24 dezembro, 2010

renascimentos

Nesse ano em que as intensidades tiveram, para mim, muito mais ritmo do que palavra, os desejos de Natal e novo ano não podiam ser diferentes.

Então, meus desejos de Natal para todos vocês vão nesse clipe. Que hoje à noite e que no próximo ano, nossos corações sejam fortalezas - para enfrentar o que anda tão doído nesse mundo com amor e afeto, para escapar das ausências não faltando aos encontros, para que o Natal seja a festa da brincadeira, da simplicidade e da alegria de estar vivo, para que o ano novo possa restaurar nossos cansaços e, sobretudo, nossas próprias forças, porque, como já disse o Guimarães Rosa, o que a vida quer da gente é coragem.

Então, boas festas, bons encontros, e que a pausa de tudo o que corre pelos ponteiros do relógio permita restaurar as nossas forças e alimentar nossa coragem.

22 dezembro, 2010

un vestido y un amor

No sábado, fomos ao casamento da Tatiana e do Alex, compartilhar com eles a alegria e a festa do amor quando começa e recomeça. A Tati provavelmente é uma das noivas mais lindas que já vi, com suas unhas e sapatos vermelhos, ao mesmo tempo tão despida de véus, coroas, penteados demorados... e, por isso mesmo, tão absolutamente deslumbrante.

Não conheço muito o Alex, embora eles estejam juntos já há bastante tempo. Por alguma razão, ou por várias, a mesma vida que um dia tornou possível que a Tati e eu nos encontrássemos e construíssemos uma amizade forte e intensa, foi tornando difícil a gente participar do cotidiano uma da outra. Nem por isso o carinho que sinto por ela é qualquer vírgula  menor - volta e meia esbarro com pedacinhos daquele nosso convívio miúdo, as músicas, as cartas, cartinhas e cartões, as fitas cassete  que gravávamos, na casa da Ju, embaladas por insônia e álcool... Tanta gostosura, tanta partilha. Tantos fios entrelaçados - se não fosse por ela, Edu e eu nem teríamos nos conhecido, nem teríamos conversado por horas, nem teríamos construído esses nove anos de vida em comum.

Fiquei imensamente feliz e grata por poder participar desse momento. E de reencontrar tanta gente querida, de quem igualmente gosto, ainda que não nos vejamos com frequência. Ter na minha vida essas pessoas  tão queridas, saber que estão bem, felizes, construindo suas vidas me faz um bem danado - dá sentido à nossa história comum, mas também me ampara e me dá consistência. É feito poder voltar para casa quando a gente se sente um pouco perdido e sozinho.

Como escrevi em algum cartãozinho para a Tati, há tanto tempo que perdi a data, "hay cosas que te ayudan a vivir". Pessoas queridas como a Tati e o Alex certamente estão entre elas.

11 dezembro, 2010

umidades

 
"lá fora não tem água e aqui dentro a gente chora
lá fora não tem água e aqui dentro a gente chuva"

(André Abujamra)

Que quando a secura é muita, não tem melhor que inventar umidades.

Imagem: www.gettyimages.com

10 dezembro, 2010

Coração de galinha

É sempre uma coisa difícil para mim, não tem jeito. Costumo ser empática - tenho essa facilidade (na maior parte do tempo) para compreender o lugar do outro. Mas confesso que hoje está difícil. Porque nesses tempos em que o "outro é um estorvo", se alguém se preocupa com o outro deve ser porque é tonto. Compreender as dificuldades do outro - os atrasos, a correria, o ônibus que não passou, o recado que não se deu, a impressora que quebrou - passa por bobagem. E eu sei bem por que: é porque tudo isso pode ser também revelador que o outro, esse outro em quem você tenta reconhecer a si mesmo com suas fragilidades e confusões, no fundo pode simplesmente não estar nem aí para você.

Então o dilema ético e político é saber se você vai continuar sabendo compreender, sob o risco de ser tonto, ou se vai aceitar se identificar com o outro naquilo que temos de preguiças, má-vontades, descaso, vontade de aproveitar... E daí, o contrário da compreensão e da flexibilidade é o que? Incompreensão e rigidez? Onde é que a gente risca a linha de giz? Porque, olha, hoje não estou querendo ninguém pisando dentro da minha linhazinha. Hoje, tô querendo mesmo é varrer todo mundo e passar pano molhado e cheiroso pra ver se dá jeito nessa secura.

01 dezembro, 2010

Dicionário ilustrado


No caminho para a escola, Edu e eu conversando sobre uma notícia que saiu no New York Times, de que o narcisismo vai ser retirado do manual de diagnósticos de transtornos psiquiátricos (aqui, em inglês). Papo vai, papo vem, chegamos à escola.

Mal entramos e encontramos a Lucia, mãe de uma amiguinha do Rô, que de longe exclamou: "cortou o cabelo!". Ao que respondi que não, que até queria, mas ainda não tinha conseguido e que agora era verão, bom momento de cortar. Mas no meio da frase já tinha me dado conta que não era comigo que ela estava falando e sim com o Rô que... - tchan, tchan, tchan, tchan! - tinha cortado o cabelo de manhã. Vá lá que "cortou o cabelo" é uma frase com sujeito oculto, mas...

Pelo menos esse momento-umbigo não é mais doença mental ;-)

Imagem: daqui.

29 novembro, 2010

crochê


eu também te amo. engraçado, dito assim. a ênfase esquecida da ação de amar para recair toda sobre a reciprocidade do também. dito com certeza,  aperta firme o laço lançado por aquele que começou a dizer. dito sem entusiamos, faz um laço frouxo, feio, disforme. dito jamais, abre na trama um buraco que só com dificuldade é possível costurar.

dizer eu te amo costuma acompanhar a expectativa de ouvir também. nem sempre é assim que acontece - a ponta às vezes fica solta, feito fio puxado de blusa. dá vontade de meter a agulha e esconder o fio solto pra dentro, retirar a confissão, refazer a ilusão da perfeição. mas eu te amo é tão definitivo que fica ecoando eternamente - na mesma medida de tempo que promete o enunciado.

eu também te amo é nó que vai tecendo a vida em comum - até um ponto em que o também é pura confiança. rede de trama miudinha, onde a gente descansa a cabeça como num colo, e o corpo como no do outro.

Imagem: www.gettyimages.com

28 novembro, 2010

açúcar


Ontem nós fomos dar um beijo na Paula e no Sérgio, pessoas muito queridas, que estão no preparo e na espera do Francisco.

A Paulinha é uma amiga queridíssima. A gente tem coisas muito parecidas - uma meninice, uma certa suavidade que disfarça nossa leonininidade - mas também coisas diferentes: a Paulinha é quinhentas vezes mais paciente e cuidadosa do que eu, mil vezes mais capaz de costurar consensos, com sua delicadeza que faz cerzidos ali mesmo onde o tecido se esgarçara a ponto de parecer rasgado... Quando a gente trabalhava junto, eu não me cansava de admirar essa habilidade de ser flexível e firme, tudo ao mesmo tempo, pavimentando caminhos sem nunca precisar de trator.

Ela esteve tão presente durante toda a minha gravidez, fosse nas reuniões aqui em casa - ela, Toninho e eu, em longas conversas que ajudavam a dar nome numa experiência que, de certa forma, fora comum a nós três -, fosse nos telefonemas de compreensão e apoio quando o fato de gerar uma vida punha a nu as fragilidades dessa coisa que é viver. Sempre querida, sempre companheira.

Quando nos falamos sobre o chá de fraldas, fiquei super feliz de poder oferecer a eles o bolo e os docinhos, aliviando um bocadinho as preocupações que ela teria em organizar o encontro. Foi uma decisão em grande medida prática. Mas ontem, vendo os dois tão felizes, e vendo a Paulinha tão linda, tão amorosa com o Francisco, tão querida por tanta gente, percebi que esse era o presente mais coerente com o que ela significa para mim, com sua amizade cheia de doçuras: puro mel, inesgotável, que a chegada do Francisco, tenho certeza, só vai fazer multiplicar.

Imagem: daqui.

23 novembro, 2010

sal


um saco de sal é o tempo que se leva para conhecer alguém. pelo menos assim repetia sempre a minha avó.
hoje de manhã, fui guardar o sal da última compra de supermercado e descobri outro saco, ainda fechado. e um de sal grosso, ido pela metade.
o marido às vezes reclama da falta de sal da minha comida. outras, se sente cuidado e nem reclama.
a mesma avó me dizia que esquecer o sal era coisa de gente apaixonada.
eu não esqueço: só economizo. comida salgada demais me distrai a língua. prefiro sentir o gosto do que estou comendo.
o saco de sal aqui demora para acabar.
acho que o marido faz estoque para alimentar o tempo da gente se conhecer. para temperar o tempo da gente se conhecer. para rememorar que estamos sempre começando a nos conhecer.

