29 novembro, 2010

crochê


eu também te amo. engraçado, dito assim. a ênfase esquecida da ação de amar para recair toda sobre a reciprocidade do também. dito com certeza,  aperta firme o laço lançado por aquele que começou a dizer. dito sem entusiamos, faz um laço frouxo, feio, disforme. dito jamais, abre na trama um buraco que só com dificuldade é possível costurar.

dizer eu te amo costuma acompanhar a expectativa de ouvir também. nem sempre é assim que acontece - a ponta às vezes fica solta, feito fio puxado de blusa. dá vontade de meter a agulha e esconder o fio solto pra dentro, retirar a confissão, refazer a ilusão da perfeição. mas eu te amo é tão definitivo que fica ecoando eternamente - na mesma medida de tempo que promete o enunciado.

eu também te amo é nó que vai tecendo a vida em comum - até um ponto em que o também é pura confiança. rede de trama miudinha, onde a gente descansa a cabeça como num colo, e o corpo como no do outro.

Imagem: www.gettyimages.com

28 novembro, 2010

açúcar


Ontem nós fomos dar um beijo na Paula e no Sérgio, pessoas muito queridas, que estão no preparo e na espera do Francisco.

A Paulinha é uma amiga queridíssima. A gente tem coisas muito parecidas - uma meninice, uma certa suavidade que disfarça nossa leonininidade - mas também coisas diferentes: a Paulinha é quinhentas vezes mais paciente e cuidadosa do que eu, mil vezes mais capaz de costurar consensos, com sua delicadeza que faz cerzidos ali mesmo onde o tecido se esgarçara a ponto de parecer rasgado... Quando a gente trabalhava junto, eu não me cansava de admirar essa habilidade de ser flexível e firme, tudo ao mesmo tempo, pavimentando caminhos sem nunca precisar de trator.

Ela esteve tão presente durante toda a minha gravidez, fosse nas reuniões aqui em casa - ela, Toninho e eu, em longas conversas que ajudavam a dar nome numa experiência que, de certa forma, fora comum a nós três -, fosse nos telefonemas de compreensão e apoio quando o fato de gerar uma vida punha a nu as fragilidades dessa coisa que é viver. Sempre querida, sempre companheira.

Quando nos falamos sobre o chá de fraldas, fiquei super feliz de poder oferecer a eles o bolo e os docinhos, aliviando um bocadinho as preocupações que ela teria em organizar o encontro. Foi uma decisão em grande medida prática. Mas ontem, vendo os dois tão felizes, e vendo a Paulinha tão linda, tão amorosa com o Francisco, tão querida por tanta gente, percebi que esse era o presente mais coerente com o que ela significa para mim, com sua amizade cheia de doçuras: puro mel, inesgotável, que a chegada do Francisco, tenho certeza, só vai fazer multiplicar.

Imagem: daqui.

23 novembro, 2010

sal


um saco de sal é o tempo que se leva para conhecer alguém. pelo menos assim repetia sempre a minha avó.
hoje de manhã, fui guardar o sal da última compra de supermercado e descobri outro saco, ainda fechado. e um de sal grosso, ido pela metade.
o marido às vezes reclama da falta de sal da minha comida. outras, se sente cuidado e nem reclama.
a mesma avó me dizia que esquecer o sal era coisa de gente apaixonada.
eu não esqueço: só economizo. comida salgada demais me distrai a língua. prefiro sentir o gosto do que estou comendo.
o saco de sal aqui demora para acabar.
acho que o marido faz estoque para alimentar o tempo da gente se conhecer. para temperar o tempo da gente se conhecer. para rememorar que estamos sempre começando a nos conhecer.

Imagem: daqui.

19 novembro, 2010

adolescência

Talvez nem seja mesmo comigo que ele está falando, mas, ainda que não seja, alguns de meus próprios incômodos com o que anda rolando aqui nestes Noturnos resolveram começar um diálogo com algumas das questões que o Tony colocou.

