. Podem também não se entender, e aí a gente cria desconfiança no amigo, que não vê beleza no que a gente vê; que não vê sentido onde a gente vê; que não admira o arranjo de palavras costurado em páginas-buquê. Apresentar amigo e livro predileto, então, é risco demais, quase entregar pulsante um teco do próprio coração. De palomar me aproximo devagar, admiração, reconhecimento. Um pouco também de esperança que ele traga um pedacinho da veronika que conheci, agora estrangeira. já outra. Um pouco também de esperança que ele traga um pedacinho de mim quando recebi o livro e adiei a leitura e perdi a chance de ler o livro que ele seria então - eu mesma também estrangeira e já outra. A saudade, essa ausência presente que às vezes amansa quando palomar me estende a mão. E eu sempre estendo de volta, o passeio com ele aplainando a saudade, os vários dias dentro de um dia, a preocupação... os sonhos deslizando suaves no caminho récem-pavimentado.

01 abril, 2012

pontuação


Na estrada reta por onde carros, caminhões, ônibus e bicicletas formigam caminho, súbito balões pontilhando a vista: um, dois; ali mais três, quatro; e ainda cinco e seis; e sete! Cinzas à distância, pequenas vírgulas a pôr respiro na sentença da chuva (água que cai quando as nuvens arrebentam em significado). Coloridas à medida que se aproximam, enormes exclamações - de surpresa, de espanto. De agradecimento pela festa inesperada. Alegria que interrompe o seguir em frente e redescobre o conforto do acostamento.

17 março, 2012

aziz ab'saber

era logo que cheguei em são paulo, e o trajeto da república até a faculdade chegava a demorar bem mais de uma hora (ainda mais se contado o tempo de espera do circular, que parava na pracinha da waldemar ferreira). era na época em que a faria lima foi cortada ao meio, e o único ônibus à disposição vinha se esgueirando entre máquinas e tapumes. quando a pressa era muita e o mês estava no começo, descíamos em pinheiros e tomávamos um ônibus direto: o butantã-usp, carinhosamente anasalado em bãtãtãsp nas nossas conversas.
num desses dias, depois de passar a catraca, um senhor puxou papo com a gente. perguntou de onde éramos, contou histórias, riu e fez rir, animado e muito simpático. era o Aziz Ab'Saber. acho que só mais tarde fui me dando conta do quanto ele significava de fato, para além da referência bibliográfica.
não sei se essa é uma impressão que aumentou depois de eu mesma me tornar professora, mas quando a gente leva a sério isso de ser professor de uma universidade pública, isso de ser professor da USP, a gente mistura a nossa vida à da instituição, dá pra ela o nosso tempo, a nossa energia, os nossos sonhos de uma sociedade e um país melhores.
de modo que eu penso no Aziz Ab'Saber, penso na importância dele, penso no quanto a vida dele se misturou à da USP e a de várias gerações de alunos e choro. um choro mansinho, de gratidão e tristeza. e penso nele sentadinho no ônibus, interessado na história de duas estudantes de ciências sociais, timidamente contando suas próprias histórias. e pra distrair do definitivo da morte, penso que ele apenas desceu num ponto antes da gente, deixando um susto e um sorriso que só aumentam à medida em que o ônibus segue viagem.

14 março, 2012

desajeito

quando gratuitamente me estendem uma flor ou um ramalhete - uma doçura, um sorriso, um cuidado, um abraço mais apertado - nunca sei o que fazer. agradeço, acolho atabalhoadamente a dádiva, e parece sempre insuficiente. depois vou procurar um vaso, enchê-lo de água, cavar uma sombra fresca. fazer perdurar a graça. a me lembrar do encontro e também do meu desajeito: as flores um pouco despetaladas, o dedo rasgado por um caule fininho de ponta mais viva.

27 fevereiro, 2012

dádiva

Mas o anjo parece com tudo aquilo de que tive que me separar: os homens e também os objetos. Nos objetos que não tenho mais, ele mora. Ele os torna transparentes e atrás de cada um aparece aquele a quem foram destinados. Por isso, ninguém pode me superar na arte de presentear. Sim, talvez fosse o anjo atraído por alguém que dá presentes e vai embora de mãos vazias. (Walter Benjamin).

17 fevereiro, 2012

limão

o telefone toca várias vezes, mas só tem alguém na linha mesmo em duas. a primeira vez, aviso que o joão não está porque não mora aqui. o banco itaú na voz da mocinha pede desculpas. da segunda vez, quando querem falar com o joão, pergunto "de novo?" e o banco itaú na mão na mocinha desliga na minha cara, sem pedido de desculpas. pensar bem, pedir desculpa para quê?
desculpa, quando a gente pede, é para aliviar a nossa alma, que pro outro mesmo, nem adianta: o tempo já foi gasto, a tigela já quebrou, o sapato pedido emprestado já ralou. desculpas, quando a gente dá, é para aliviar a nossa alma, fingindo que a responsabilidade nem é nossa e pro outro mesmo, nem adianta: o trabalho ficou por fazer, o feijão já queimou, o cachorro já fugiu.
não ando querendo desculpa. nem desculpas.
o que eu queria pedir e dar era mesmo perdão, assim, grandioso e magnânimo. pra ver se adoçava um pouco tudo isso que anda meio azedo.