Imagem: daqui.

19 novembro, 2010

adolescência

Talvez nem seja mesmo comigo que ele está falando, mas, ainda que não seja, alguns de meus próprios incômodos com o que anda rolando aqui nestes Noturnos resolveram começar um diálogo com algumas das questões que o Tony colocou.

Não tenho conseguido muito escrever por aqui, vocês já perceberam. Por vezes, me angustia um pouco, pois escrever aqui é também reservar um tempo para tatear um bocadinho tudo aquilo que vai acontecendo no todo dia: nomear as pedrinhas que vão sobrando na margem e fazendo indícios de caminhos. Por outro lado, escrever aqui também é um pouco escrever para um mundo geral demais (com exceção dos queridos visitantes habituais e seus comentários que por vezes me espantam imensamente, porque - como está escrito aí do lado, com as palavras da Rita Apoena, eu só escrevo mesmo para encurtar distâncias e fico tão grata quando em alguns momentos elas se tornam mesmo menores por meio dessas cordas feitas de palavras) e eu tenho preferido interlocuções mais próximas: e-mails, telefonemas, piqueniques, jantarzinhos, cafés e até recadinhos no facebook me apetecem mais do que um texto no blog, que pode tanto trazer para perto como ser um grito no vazio.

Talvez também eu ultimamente me sinta por vezes tão exposta - não num sentido ruim, mas no sentido de estar mais vulnerável ao imprevisível da vida, principalmente no espaço da sala de aula - que o silêncio ou o dito de forma torta (teve jeito não... vesti total a carapuça ;-) sejam modos de me esconder, de criar pra mim ilusões de sombra, como se escrever num blog já não fosse me expor e como se eu não achasse que o dito, mesmo por vias tortas, é ainda assim tão transparente e revelador.

Nas vezes em que me angustia não conseguir escrever com mais frequência, tento pensar o quanto a dificuldade de escrever se relaciona com a falta de tempo para ler literatura, para ver bons livros, portanto, para ampliar meus 'arsenais de ficção" (como o Tony me ensinou) e exercitar sentir a vida de outros modos que não o cru da "realidade".

Aí me lembro que a vida também é feita desses movimentos pendulares e que às vezes é bom mergulhar em outros mundos que não os da ficção. E penso no que foi este último semestre, cheio de intensidades, de construção de mundos comuns nessa nova casa onde estou, com os novos colegas, com os meus queridíssimos alunos, com as pessoas com as quais discutimos sobre as eleições, projetos de país, desafios à interpretação do que é o Brasil hoje... Nos últimos anos, a intensidade esteve quase sempre cheia de angústia e, assim, me sinto imensamente grata de poder viver agora esses momentos intensos de encontro - que trazem crises, é claro, que propõem novas questões e novos problemas, mas também são férteis (até sonhei  esta semana que estava grávida de novo, e sei bem que não é um desejo literal, mas a sensação boa de embriões de coisas novas querendo sair a luz). E me lembro que não escrever aqui tem sido escrever no Margens, ler posts e textos que nem são apenas para preparar aula, assistir bobagenzinhas de mãos dadas com o marido no sofá, ficar debaixo do edredom assistindo SoobyDoo com o filho, jogar jogos de cartas, cozinhar quitutes e às vezes até - ó suprema glória pós-furacão de mestrado e doutorado e concurso - fazer nada.

Claro que nada é tão preto e branco assim: meu corpo anda um pouco revoltado comigo e, confesso, eu também ando um pouco revoltada com ele. Ele me enche de espinhas, dores nas costas, feridinhas que nem explodem nem secam, às vezes se espalham e outras vezes coçam sem parar... E o remédio de fundo que tomei há cerca de duas semanas parece que piorou tudo, colocou tudo para fora. Toda a história do "inoportuna" começou daí - dessa sensação de uma adolescência extemporânea, que reforça o jeito de menina que eu teimo em ter e que, nas situações de trabalho, às vezes é um problema. A espinha é inoportuna, porque contrasta com aquilo que eu desejaria parecer - me faz sentir adolescente aos trinta e poucos anos. Embora eu mesma, que me sinto com trinta anos desde os 25, esteja agora achando que trinta anos é mesmo muito mais perto da adolescência do que a gente gostaria de pensar.

E adolescência tem isso de transição, de inadequação, de nem estar mais cá, nem ter ainda chegado lá. Da voz sair fora de tom, da roupa não cair bem - às vezes revelar a meninice; às vezes fazer um adulto postiço. Do de dentro não combinar com o de fora. Com se sentir de um jeito e ser visto de outro. A depender de qual dos lados se quer estar, inoportuno é tudo que lembra que ainda estamos no meio. E o post nasceu da tentativa de deixar uma bandeirinha nesse meio de caminho, num momento em que tudo isso latejava e me deixava à flor da pele.

E tudo teria sido mais fácil se eu tivesse me tocado que, apesar de não ser hora, grande parte disso tudo era uma TPM - ela mesma inoportuna, fora de seu tempo, atravessando o ritmo ciclíco e me confundindo. Quando tudo transbordou, as coisas ficaram mais leves. Porque a inconstância também é parte da adolescência e de uma hora pra outra, a maré vira de lado ;-)

16 novembro, 2010

inoportuna

a espinha que teima em aparecer, ultimamente mais do que uma vez por mês, respingando de vermelho o rosto e latejando dores emergentes. a desafinada na hora de raiva, em que o orgulho queria  o tom fosse àspero e inteiro, mas o corpo traidor trinca a voz em mil caquinhos. a batida do coração em disparada nos pequenos e nos grandes sustos cotidianos, alimentando ritmadamente as melhores e as piores expectativas. a insônia na véspera dos grandes acontecimentos, justo quando o descanso seria mais crucial. a fome no meio do dia de regime. a coceira em meio à necessidade de concentração. as gotas de café com leite na roupa já-pronta-pro-trabalho. a vida-torrente inundando a vida-fluxo, fazendo a água escapar do leito, obrigando a inventar outros sulcos por onde seja possível escorrer. eu mesma, assim derramada.

01 novembro, 2010

Rebento

 
Vá lá, vá lá, que o dia hoje é de festa! Depois de uma das campanhas mais horrorosas desde 1989, elegemos a primeira mulher presidenta do país, para dar continuidade a um projeto de país mais justo, mais equitativo, mais solidário.

No primeiro turno, eu já tinha ficado muito emocionada de ver a foto da Dilma na urna, antes de apertar "confirma". Depois da imensa vitória de termos um presidente operário por oito anos - e um bom presidente, vale dizer -, elegermos uma mulher para ocupar o posto mais alto do país, e uma mulher com a trajetória da Dilma - que combateu a ditadura, que trabalha um montão, que aceitou entrar nessa disputa e que aguentou o tranco das acusações, dos boatos, das infâmias todas que pontuaram o processo eleitoral... olha, não é pra qualquer uma. Eu não tenho a menor dúvida - a despeito do esforço desesperado dos jornais de dizer o contrário - que ela ganhou por seus próprios méritos e por representar um projeto de governo diferente do proposto pelo outro candidato. Não foi só o carisma do Lula que a elegeu. Ainda que ela por vezes tenha ficado nervosa nos debates (quem não ficaria?), nas entrevistas em que a vi ou em que a ouvi falar ela estava sempre segura, firme e clara.

Por isso, ainda que eu tenha muitas angústias com o momento que vivemos atualmente (pois que essas  primeiras eleições após 8 anos de um governo inclusivo trouxeram à tona ressentimentos e conflitos que ficavam submersos no dia-a-dia miudinho do nosso viver, e eu não sei bem como enfrentaremos o desafio de lidar com eles), depois de semanas de trabalho e agonias, hoje vou me dar a licença da celebração - o direito de rebentar em lágrimas e em festa pelas possibilidades que a eleição da Dilma abrem. Vou me dar o direito à esperança que esse momento seja um novo nascimento - que alargue as margens do possível, que nos permita ser um país (ainda) melhor na invenção de um jeito próprio de lidar com as contradições e os conflitos que fazem parte da nossa história e de nosso momento atual.

Então, só por hoje, vou deixar o exercício do pensamento pra amanhã.



Imagem: Marcello Casal Jr., na Rede Brasil Atual.

19 outubro, 2010

Crepitações


Depois de ter escrito o último post - toda influenciada por um momento Harry Potter - me lembrei que o melhor modo de conseguir fazer um Patronus é procurar dentro de si a lembrança mais querida: um momento de encontro, um lugar de proteção... Encontrar dentro da gente um espaço de vida e intensidade, que alimente a esperança.

