23 abril, 2012

História da Sexualidade, v. 2

Na primeira página, anotado à caneta numa letra que é ao mesmo tempo minha e daquela que eu era, leio Fabiana Jardim, agosto de 2000, presente do Maurice. No gesto corriqueiro de tirar da estante o instrumento de trabalho, abrir o livro é (re)abrir um presente.

22 abril, 2012

talho

a semana passa rápido e o leite que ia ser iogurte se recusa a ferver: erra em soro e azedo. o inesperado acorda atavismos e decido fazer doce de leite. não sem antes consultar a minha avó - na casa dela, o leite direto da fazenda da D. Helena a borbulhar longamente, espalhando pela cozinha o cheiro doce da espuma assanhada na fervura. ela me manda colocar uma xícara de açúcar e me explica que, se eu quiser que fique pronto mais rápido, melhor é tirar o soro. eu agradeço, desligo o telefone e logo vou tratar de transformar o que estava coalhado em grãozinhos de doçura: sem pressa, misturo açúcar, acendo o fogo, e me distraio com o almoço, com as bolachinhas de chocolate, com o bolo de fubá. uma, duas, três horas pro que era azedume coagular em brandura. o branco amarelando, amarelando, até o marrom característico. o cheiro bom perfumando o domingo cinzinha e úmido, fazendo a alegria do filho pequeno a roubar uma colherada da compota recém-feita.
me talhou o leite, mas o que era catástrofe cotidiana virou festa: guiando a minha mão, os hábitos e habilidades da minha avó e antes dela a tia-avó e antes dela... uma, duas, três gerações pro que era necessidade transfigurar em capricho. no talhar do leite, o talho de uma linhagem.

12 abril, 2012

escritura

na história de uma casa, o sonho dos primeiros donos recém-casados que, oito anos e alguns filhos depois, precisam de lugar maior. ou vai ver que a vida é que deu rasteira e que ao invés de família maior e mais confortável, a venda financiou foi a volta para a cidade ou país de origem. na história de uma casa, os segundos donos, pais da dona atual, e sua vontade de dar às filhas meninas a segurança de tijolos e quintal. três marias, pequeninas, ainda em meio a bonecas e casinhas. na história de uma casa, na mesma penada se anotam o fracasso do casamento de uma irmã e a viuvez precoce da outra. na história de uma casa as três marias vendem e doam até que tudo fique para apenas uma delas. o documento anota, certifica, registra. mas também murmura e faz imaginar. celebro as conquistas de cada casal. entristeço com a separação de uma das marias. mas é a morte do marido da outra, só dois anos depois do casamento, que traz lágrimas aos olhos e vontade de abraço, pouco importa que - passados tantos anos - a cicatriz provavelmente já rosada. a vida, teimosa, sem autenticação nem carimbo.

10 abril, 2012

palomar

1. Na cômoda, no topo da pilha de livros, a capa amarela é objeto e lembrança. Dentro do livro, paulics à caneta. O livro mesmo uma partilha. Abro e fecho o livro; leio e releio a estrutura até não mais notá-la: um, dois e três, da descrição à meditação. Do ver o mundo a estar no mundo e de estar no mundo a pensá-lo. Vejo o mundo e antes de finalmente dormir ele é: a capa amarela, o miolo das letras, a companhia de palomar.

2. Nas férias de janeiro, os dias na praia se alternavam (1) no calor do sol,  tanta luz, tanto quente capaz de esvaziar pensamentos; (2) no assombro do menino crescido e destemido e companheiro; (3) em olhar e olhar e olhar a paisagem, silenciando o turbilhão com o ir e vir das ondas.
Sou pessoa de montanha - os contornos claros, sublinhados à contraluz, bordeando até onde a vista alcança. Mas por vezes é bom o mar e seus horizontes, ilusão de infinito, sem margem. O olho cresce, o azul e o cinza se inscrevem no corpo ao mesmo tempo que o sal. Ao menos brevemente, perco as bordas de mim.
Na volta das férias, na ida dos amigos, um livro emprestado no coreto da praça, como quem apresentasse um amigo antigo: "esse é palomar, aquele de quem te falei". O prazer, muito, subentendido.
Além da correria, o medo da saudade adia a leitura até que fica impossível adiar.
Então, ultimamente, conversas rápidas com palomar, um bocadinho por dia, sempre antes de dormir.  Por enquanto, ainda à beira da praia. Passeios homeopáticos, para esticar as páginas por trezentos e sessenta e cinco dias, uma tessitura fina a compor mosaico com as notícias-diário, os encontros breves no skype, os piqueniques de perto e de longe, se estendendo feito colcha atlântica.

3. Que um livro é vivo, faz companhia e chega mesmo a dar a mão. Apresentar a alguém um livro é um risco: livro e amigo podem não se gostar e a gente fica nu, como se tivessem desgostado da gente na lombada do outro. Podem também não se entender, e aí a gente cria desconfiança no amigo, que não vê beleza no que a gente vê; que não vê sentido onde a gente vê; que não admira o arranjo de palavras costurado em páginas-buquê. Apresentar amigo e livro predileto, então, é risco demais, quase entregar pulsante um teco do próprio coração. De palomar me aproximo devagar, admiração, reconhecimento. Um pouco também de esperança que ele traga um pedacinho da veronika que conheci, agora estrangeira. já outra. Um pouco também de esperança que ele traga um pedacinho de mim quando recebi o livro e adiei a leitura e perdi a chance de ler o livro que ele seria então - eu mesma também estrangeira e já outra. A saudade, essa ausência presente que às vezes amansa quando palomar me estende a mão. E eu sempre estendo de volta, o passeio com ele aplainando a saudade, os vários dias dentro de um dia, a preocupação... os sonhos deslizando suaves no caminho récem-pavimentado.

01 abril, 2012

pontuação


Na estrada reta por onde carros, caminhões, ônibus e bicicletas formigam caminho, súbito balões pontilhando a vista: um, dois; ali mais três, quatro; e ainda cinco e seis; e sete! Cinzas à distância, pequenas vírgulas a pôr respiro na sentença da chuva (água que cai quando as nuvens arrebentam em significado). Coloridas à medida que se aproximam, enormes exclamações - de surpresa, de espanto. De agradecimento pela festa inesperada. Alegria que interrompe o seguir em frente e redescobre o conforto do acostamento.