13 outubro, 2010

pequenino conto de terror e ternura


Ele foi minha primeira paixão. Amor, já tinha tido alguns; poucos, já que nem acabara de dobrar a esquina da infância. Alguns: platônicos, enrolados, feitos de olhares de longe na hora do intervalo escolar ou de timidez, nos bailinhos e festas. Mas paixão? Só com ele mesmo.

Uma noite, devia ser dezembro, estávamos namorando na rua dele quando ouvimos uma freada brusca e, em seguida, um carro acelerando. Corremos para ver o que era e encontramos já uma pequena aglomeração se formando, em torno de um gatinho atropelado. Não olhei direto, aflita com a morte tão próxima - ainda mais tão de repente, esquecida que estava de que o corpo é também peso frágil  (naquele momento, o corpo era só leveza de pelos arrepiados). Ele sim, mais corajoso, olhou, chegou perto, reconheceu o bichinho, lamentou. Lamentamos. A morte do gato e a covardia do motorista.

Constatada a morte, era a hora de contar à dona. De novo, o único corajoso foi ele - tocou a campainha, acolheu os conselhos de ser suave... e, mal a dona do gatinho surgiu à porta, disparou à queima-roupa: "um motorista atropelou um gato. Era o seu".

Boquiaberta a menina. Boquiabertos todos nós, ali em volta. Era isso então a suavidade? Atropelar as palavras, atropelar com palavras?

Me deu um susto, aquele menino. As farpas do desajeito fazendo cicatriz no veludo da sua companhia. Me encantou, também, sua honestidade crua, sua coragem sem o pudor da pena. Os pés turvados de paixão se deixando lamber pela água límpida da ternura.

Imagem: Nacho Gomez

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