E então o final de semana não poderia ter sido melhor para isso. Nem precisei ativar a memória ou a imaginação - foram tantos encontros que o que era brasinha de esperança na sexta-feira virou fogueira incandescente no domingo à noite.

Começou no sábado de manhã, na panfletagem em Pinheiros - super significativo que o encontro tenha sido marcado em uma esquina: espaço público da rua, da visibilidade e da comunicação. As pessoas vinham chegando, se aglomerando e logo já tinha bandeira, panfletos, adesivos e, vira e mexe, uma buzina companheira se identificando com a gente. Inspira fundo... e faz a brasa arder mais forte.

Depois do almoço, fomos visitar a minha mãe. E fazia muito tempo em que a gente não sentava, assim,  sem pressa em torno da mesa, e conversava tanto. As crianças feliz e brincantes, a mesa tão cheia que o Padilha ficou acompanhando a bagunça da sala [tem trilha mais boa que felicidade distraída?], e uma falação e risadeira de darem gosto!

Ainda no sábado, teve mais encontro - e dessa vez, dos grandes: foi a festa de comemoração dos 70 anos do Fausto (de quem eu já falei aqui). E ao vê-lo, tão lindo e querido, comecei a achar que o Fausto vai mesmo é ser eterno - é tanta gente que o ama, é tanto amigo, tanta amiga que é como se vida tivesse dado em volta dele um laço bem apertado. A alegria radiante dele em meio a tanta gente que passou e que ficou em sua vida, juro pra vocês, deve me iluminar por uns bons anos. 

Cada reencontro com o Fausto faz a vida transbordar um bocadinho: perder as margens, irromper furiosa por entre as frestas e brechas, rasgar rachaduras no todo-dia da distância em que vivemos.

Como se não fosse suficiente, ainda teve rever amigos e professores queridos: a Roberta e o Rômulo,  a Clarissa, e até a Carla, que não via desde nossos...6, 7 anos?! E a Poliana, que foi minha professora de Filosofia e Sociologia no Magistério, a quem eu admiro imensamente (e continuo admirando) e que teve tanta importância nas minhas escolhas profissionais. Que delícia revê-la! Que coisa boa rever a Marli, que foi minha professora de Didática e também de Ensino de Artes! Rever a Inês, professora de Matemática e de Metodologia de Ensino da Matemática - acho que ela mal se lembra de mim, mas eu guardo comigo até hoje a sensação dupla de fascínio e frustração quando, nas aulas de Metodologia, ela fez a matemática parecer tão próxima e concreta. Fascínio pelo mundo que se abria; frustração porque podia ter sido tão mais fácil e interessante. O passado há quinze anos invadindo sem pedir licença o agora, que a gente é mesmo assim: bricolagem estranha e vívida; o colorido dos vínculos recordados rolando doidos no caleidoscópio do que somos hoje.

No domingo, ainda sobrou folêgo pra mais encontro e delicadezas - era dia de piquenique, afinal. Corre daqui, corre de lá, improvisa petiscos e lá fomos todos os cinco rumo à praça, carregando guacamoles, sanduíches de ricota com azeitonas e de queijo e lombinho e uma salada de cenoura, ricota e passas. Contrariando as previsões, o dia estava azul e amplo. E, como disse a Neide, só vimos chuva de pitangas e uvaias. A separação das frutas me lembrou as tardes no quinta da minha tia Roseli - a goiabeira enlouquecida de frutas e a gente sentada, à sombra, frente baldes e baldes de goiabas que lentamente iam virando geléias, polpa congelada, doce-orelha... Em certas horas das tardes de verão, em que o ar fica parado e o tempo suspenso, ainda dá pra sentir o cheiro das goiabas maduras - ainda que nem na mesma casa minha tia more e que a goiabeira um dia tenha ficado cansada.

O domingo já estava terminando quando chegamos em casa. A casa de perna pro ar, o cansaço se fazendo sentir... e uma brisa leve de folhas soprando por dentro da gente, atiçando as esperanças já  quase esquecidas do morno da brasa.

Imagem: www.gettyimages.com

15 outubro, 2010

Expecto Patronum

"Ninguém abra a sua porta
para ver que aconteceu:
saímos de braço dado,
a noite escura mais eu".
(Cecília Meireles)

Pior mesmo é quando a noite invade a gente. É tanto absurdo que, juro, parece que se aproximou de mim um dementador...

Dá licença que vou ali, respirar um pouquinho, tomar um ar, me concentrar em outra coisa, para ver se vislumbro um Patronum bem bonito e forte para tirar de dentro de mim essa desesperança.

13 outubro, 2010

pequenino conto de terror e ternura


Ele foi minha primeira paixão. Amor, já tinha tido alguns; poucos, já que nem acabara de dobrar a esquina da infância. Alguns: platônicos, enrolados, feitos de olhares de longe na hora do intervalo escolar ou de timidez, nos bailinhos e festas. Mas paixão? Só com ele mesmo.

Uma noite, devia ser dezembro, estávamos namorando na rua dele quando ouvimos uma freada brusca e, em seguida, um carro acelerando. Corremos para ver o que era e encontramos já uma pequena aglomeração se formando, em torno de um gatinho atropelado. Não olhei direto, aflita com a morte tão próxima - ainda mais tão de repente, esquecida que estava de que o corpo é também peso frágil  (naquele momento, o corpo era só leveza de pelos arrepiados). Ele sim, mais corajoso, olhou, chegou perto, reconheceu o bichinho, lamentou. Lamentamos. A morte do gato e a covardia do motorista.

Constatada a morte, era a hora de contar à dona. De novo, o único corajoso foi ele - tocou a campainha, acolheu os conselhos de ser suave... e, mal a dona do gatinho surgiu à porta, disparou à queima-roupa: "um motorista atropelou um gato. Era o seu".

Boquiaberta a menina. Boquiabertos todos nós, ali em volta. Era isso então a suavidade? Atropelar as palavras, atropelar com palavras?

Me deu um susto, aquele menino. As farpas do desajeito fazendo cicatriz no veludo da sua companhia. Me encantou, também, sua honestidade crua, sua coragem sem o pudor da pena. Os pés turvados de paixão se deixando lamber pela água límpida da ternura.

Imagem: Nacho Gomez

Cinco anos


E hoje é aniversário do Rodrigo: cinco anos. Tão pequeno, tão enorme, esse serzinho que é nosso companheiro.

Este ano ele dispensou a festa; preferiu ir para a praia, ter um tempo de atenção só pra ele sem competir com trabalho, tarefas da casa ou mesmo o nosso cansaço. Foi o que ele me explicou na sexta-feira antes da viagem: "viajar é bom, mãe, porque você e o papai não trabalham, descansam um pouquinho...". Mesmo com o frio e a chuva que nos trouxeram de volta antes do combinado, foi mesmo uma delícia passear com ele de mãos dadas pela areia, dar muitos abraços no mar gelado, catar conchinhas desconfiando de que ali dentro ainda tinha bicho, deixar pegadas na areia, fugir da chuva, vê-lo experimentar o pé de pato na piscina...

Eu me surpreendo sempre, não posso negar. Com essa criança querida e tagarela; esse menino que já foi Gohan dentro da minha barriga, já foi bebê sempre no colo e agora é toda uma comprideza de pernas e braços, que se esticam elásticos para ampliar o mundo.

Na semana passada ele cortou o cabelo, e é sempre muito engraçado porque demoro a me reacostumar - fico estranhando, tomo sustos... reaprendo a vê-lo: a sobrancelha tão igualzinha à do pai, que estava escondida sob a franja, os olhões de mangá, de cílios tão compridos que chegam a fazer cócegas na vida toda vez que ele pisca. Todo misturado, mas tão ele mesmo, esse menino.

É tão pequenino, em tudo aquilo que ainda não conhece. E tão imenso, de tantas possibilidades. Super companheiro para passeios a pé, jogos de tabuleiro ou cartas, aventuras culinárias, viagens, danças, festas à fantasia, caretas estranhas, preguiças matinais, pinturas a dedo, brincadeiras de massinha e filmes de aventura. Cheio de doçuras e brabezas - ambas igualmente intensas.

É coisa querida da vida, esse menininho de cinco anos. Bem menos meu do que já foi: vai saindo do colo, para caminhar ao lado. Parabéns, Rô! E mil beijocas na ponta do seu nariz-meleca.

08 outubro, 2010

Manteiga

Este semestre, as quintas-feiras têm sido de muita correria, já que dou aula à tarde e à noite. Mais do que isso, tem sido também de muita saudade do Rodrigo, pois o levo na oficina de brincadeira de manhã e é o Edu quem pega, leva para almoçar, leva na escola... E quando chego em casa, às 11h, o menino já está bem longe, nos braços de Morpheus.