Não tenho conseguido muito escrever por aqui, vocês já perceberam. Por vezes, me angustia um pouco, pois escrever aqui é também reservar um tempo para tatear um bocadinho tudo aquilo que vai acontecendo no todo dia: nomear as pedrinhas que vão sobrando na margem e fazendo indícios de caminhos. Por outro lado, escrever aqui também é um pouco escrever para um mundo geral demais (com exceção dos queridos visitantes habituais e seus comentários que por vezes me espantam imensamente, porque - como está escrito aí do lado, com as palavras da Rita Apoena, eu só escrevo mesmo para encurtar distâncias e fico tão grata quando em alguns momentos elas se tornam mesmo menores por meio dessas cordas feitas de palavras) e eu tenho preferido interlocuções mais próximas: e-mails, telefonemas, piqueniques, jantarzinhos, cafés e até recadinhos no facebook me apetecem mais do que um texto no blog, que pode tanto trazer para perto como ser um grito no vazio.

Talvez também eu ultimamente me sinta por vezes tão exposta - não num sentido ruim, mas no sentido de estar mais vulnerável ao imprevisível da vida, principalmente no espaço da sala de aula - que o silêncio ou o dito de forma torta (teve jeito não... vesti total a carapuça ;-) sejam modos de me esconder, de criar pra mim ilusões de sombra, como se escrever num blog já não fosse me expor e como se eu não achasse que o dito, mesmo por vias tortas, é ainda assim tão transparente e revelador.

Nas vezes em que me angustia não conseguir escrever com mais frequência, tento pensar o quanto a dificuldade de escrever se relaciona com a falta de tempo para ler literatura, para ver bons livros, portanto, para ampliar meus 'arsenais de ficção" (como o Tony me ensinou) e exercitar sentir a vida de outros modos que não o cru da "realidade".

Aí me lembro que a vida também é feita desses movimentos pendulares e que às vezes é bom mergulhar em outros mundos que não os da ficção. E penso no que foi este último semestre, cheio de intensidades, de construção de mundos comuns nessa nova casa onde estou, com os novos colegas, com os meus queridíssimos alunos, com as pessoas com as quais discutimos sobre as eleições, projetos de país, desafios à interpretação do que é o Brasil hoje... Nos últimos anos, a intensidade esteve quase sempre cheia de angústia e, assim, me sinto imensamente grata de poder viver agora esses momentos intensos de encontro - que trazem crises, é claro, que propõem novas questões e novos problemas, mas também são férteis (até sonhei  esta semana que estava grávida de novo, e sei bem que não é um desejo literal, mas a sensação boa de embriões de coisas novas querendo sair a luz). E me lembro que não escrever aqui tem sido escrever no Margens, ler posts e textos que nem são apenas para preparar aula, assistir bobagenzinhas de mãos dadas com o marido no sofá, ficar debaixo do edredom assistindo SoobyDoo com o filho, jogar jogos de cartas, cozinhar quitutes e às vezes até - ó suprema glória pós-furacão de mestrado e doutorado e concurso - fazer nada.

Claro que nada é tão preto e branco assim: meu corpo anda um pouco revoltado comigo e, confesso, eu também ando um pouco revoltada com ele. Ele me enche de espinhas, dores nas costas, feridinhas que nem explodem nem secam, às vezes se espalham e outras vezes coçam sem parar... E o remédio de fundo que tomei há cerca de duas semanas parece que piorou tudo, colocou tudo para fora. Toda a história do "inoportuna" começou daí - dessa sensação de uma adolescência extemporânea, que reforça o jeito de menina que eu teimo em ter e que, nas situações de trabalho, às vezes é um problema. A espinha é inoportuna, porque contrasta com aquilo que eu desejaria parecer - me faz sentir adolescente aos trinta e poucos anos. Embora eu mesma, que me sinto com trinta anos desde os 25, esteja agora achando que trinta anos é mesmo muito mais perto da adolescência do que a gente gostaria de pensar.