No começo, quando comecei a dar aulas à noite, ele ainda conseguia adotar umas estratégias de acordar quando eu chegasse - dormia às 7h, sem jantar e por volta das 11h levantava, para um lanchinho e um carinho. Mas depois foi se acostumando e aí a gente só se via mesmo no outro dia de manhã.

Ontem, mal tinha chegado em casa, de repente vejo um menino muito saltitante e sorridente passeando pela casa. Todo feliz! Tão querido! Me deu um beijo, conversou um pouco e depois voltou a dormir.

Hoje de manhã, conversando com ele, comentei: "filho! você ontem acordou de noite". E ele, muito docemente, me dando um beijo na testa, "foi pra ver você, mamãe".

O coração cresce-cresce dentro do peito, chega a perder a borda de tanta ternura. Feito calda quente que se esparramasse macia, cavando novos caminhos por onde inventa escorrer. Meu coração de mãe, às vésperas dos cinco anos do Rodrigo, agora é assim: inteiro estriado de sustos e surpresas, sulcado das enchentes súbitas de tantas doçuras inesperadas.

29 setembro, 2010

pra ninar gente grande

Ah, que delícia encontrar essa música! (via Nassif).



"quando estou nos braços teus
sinto o mundo bocejar
quando estás nos braços meus
sinta a vida descansar

no calor do teu carinho
sou menino passarinho
com vontade de voar
sou menino passarinho
com vontade de voar"
(Luiz Vieira).

25 setembro, 2010

boniteza

Então. Amanhã escrevo com mais calma, porque essa semana acabou meio em clima de Agosto - uma tristeza funda e dolorida frente ao desencontro entre aquilo que somos, o que podemos ser e o que está sendo feito dessas possibilidades. Eu bem acho que esse desencontro todo tem a ver com a distância que vai do cotidiano da gestão e da política que acontece no todo dia (aquilo que a gente vem chamando desde 88 de  mecanismos de democracia participativa) e o espetáculo da política que se encena nos momentos rituais de celebração da democracia representativa. Acho mesmo que, à medida que a democracia se consolida, essa distância, se não pensada e nomeada, traz a sensação de descolamento entre o que somos e o que parecemos ser - porque só há pouco temos aprendido a olhar o que de político há em diferentes níveis, inclusive no mais próximo, como reclamar do mau atendimento no posto de saúde ou tentar mudar a lógica das relações sociais no próprio ato. Mesmo reconhecendo essa distância, é tão dolorido ver - naquilo que deveria ser a festa da consolidação de nossas recentes transições democráticas - o envenenamento dos ânimos, a exaltação das posições irracionais, que não só desconhece o Brasil que nos tornamos do ponto de vista econômico e social, mas também desrespeita as aprendizagens às duras penas do Brasil que nos tornamos do ponto de vista político, desmerece o recalcitrante desejo de cidadania dos homens e das mulheres que vivem e trabalham todos os dias, e que todos os dias têm que se afirmar como cidadãos mesmo quando as condições não permitiriam sequer sugerir tal coisa, porque não é assim - como cidadãos iguais, com direitos e deveres iguais - que são tratados. Desmerece também os esforços e sacríficios daqueles que têm dado suas vidas a estruturar políticas, construir e consolidar programas, fazer funcionar a máquina administrativa por vezes tão frágil que a gente chama da Estado, em prol do cidadão que reconhecem em cada indivíduo. Então, desculpem pelo desabafo, mas como disse, andou difícil, andou pesado... Por outro lado, como dizia o André Abujamra, "o açúcar é doce, e o sal é salgado", então caminhemos que a vida é assim mesmo: às vezes peso e amargor, às vezes leveza e doçura, e a maior parte do tempo as duas coisas juntas ao mesmo tempo.

Mas aí que, passeando pelo youtube, encontrei esse vídeo do Milton cantando "Clube da Esquina nº 1", e foi tão preciso que divido aqui com vocês, junto com a minha esperança de que a manhã e setembro nos cheguem, que essa pequena noite seja vencida, que as janelas se abram e que nos encontremos na esquina, nas esquinas.

20 setembro, 2010

segunda-feira

- minha mãe esteve em Maputo e voltou tocadíssima com o país e, sobretudo, o povo. Voltou também com um quebra-cabeça muito legal de madeira, tridimensional - o do Rodrigo é um hipopótamo. Ontem, ficamos Rô e eu, ainda de pijamas, por quase duas horas montando o bichinho. Bobinhos, começamos a destacar as peças da placa de madeira antes de ler as instruções e depois tivemos que recolocar todas, para poder identificar o número das peças pela posição! Foi bem divertido... Rodrigo, de vez em quando, olhava aquilo tudo e dizia "não tô entendendo mais nada...". Pior que tinha hora que eu também não :-)

- Fomos ao Festival Internacional de Cinema Infantil, ontem, que era o último dia. Pegamos a sessão de curtas - foi bacana, mas como os curtas são muito diferentes (inclusive do ponto de vista da qualidade), Rodrigo se encheu e acabamos saindo antes do fim. Agora, esse curta aqui, que foi premiado no Festival, valeu muito a pena! É tão simples e delicado. As lagriminhas teimosas rolaram bochecas abaixo :-)

- Falando em lagriminhas teimosas, estamos desenvolvendo um projeto na disciplina que estou dando este semestre de coleta de memórias escolares. Pra quem quiser ler - e também comentar ou mesmo escrever a própria lembrança - as histórias coletadas até agora estão no blog Memórias dos Tempos de Escola. Enquanto vou subindo as histórias e lembranças, de vez em quando me acomete uma lembrança das minhas próprias experiências escolares... Agora mesmo, me lembrei da festa do estojo no começo do ano: a caixinha verde, com tampa de madeira, plena de lápis pretos, 12 lápis coloridos, apontador e borracha. Caneta bic, só na 5ª série... E o sonho de consumo era ter um daqueles estojos de pano, em que as canetas e lápis ficavam presos com elástico! (desses, eu nunca tive). Nossa! Até fui parar de repente naquela sala de 1º série, da "Tia" Déia, que parecia tão grande (embora fossémos apenas uns 15 alunos na sala) e tinha uma porta direta para a sala da direção! Não tenho saudade da escola, mas dá uma nostalgiazinha, sim, daquela percepção do tempo e do espaço, em que o mundo era amplo, o tempo era largo e tudo estava por ser conhecido.

- quando, no final do domingo, a gente percebe que esqueceu durante todo o fim de semana de tomar o remédio para ajudar a lidar com o stress, deve ser algo bom, né?

15 setembro, 2010

abandono

para v.

Assim que o filho finalmente se rendeu ao sono provocado pela monotonia da paisagem correndo indistinta pela janela, retirou da bolsa o pequeno tesouro de capa cor-de-rosa. Era muita estrada pela frente e, enquanto o ônibus vencia o asfalto, ela percorria as páginas daquela casa erigida com palavras. Com algum pudor inicial - ao invés de proteger, a casa desnudava -, embarcou na aventura prometida, balouçando (é bonita essa palavra, que sacoleja e ecoa o tilintar de louças brancas ou azuladas?) com as personagens no ritmo do trem. No começo estranhando as sentenças um pouco soltas como os pensamentos que a gente tem quando se ocupa das miudezas do viver, mas rapidamente adentrando aquela imensidão dos grãozinhos de histórias que lhe lambiam os pés e depois chegavam ao joelho e então ao umbigo e aos seios até que estava inteira mergulhada no cotidiano do ir e vir daquele trem, no ir e vir daqueles dias, no ir e vir da vida. O dia a dia cansativo e duro transformado em atenção; a atenção espelhada em encontro; as transparências do vidro em suas diversas formas cintilando, rebrilhando o invisível para permitir e fazer ver. Uma narrativa toda viva, pulsando os sustos do encontro. Até que vida milagrosamente parece recomeçar - e começa. Meio bicho, inteira humana. Ao fechar o livro - ainda longe do destino - surpreende, sem espelho, o sorriso largo em meio à cara. Um arrepio de dor assombra o músculo e sugere que estava sorrindo já há algum tempo. Já é noite fora do ônibus, o filho pequeno se aninha em seu braço. A sensação, no entanto, é de explosão de luz: madrugada alaranjada soprando brisa e fazendo festa dentro dela.

Imagem: daqui.

08 setembro, 2010

Paixão pela palavra

Linda demais a entrevista da Nélida Piñon à Revista Pesquisa FAPESP. Pelo que me lembro, nunca li nenhum livro dela; fiquei com vontade de ler.

feriado

- Sexta-feira, depois de mais de um ano e meio sem visitar meus avós, Rodrigo e eu fomos finalmente vê-los. Eu ainda não tinha conseguido ver minha avó depois que ela fez uma cirurgia no joelho, que teve uma recuperação complicada depois que ela caiu uma noite e os pontos abriram... Mas agora ela já está boa, conseguindo andar, e abusando de vez em quando de tanto ficar em pé para fazer as coisas. Vejam vocês: teimosia é herança de sangue...

- E foi uma delícia ficar só batendo papo, jogando joguinhos com Rodrigo, sabendo de como andam as coisas e as pessoas. Contar ao Rodrigo histórias de infância, estando ali nos espaços que dão suporte à memória.

- Cansada de ver meu pão ficar meio embatumado, resolvi não adiar mais e comprar a máquina de fazer pão que namorava há tempos. Estou feliz da vida! O pão cresce animado, e fica uma delícia! O problema agora é a gente conseguir manter a dieta com tantas possibilidades de pão... Ontem fiz um integral e, como Rodrigo é ciumento e não gostou nada dessa história de só a máquina se divertir e quis porque quis fazer um "pão de mão", também fizemos um pão de batata doce - para aproveitar uma que já estava assada. Modéstia à parte ficou terrivelmente gostoso ;-) E eu ainda fiz queijadinha de tabuleiro - que aprendi com a minha avó. Chama "dieta de engorda"... 

- Como na sexta-feira tinha passado na biblioteca, resolvi reler Um copo de cólera, do Raduan Nassar. Eu tinha lido há uns quinze anos, mas me lembrava muito vagamente. Embora entenda que em determinado momento posso ter tido outros sentidos, detestei. Detestei-detestei. Acho que já falei, né, que tenho sérios problemas com literatura violenta, e o livro todo é de uma violência gratuita e auto-referida de dar enjôo.  #prontofalei.

- Estou ouvindo o cd novo do Interpol. Tem gente que não gostou, mas vou dizer: pra mim, soou como Interpol em sua melhor forma, tipo o primeiro cd (Turn on the bright lights). Se bem que eu sou suspeitíssima, né? Tenho dois cds dos caras no MP3 (agora vão ser 3!) que não consigo tirar nem tentando me convencer que é bom ouvir coisas novas - tem dias que só Interpol resolve.

- Outro cd novo que é ótimo é o do Arcade Fire (Suburbs). De deixar na repetição um dia inteiro :-)

- Então, pra começar a semana curtíssima, bocadinho de Arcade Fire, bocadinho de Interpol.



01 setembro, 2010

Sismo


 Em pleno dia. Quando no meio do rotineiro a gente nem imagina que algo possa desviar em consciência. Assim, no meio da tarde ensolarada e azul. Quase no automático, saca a agenda e se prepara para anotar as tarefas do dia seguinte e a caneta vacila - ou seria a mão a vacilar? A mão, sua mão, tonta frente à página em branco, esquecida do destino que ensaiava desenhar. O pequeno vacilo e o mundo erra. O amanhã virado em dúvida. O cotidiano todo borrado, a alegria de sol virada postiça e ela a estranhar a si mesma no vidro que está à frente. Pronto: mudou o eixo. Querendo tomar posse de si mesma, retoma a tarefa - a lista longa de afazeres vai se desenrolando sobre o papel, na letra miúda e apertada que rouba ao branco o respiro das entrelinhas. A rachadura aberta por dentro anunciando uma nova cicatriz.

Imagem: daqui.

29 agosto, 2010

Domingo


- Vai daí que na semana passada o Rodrigo teve dor de ouvido, não foi na escola na terça, nem na quinta, nem na sexta. Não teve febre, só dor. E parou total de comer. Desde ontem está melhorzinho, mas só na segunda vamos saber se a inflamação diminuiu mesmo. E o pior é que ele está (ou está gostando de fingir que está) um pouco surdo. Na sexta-feira, eu falava com ele e ele me dizia "não tô ouvindo nada, mãe, porque esse ouvido não quer escutar".

- Então, na sexta ele foi comigo pra USP, prometendo que ia me deixar trabalhar um bocadinho. Levamos giz-de-cera, papel, caderno de pintura. E, é claro, tive que resolver as coisas que eram mais urgentes com ele falando comigo o tempo todo :-)

- Quando chegamos à biblioteca, ele pediu para pegar um livro e, enquanto escolhíamos (acabamos trazendo um ótimo, do Ricardo da Cunha Lima, chamado Cambalhota), resolvi trazer também o  do Rodrigo Lacerda, Fazedor de Velhos, que já namorei várias vezes mas acabei nunca comprando. Resultado: na sexta-feira, fui deitar por volta das 10h da noite e não dormi enquanto não acabei de ler o livro! Gostei muitíssimo.

- Gostei muitíssimo por variadas razões. Primeiro porque lembrou um pouco os livros que eu lia quando tinha a idade de ler os livros "infanto-juvenis", histórias sempre um pouco doloridas sobre os lutos e os ganhos de crescer. Mas ainda que tenha lembrado, o livro é bem melhor daqueles que eu lia, provavelmente porque - tenho a sensação - é tanto uma narrativa sobre se tornar adulto quanto uma declaração de amor à literatura. Uma espécie de aposta em que as ficções, a boa literatura, a poesia e a prosa com suas figuras e ritmos, contribuem para que as passagens e transições sejam realizadas de modo amoroso - assim, tanto um livro quanto uma companhia, tornam tudo mais leve (e, paradoxalmente, mais fundo). Ensinam. Põem nome no que, na intensidade do fluxo, se perderia. Fazem o tempo que escorre sem pausa pingar mais devagar, deixando na areia uma marca legível.

- Gostei também porque me identifiquei, nas várias vezes em que me senti pouco adequada para a sociologia; em que escutei que o que fazia era teoria literária e, quando fui para a teoria literária, escutei que fazia sociologia; e quando escrevi uma dissertação com tanta preocupação com o que ouvira e vira que achei que aquilo ainda não era sociologia; e quando escrevi uma tese em que menos importância que os achados tinha o percurso e isso também não parecia sociológico. Eu sempre inadequada, juntando o rigor do trabalho e da pesquisa a uma forma pouco usual de apresentá-las, tentando usar a honestidade e a narração como parte indissociável daquilo que sai à luz. Mais preocupada com o leitor do que com a banca.

- E agora estou acabando de ler o Mia Couto, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, presente do Jorge e da Priscila. Ele tem um jeito bonito de escrever, lapidando cada frase  de um jeito que a gente tem a impressão que não importa muito como a história vai se desenvolver; importam mais as trincas que cada pérola dura vai riscando dentro da gente. Eu queria mesmo ler um livro dele, desde que tinha dado pro Mauricio um livro infantil, chamado O Gato e o Escuro, que tinha me deixado muito emocionada. Estou gostando, sim, mas tenho medo do que acontece quando a gente lê até o fim um livro que vai abrindo buracos na nossa superfície: e se, ao acabar, a casca rachar inteira e eu me apanhar desprotegida?

- Tenho sonhado bem mais que o que costumava: sonhos longos, sonhos cotidianos, sonhos de trabalho, sonhos tão reais. Sonos agitados de Agosto. Ainda bem que setembro é ali, logo depois da esquina da semana.

- Ah! E ainda por cima ando sensível e de choro fácil. E fui inventar de comprar pro Rodrigo um livro chamado E o que vem depois do mil? Achando que era um livro sobre qualquer coisa, só porque é uma pergunta muito parecida com a que o Rô adora me fazer. "O que vem depois do vinte? E do cem? E do mil?". Comprei fechado mesmo. Chego em casa e abro, e decido ler. E aí é uma história de amizade entre uma neta e seu avô e ele fica doente e depois morre e eu chorei, chorei, chorei e mal consegui contar a história pro Rodrigo sem ficar toda engasgada, com um nó bem apertado me amarrando a garganta. Ninguém manda comprar livro só pelo título.

- Então é isso. por aqui: esse silêncio borbulhante. Boa semana para vocês e façamos como a Clarice  Lispector - de cada domingo à noite, um reveillon modesto.

Imagem: www.gettimages.com

23 agosto, 2010

anotado a lápis


Fim-de-semana de visita à mãe, onde topei com memórias empoeiradas - feitas de papel, de caneta, de gesso e de metal. Misturadas todas na gaveta do armário.

Tinha a embalagem do livro que o Petronio me trouxe de além-mar, registro de carinho e conspiração por e-mails com a Ana Lucia; tinha lembranças de casamentos, nascimentos e variados quinze anos; ttinha a carteira de vacinação e o último boletim do colégio, com mensagem querida da professora predileta; tinha o bilhete delicado que o Ricardo me mandou quando passei no vestibular, lembrança incandescente do vazio de maré cheia que ele deixou.