E adolescência tem isso de transição, de inadequação, de nem estar mais cá, nem ter ainda chegado lá. Da voz sair fora de tom, da roupa não cair bem - às vezes revelar a meninice; às vezes fazer um adulto postiço. Do de dentro não combinar com o de fora. Com se sentir de um jeito e ser visto de outro. A depender de qual dos lados se quer estar, inoportuno é tudo que lembra que ainda estamos no meio. E o post nasceu da tentativa de deixar uma bandeirinha nesse meio de caminho, num momento em que tudo isso latejava e me deixava à flor da pele.

E tudo teria sido mais fácil se eu tivesse me tocado que, apesar de não ser hora, grande parte disso tudo era uma TPM - ela mesma inoportuna, fora de seu tempo, atravessando o ritmo ciclíco e me confundindo. Quando tudo transbordou, as coisas ficaram mais leves. Porque a inconstância também é parte da adolescência e de uma hora pra outra, a maré vira de lado ;-)

16 novembro, 2010

inoportuna

a espinha que teima em aparecer, ultimamente mais do que uma vez por mês, respingando de vermelho o rosto e latejando dores emergentes. a desafinada na hora de raiva, em que o orgulho queria  o tom fosse àspero e inteiro, mas o corpo traidor trinca a voz em mil caquinhos. a batida do coração em disparada nos pequenos e nos grandes sustos cotidianos, alimentando ritmadamente as melhores e as piores expectativas. a insônia na véspera dos grandes acontecimentos, justo quando o descanso seria mais crucial. a fome no meio do dia de regime. a coceira em meio à necessidade de concentração. as gotas de café com leite na roupa já-pronta-pro-trabalho. a vida-torrente inundando a vida-fluxo, fazendo a água escapar do leito, obrigando a inventar outros sulcos por onde seja possível escorrer. eu mesma, assim derramada.

01 novembro, 2010

Rebento

 
Vá lá, vá lá, que o dia hoje é de festa! Depois de uma das campanhas mais horrorosas desde 1989, elegemos a primeira mulher presidenta do país, para dar continuidade a um projeto de país mais justo, mais equitativo, mais solidário.

No primeiro turno, eu já tinha ficado muito emocionada de ver a foto da Dilma na urna, antes de apertar "confirma". Depois da imensa vitória de termos um presidente operário por oito anos - e um bom presidente, vale dizer -, elegermos uma mulher para ocupar o posto mais alto do país, e uma mulher com a trajetória da Dilma - que combateu a ditadura, que trabalha um montão, que aceitou entrar nessa disputa e que aguentou o tranco das acusações, dos boatos, das infâmias todas que pontuaram o processo eleitoral... olha, não é pra qualquer uma. Eu não tenho a menor dúvida - a despeito do esforço desesperado dos jornais de dizer o contrário - que ela ganhou por seus próprios méritos e por representar um projeto de governo diferente do proposto pelo outro candidato. Não foi só o carisma do Lula que a elegeu. Ainda que ela por vezes tenha ficado nervosa nos debates (quem não ficaria?), nas entrevistas em que a vi ou em que a ouvi falar ela estava sempre segura, firme e clara.

Por isso, ainda que eu tenha muitas angústias com o momento que vivemos atualmente (pois que essas  primeiras eleições após 8 anos de um governo inclusivo trouxeram à tona ressentimentos e conflitos que ficavam submersos no dia-a-dia miudinho do nosso viver, e eu não sei bem como enfrentaremos o desafio de lidar com eles), depois de semanas de trabalho e agonias, hoje vou me dar a licença da celebração - o direito de rebentar em lágrimas e em festa pelas possibilidades que a eleição da Dilma abrem. Vou me dar o direito à esperança que esse momento seja um novo nascimento - que alargue as margens do possível, que nos permita ser um país (ainda) melhor na invenção de um jeito próprio de lidar com as contradições e os conflitos que fazem parte da nossa história e de nosso momento atual.

Então, só por hoje, vou deixar o exercício do pensamento pra amanhã.



Imagem: Marcello Casal Jr., na Rede Brasil Atual.