E daí encontrei trechinhos de leituras que ia fazendo. Como esta, com data de maio de 2001:

 "Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o ruím ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero todos os pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado" (João Guimarães Rosa, no Grande Sertão: Veredas).
 
Encontrei também alguns bilhetes e cartas da Ana, que por alguma razão escaparam à reunião na caixa comum. Como um pequenino papel onde pousa uma borboleta amarela:
 
"E isso implica um trabalho sobre os limites e no limite da arte, à beira do abismo - onde o disforme resiste à forma, impele ao fracasso e deixa adivinhar o impronunciável" (Plínio W. Prado Jr, na apresentação à Descoberta do Mundo, da Clarice Lispector).

Foi tão bom jogar uma porção de coisas fora! Como se, ao perder certas chaves de mim, ficasse leve para me reinventar.

Imagem: Nacho Gómez.

20 agosto, 2010

acordar

e então eu olhava aquele homem jovem, com barba macia e bem aparada e pensava "como pode, tão jovem, escrever como um velho?" e ele era o saramago; O saramago, estranhamente tão jovem e tão bonito. E eu olhava para ele, entre espantada e atônita, querendo adivinhar naquele homem de barba macia e olhos claros o que havia de sabedoria e depósito de vida vivida. Olhava, olhava, e não acabava de olhar, próximos todos de um carro que estava de partida. As portas abertas, e ele tão estacado, sem nenhuma menção no corpo de entrar (ou de partir). Paralisado na minha admiração. E eu estranhava aquele homem tão jovem e tão belo, tão altivo e tão famoso, O saramago. Quando lembrei: Saramago está morto. Com susto por detrás do coração. E eu absolutamente confusa diante daquele homem que não pode ser saramago, que até então era saramago, que podia ser filho de saramago, tão bonito e tão jovem, tão esfinge. Feito sonho indecifrável.

14 agosto, 2010

Atravessando agosto

Sem muitas palavras (pelo menos por aqui). Tentando aprender a pousar mansamente e a ter paciência com meus passos lentos e com a travessia (sempre incompleta).

Daí a feliz coincidência de encontrar a Elis, linda-linda-linda, cantando o (re)pouso e também a partida.


02 agosto, 2010

Caminhos

Olha, não é só porque a Andrea é minha médica (infelizmente, apesar de conhecer o Coletivo  Feminista - que foi onde ouvi pela primeira vez a expressão "medicina doce", sobre a qual falei recentemente - desde meus vinte e poucos anos, só a conheci depois do nascimento do Rô) ou porque tenho imensa admiração por ela: é que é muito emocionante saber que existem os que resistem ao modelo médico e conseguem construir outros caminhos: Ajudar a nascer. Leitura para alimentar as esperanças.

Confissão

Então, tá. Vou confessar: eu adoro coisas de papelaria (caderninhos, canetinhas, clipes, post-its e afins) e tenho um problema especialmente grave com marcadores transparentes. Adoro! Meus livros tem pequenas garras pintadas que se projetam de suas páginas. E o excesso de marcadores em alguns deles expressa minha empolgação com o texto, a vontade de sublinhar cada boa sentença. O que é obviamente é um tiro que sai pela culatra, já que aí ficam tantos marcadores que nem sei mais ditinguir o que importa do que não importa.

Tentei criar um código uma vez, tipo: laranja para um bom argumento, cor-de-rosa para boas referências, amarelo para novidade. Mas no meio da leitura não rola de ficar consultando tabela, né?

(no começo do ano, fui conhecer um colega que só conhecia de ler e de trocar e-mails e aproveitei para levar o livro dele, para que ele autografasse. Só na hora de tirar na prateleira é que me dei conta: o livro parecia um arco-íris, de tanto marcador... Quando ele viu, levou um susto, mas depois deu risada e comentou "é, parece que você leu mesmo...")

Fato é que nesses dias, em que estou terminando a seleção de textos para a disciplina que vou dar e que tirei uma porção de livros da prateleira, estou super contente, porque achei vários pacotinhos de marcadores que tinham ficado perdidos no meio dos livros, alguns deles ainda com todas as cores!

Cada louco com a sua mania...

25 julho, 2010

Falando da vida, falando da morte


O post que eu tinha começado a semana passada continua do mesmo jeitinho - inacabado.
Mas pelo menos o post que também estava no rascunho há tempos, no Margens, hoje deu pra escrever: Quando a vida é uma ordem. É sobre cuidados paliativos. Eu sei, o assunto não é exatamente agradável, mas nem por isso é menos necessário pensá-lo e falar sobre ele.

Tem uma expressão de que gosto muito e que, apesar dela se referir especificamente a tratamentos alternativos em saúde, acho que cabe em discussões como essas: "medicina doce". Pra mim, como paciente e usuária do sistema de saúde, quando penso em como gostaria de ser não somente tratada, mas cuidada pelos profissionais de saúde, é com essa "doçura" de que os cuidados paliativos também são exemplo: respeito à vida, informações claras e claramente comunicadas, o mínimo de exames e tratamentos agressivos ou invasivos... 

Mudando de alhos para buganvílias (meu avó falava de alhos para bugalhos, mas a Veronika subverteu a expressão e todos concordamos que bungavílias são tudo de bom nessa vida...), hoje assisti comediazinha romântica com o moço bonito que eu adoro... bobinha e previsível (como todas as comédias românticas), mas gostosinha. Pra botar o coração de molho no vinho e ver se a segunda-feira amanhece macia...

Ah! Pra terminar com boniteza:

Orvalho
O poema se vestiu de nuvem
e no horizonte adormeceu lilás.

E o frio que seguiu foi culpa do vento:

espalhou a poesia em gotas.

Thalita Martins, nos Pássaros Achados. Lindo, não? E uma das coisas que eu mais gosto nessa vida é grama molhada de orvalho - o cheiro, a sensação de pés descalços... "poesia em gotas", que a gente sorve homeopaticamente, mais para alimentar a sede do que para saciá-la.

Imagem: www.gettyimages.com

19 julho, 2010

Variadas


* Até tinha começado outro post, no final de semana, mas aí Rodrigo está de novo baqueado de gripe, de modo que passamos o final de semana meio de molho. Mas também, como é que podia ser diferente, com o frio dolorido que andou fazendo? So da mesmo vontade é de ficar amontoadinho, enrolado no edredom, tomando chá de hortelã e comendo...

* E por falar em comer, para distrair o Rodrigo uma estratégia que é (quase) sempre um sucesso é cozinhar. Na sexta-feira à tarde, decidimos então fazer muffins de blueberry (a partir da receita da Neide, de muffins de pitanga) e cookies de banana (a partir da receita que ele trouxe do Familiarte).

Os muffins ficaram deliciosos e a gente fez direitinho como manda a receita, com exceção, talvez, das raspas de limão, pois em casa só tinhamos do limão tahiti (quero dizer, até tinha um restinho de limão rosa, mas a casca não estava convidativa à experiências...). 

Vou confessar: estava traumatizada de experiências com muffins - eu tinha tentado fazer duas vezes, para levar ao piquenique, os muffins de maçã de um livrinho que tenho em casa. Da primeira vez eles não cresceram - fiasco total. Da segunda, foi pior: os tais ficaram salgados (culpa minha que li na pressa e botei bicarbonato a mais). Mas a receita do Come-se estavam tão convidativos... Quando saíram do forno, marido exclamou "agora sim!!!".

E respondendo ao pedido da Priscila, a receita dos cookies de banana é a seguinte:

Ingredientes

1 xícara (chá) de manteiga
1 banana amassada
2 colheres (sopa) de água
1 e 1/2 xícara (chá) de açúcar mascavo
1 xícara (chá) de çúcar cristal
2 xícaras (chá) de farinha de trigo (branca, integral ou meio a meio)
2 xícaras (chá) de aveia em flocos finos
1 colher (chá) de fermento em pó

Numa tigela, junte a manteiga, a água, os açucares e a banana amassada. Em outra tigela, coloque a farinha, o fermento, a aveia e misture bem.
Feito isso, misture todos os ingredientes formando uma massa homogênea com bastante liga. Unte uma assadeira grande e pré-aqueça seu forno. Enquanto isso, vá fazendo bolinhas, achate-as e depois as coloque na assadeira. Leve para assar em fogo baixo por 15 minutos e assim que as bordas dos cookies ficarem douradas, é hora de tirá-las.
Você pode também acrescentar na massa gotas de chocolate (granulados costumam ressecar), passas ou nozes.

Fica simplesmente maravilhoso. Os daqui de casa, mesmo eu tendo deixado passar do ponto e ficar mais durinhos, acabaram rapidinho!

* Ontem, fiquei assistindo a entrevista do Zizek no Roda-Viva. Vale muito a pena!

* E acho que por enquanto é isso: essa navegação mansa pelas superfícies do viver... É que às vezes a gente precisa mesmo disso - tomar folêgo e despressurizar antes de empreender um novo mergulho.

09 julho, 2010

Reparação

Já faz um tempo, mas eu ainda não tinha ainda tido a calma para escrever.

No meio da gripe do Rodrigo, estávamos nós dois sentados no sofá em plena quarta-feira à tarde e, enquanto ele assistia desenhos, eu passeava por blogs. Nesses passeios, fui visitar o da Julia, minha enteada do meio (na verdade, só tenho duas enteadas, mas como penso no conjunto dos filhos da família, ela é a do meio, entre a Bia, a mais velha, e o Rodrigo, o mais novo, e não tem jeito de eu falar de outro jeito).

Comecei lendo a última postagem, feliz que ela começara a postar trechos de um livro que está escrevendo (sim, ela escreve, e bem!). Aí fui passando para a postagem de baixo, desavisadíssima. Lia e parecia que não entendia,  lendo ali um pedaço da nossa história, os olhos enchendo de lágrimas, o susto de quem foi pego desprevenido. Rodrigo, ao meu lado, me olhando meio consternado: "mamãe, por que você tá chorando?". Expliquei: "é que a Julia escreveu uma coisa muito bonita e a mamãe está muito emocionada". Acho que a resposta foi satisfatória, porque ele voltou a assistir seu desenho.

À noite, quando as meninas chegaram, tentei - envergonhada e delicadamente - contar para a Julia que tinha lido. No que fui absolutamente frustrada pelo meu filhote dedo-duro, que de cara entregou "É, ela viu. Chorou muito!". Com mais vergonha ainda, só me restou agradecer. É que tem coisas que é difícil mesmo pôr em palavras, ainda mais essas, tão cheias de sentimentos.

Quando conheci o Edu, conversamos por longas horas, e ele me contou das suas filhas. Depois disso, demoramos a nos reencontrar, o meio tempo entremeado por mensagens que foram se tornando cotidianas, e ele sempre me falando delas, do bom gosto musical e da inteligência da Bia, da doçura, sensibilidade e bailarinagem da Julia. Então, logo que começamos a namorar, foi ao mesmo tempo estranho e natural que ele logo quisesse me apresentar a elas.

Deu medo, confesso. Início de namoro nunca é fácil - mas ser apresentado aos filhos, ainda mais quando o pai é como o Edu, cuidador zeloso e apaixonado, dá mais frio na barriga que ser apresentado aos pais. Faz tudo parecer mais sério. De modo que, uma semana depois de começarmos a namorar - uns três meses depois de nos conhecermos - lá fui eu conhecer as meninas.

Minhas lembranças são muito parecidas com as da Julia - fim de tarde, Edu preparando um yakissoba, a descoberta de amigos em comum, e enquanto a Bia conversava e contava histórias, a Jú, envergonhada, parecia querer se esconder atrás (ou dentro) do Edu.

Em começo de namoro, a gente sempre é convidado a se ampliar por dentro, abrindo espaço para a outra pessoa. Eu, privilegiada, tripliquei meu espaço interno para acolher os três, que também me acolheram e aceitaram. Sem pressa alguma, fomos todos aprendendo a ser essa nova família.

Nesses nove anos desde o início do namoro, vi as duas crescerem, virarem mulheres lindas, inteligentes, absurdamente queridas.

De modo que eu só tenho a agradecer, pois sem as duas, certamente eu também não seria quem sou hoje - sem elas, talvez não haveria tanta preocupação em fazer o apartamento de homem do Edu ficar mais parecido com uma casa-lar, nem haveria cuidado em preservar tempo no meio de mestrado/doutorado para estar com elas e vê-las crescer, nem haveria uma porção de filmes, músicas e séries descobertas e partilhadas.

Aliás, talvez não houvesse nem casório, já que foi a Júlia a me dar um ultimato, na lata, no estacionamento de um hortifruti que nem existe mais: "mas você quer casar com o meu pai, né?". Engoli mais seco do que se fosse um pedido de casamento :-)

O amor, o carinho, a admiração são recíprocas, Ju, tenha certeza.

05 julho, 2010

Pão com ovo

Depois da Veronika ter escrito lá no Piperca (apelido super simpático e charmoso inventado pela Neide) sobre a importância de, nos piqueniques, levarmos algo mais ao paladar dos pequenos - que, em geral, correm, exploram, brincam e pulam e quase não comem - tinha ficado pensando no que levar. E aí, na semana passada, fui começar a (tentar) trabalhar e marido tinha deixado aberto o blog do Katsuki, num post sobre piquenique. Então, resolvi: ia levar pão com ovo.

A decisão me levou longe no tempo. Quando eu estava na 5ª série (a antiga, que a gente fazia aos 10 ou 11 anos), minha melhor amiga era a Anna Carla. A gente se conhecia desde a 4ª série, e já éramos bastante amigas - eu achava o máximo o fato dela ser chilena e adorava visitá-la, para ouvir a família toda falando em espanhol... Além disso, seus pais eram separados como os meus, o que me fazia me sentir um pouco menos anormal (naquela época, eu só tinha duas amigas cujos pais tinham se separado, a Anna e a Paola).

Depois que a mãe dela se casou de novo e engravidou, eles se mudaram para uma casa mais longe, o que tornou nossas visitas menos constantes. O engraçado é que pouco me lembro da nova casa deles, mas me lembro bem do encantamento de andar no trailer da família. Era simplesmente o má-xi-mo!!

Mas me lembrei da Anna Carla porque, enquanto ela ainda morava mais perto e as visitas eram mais comuns, eu adorava dormir na casa dela. Aos finais de semana não haveria tanta graça; eu gostava mesmo era de ir dormir lá em dia de escola. A gente brincava, papeava até cansar e, no dia seguinte, a mãe dela nos acordaria cedo, nos faria café e prepararia a iguaria tão cobiçada: um sanduíche de pão com ovo, em pão francês.

Eu não sei bem o que me encantava mais - que a mãe dela preparasse o lanche (acho que eu levava bolachas de pacotinho ou, mais tarde, dinheiro para comprar algo na cantina), que ela se preocupasse com o meu lanche, que na hora do recreio (eita palavrinha velha!) eu tivesse aquele segredo de ovos guardado na mochila... O fato é que, por muito tempo, quando eu queria uma comida de conforto, daquelas que imediatamente fazem a gente se sentir acolhido e amparado, frequentemente minha escolha recaía sobre um pão francês com ovo. Comida que, pra mim, sabe a cuidado e partilha.

E que alegria foi ver a criançada comendo os tais sanduichinhos, recheadinhos de salada de ovos e de memórias de infância!

30 junho, 2010

A Toy Story

Não, não vou falar do filme. (A gente até foi ver no fim de semana de estréia e eu tinha pensado em escrever a respeito já que o curta é lindo, o filme é muito bom, eu chorei em bicas, o Buzz Lightyear é a melhor personagem ever... Mas acho que perdi o momento oportuno e agora fiquei vazia de vontade de falar do assunto). Então, retomando, não é sobre o filme que vou escrever, mas sobre o brinquedo predileto do Rodrigo: o Amigão.

Desde que o Rodrigo tinha um ano, ele adora um boneco de pano que herdou da minha sobrinha - uma espécie de travesseirinho, com roupa xadrez e mãozinhas e perninhas mamolengas. Já falei dele algumas vezes, porque foi devido ao Amigão que acabei me aventurando no mundo da costura, e, como uma coisa leva a outra, foi por causa dele que aprendi a fazer softies variados, comecei a fazer barras de calças em casa e, por tudo isso, até ganhei uma máquina de costura de presente da minha avó. É que, volta e meia, a roupa do Amigão tinha que ser refeita e aí, nessa de praticamente costurar um novo Amigão, acabei tomando gosto pela coisa.

O Amigão já viveu várias aventuras. Como o Rodrigo não dorme sem ele, já rolou lavá-lo e em seguida secá-lo no forno (e já rolou também de eu, atrapalhada, errar na regulagem do forno e queimar todo o forro do bichinho - e dá-lhe costurar um novo forro!); já rolou esquecê-lo na casa de um amigo ou na padaria;  já houve tentativas de substituição, sempre frustradas... E o Amigão já foi muitas vezes à escola, ao parque, ao cinema. Até na médica ele ia junto, para ser pesado e medido, cuidador zeloso que o Rodrigo é.

O Amigão é o companheiro-mor do Rô: já foi lenço, já foi saco de pancadas; é companhia na hora de dormir; é com quem ele aprende a ser pai; é com quem ele aprende a respeitar os limites do outro, menorzinho, mais frágil (vira e mexe ele vinha me explicar as razões pelas quais o Amigão não podia fazer certas coisas, por ser pequeninho, por ser neném...).

Imaginem então vocês o susto que tomamos ontem, depois de voltar da visita à médica (e o Amigão continuava pesando seus 100 gramas!), e constatarmos que o Amigão não estava. Procura dali, procura daqui, refaz mentalmente os passos, liga pro supermercado onde paramos para beber água, liga na companhia de ônibus e nada de Amigão.

Meu coração doído ao ver os esforços do Rodrigo em conter o desespero. "Acho que ele caiu na rua, mãe!"; "Acho que ele está triste e sozinho"... Pior mesmo quando ele me confidenciou: "mas mãe, eu sei o cheiro dele"!

E não é mesmo absurdo que possa desaparecer no mundo aquele pedacinho de coisa que a gente ama a ponto de conhecer os detalhes, de saber de cor o cheiro? Não é da memória desse convívio intenso e cotidiano que a saudade é feita?

Choramos, lembramos, nos doemos. E ele me pediu para fazer um novo Amigão. E eu, tão triste quanto ele, fui fazer. Montei a máquina, cortei os panos, costurei os pedaços. Ficou a cara do antigo. Mas não era o antigo. Na hora de desenhar os olhos, a boca e o nariz, Rodrigo se lembrou do detalhe: "mãe, ele tinha uma coisinha assim no nariz", um pequeno restinho do traço que fez o círculo; fizemos igual. Mas não era o mesmo Amigão - não tinha vivido com o Rô tudo o que o velho viveu, não tinha o mesmo peso, nem o mesmo cheiro.

Rodrigo dormiu agarrado ao novo Amigão e ao fiapinho de esperança que tivéssemos esquecido no ônibus e hoje estivesse nos Achados e Perdidos. Fiapinho frágil, eu sabia, o que só me dava mais tristeza de antecipar a frustração mais uma vez.

"Tomara que alguma criança boazinha o encontre e cuide bem dele", era o que eu pensava. É que também me afligia pensar no Amigão abandonado em alguma calçada ou, pior ainda, jogado no lixo. Coisas que carregam tanto amor não deviam sumir assim.

Às dez ligamos novamente na empresa de ônibus. Infelizmente, só sacolinhas, casacos e muitos documentos. Rodrigo chorou de novo.

Quando comecei a escrever esse post, o final da história era triste: Amigão desaparecido no mundo, nós com saudade, lamentando a perda.

Mas eis que, descendo para encontrar o Edu, esperávamos na calçada e, de repente,  o Rodrigo me puxa e aponta: "olha, mãe, é o Amigão!". Atordoada, olho pro chão e vejo o Amigão, ensopado, sujo, atropelado... Mas lá. Era ele mesmo. Feliz, peguei o bichinho que agora está na máquina de lavar, tomando um merecido banho.
Não sei onde o perdemos, talvez tenha sido mesmo logo aqui, no portão de casa. Mas a meninice dentro de mim me sussurra que não - que o perdemos mais longe, e que ele aproveitou a noite escura para vir andando até aqui, com suas perninhas malemolengas, seu corpinho que nem pára em pé e, sobretudo, com o amor imenso que ele tem pelo Rodrigo - cujo nome está impresso na costura de sua roupinha.

É bobagem, eu sei. Mas o retorno do Amigão me renovou a fé e a esperança. Na vida. No encontro. No amor.

(E talvez, falando do Amigão, eu esteja afinal também falando do filme...).

25 junho, 2010

Deleite

Deleite é palavra erótica: cheia de abandono e gozo, de maciez e quentura. Deleite é cremoso e esparrama depois de cravada a primeira mordida, exigindo da boca e da língua o esforço inútil de não deixar nada se perder. Deleite é massagem sem pressa, mãos mornas deslizando, desfazendo nós, inaugurando lugares do corpo. É a água escorrendo quente pelo cabelo, pelo pescoço, pelos ombros, límpida e clara, lavando todo o peso do mundo. Deleite é embalo de rede, memória de útero tramada no pano. É música que escorre por dentro, acendendo arrepios e acordando meios-sorrisos. É escalda-pés ao fim do dia, os pés afundando na água fervente, avermelhando e depois se deixando ficar até se acostumarem à quentura (e à dor). Deleite é palavra boa, saborosa e úmida: derrete na boca feito doce aerado - os vazios dando lugar à plenitude do gosto. Pronunciá-la é estalar o prazer, no fundo da boca, no fundo do corpo.

23 junho, 2010

Quando o corpo consente*

Então que tomei chá de sumiço nos últimos tempos...Primeiro por correria mesmo: teve Brasília, linda e na lua cheia, plena de encontros e família; depois teve São Paulo fria e garoenta em inglês, já que fui a um seminário acompanhar duas estrangeiras - uma americana e uma canadense - que foram super pacientes com as ferrugens do meu inglês, e passeamos pela Paulista e pela Augusta, almoçamos no MASP e até tomamos café na Oscar Freire (o tempo era curto; eu queria mesmo era tê-las levado ao Centro); e depois teve feriado com filhote doente e, uma semana depois, quando ele melhorava, a gripe dele passou pra mim e ainda não foi embora.

Por conta da gripe não pude ir ao piquenique desse mês, num dia tão luminoso que só podia mesmo ter sido precedido de um longo período de cinza: o sol daquele domingo parece ter sido gestado devagarinho, para renovar as esperanças e tornar o encontro possível...

Pelo menos, uma semana depois, torcer pelo Brasil deu - embora o jogo mesmo tenha passado batido, tanta conversa e comida boa havia a ser partilhada.

E também deu para ir à defesa do Marcus - que sendo amigo da família Rillo Alencar só podia mesmo ser especial -, participar mais um pouquinho do trabalho bonito que ele fez (eu já tinha tido o prazer de revisar).

Só não deu para ir dar um abraço de verdade no Mauricio - mais um ano e mais um furo. Querido, não sei como você não me rifa! Mil perdões.

Depois de tanta coisa, tá tudo meio de perna pro ar: prazos de trabalho atrasadíssimos, textos empilhados, trabalhos de alunos a corrigir - tudo em meio a muito cof, cof, cof. Fora as pequeninas chateações, como a perícia médica para a contratação na USP, que tinha me liberado (já fui lá por três vezes) e agora pediu mais exames. Como se para ser contratada eu tivesse que estar perfeitamente adequada a todo e qualquer intervalo de normalidade... Dá uma réiva, que nem conto...

De todo jeito, estou tentando voltar a escrever, mesmo que seja difícil. E nem é pelo tempo. Acho que tem um pequeno agosto se formando por aqui, querendo abrir espaço para o novo florescer, querendo interromper essa correnteza sucessiva e incessante. É sempre um pouco dolorido e, por vezes, exige silêncio.

Por isso, quando fui dar título ao post, me veio à cabeça o título desse livro, composto pelos relatos de três mulheres sobre a gravidez e o parto de uma delas (escrevem a mãe, a filha - grávida - e uma parteira). Não, não estou grávida, nem pensando no assunto. É que não é só engravidar e parir que dependem do consentimento do corpo; depois dessa gripe, e dessa incômoda lembrança que o meu corpo pode me deixar na mão, fiquei pensando que adoecer também depende do corpo consentir. Adoecer também exige uma espécie de abandono, de confiança no próprio corpo, de respeito ao que ele pede - descanso, silêncio, muita água... Nesses nossos tempos, assim como parir naturalmente, adoecer não é fácil. Tem sempre imperativos  que nos atropelam, exigindo da gente estar bem e produtivo. Eu mesma acho que venho arrastando o adoecer pelo menos desde a entrega da tese (e lá se vai mais de um ano!). Dessa vez não deu: meu corpo me deu um ultimato e exigiu de mim parar um pouco.

Então, parei. E estou tentando retomar o movimento devagarinho.

Ainda bem que, no meio de tudo, tem a voz da Tulipa Ruiz para me embalar... Gentes, ela é linda demais! Eu comprei o cd e não canso de ouvir - parece que cada vez descubro uma coisa nova, uma música que vira preferida... (No domingo, eu cozinhava e ouvia a Tulipa e aí o Rodrigo chegou na cozinha e por lá ficou, voltando inúmeras vezes a faixa 9, dançando e pulando. Coisa querida da vida!).

Então, para encerrar o post e voltar (devagarinho) para a lista de afazeres, mais um pouquinho de Tulipa, falando inclusive de uma temporalidade lenta e própria ao amor.



* Título de Marie Bertherat, Thérèse Bertherat, Paule Brung (São Paulo: Martins Fontes, 1997).