31 dezembro, 2011

água

Ontem, arrumando o escritório, resolvi lavar as santas, coitadas, empoeiradas a valer. No instante em que decidi sabia que podia chover.
Quando Vinicius e eu nos mudamos para o apartamento que dividimos por alguns anos, era julho e era uma secura insuportável. A gente ia e vinha a pé na Eusébio Matoso - e em cima da ponte o seco era mais intenso - para equipar a casa com talheres, copos e tudo o mais que precisava para fazer daquele espaço o nosso lugar. Naquele julho a gente lavou vários santos quase todos os dias tentando amainar a aridez. Se lá fora não funcionou, pelo menos dentro de casa deu certo: as palavras sempre úmidas, amolecidas pelo café quentinho e doce que a gente fazia nos fins de tarde, no coador de pano, mesmo que às vezes a preguiça o virasse em nescafé. A secura amenizada pelos tons de alaranjado que entravam pelas nossas janelas sem cortina. Apesar de dífices, bons aqueles tempos... (depois ainda veio Petronio, que não bebia café, mas também dividia doçuras).
No último dia do ano, acordei lembrando de mais de dez anos atrás. Vai ver que tem ciclo que é mais longo que doze meses. Vai ver que "arrumar a casa" para o novo e se sentir grato pelo que passou pode ir mais longe que o passado recente. Vai ver que eu precisava dessa umidade tranquila para aquietar o coração antes de me sentir pronta para recomeçar.
As santas, de todo jeito, parecem felizes e frescas.

27 dezembro, 2011

lindeza

das coisas que a gente (re)encontra: tão bonita, tão bonita. tão cheia de esperanças. tão cheia de poesia. que até o amor fica um bocadinho menos cotidiano e rebrilha, intenso, esparramando pelo chão.

24 dezembro, 2011

abeirar-se

não sei, não sei. há tempos que percebo que o final de ano, com seus ritos de renascimento e renovação, mudaram de sentido (não vou dizer "perderam" para não parecer uma velhinha rabugenta. e também porque sentido é a gente que dá, então se aquele ficou gasto, ninguém disse que não dá para construir um novo). mas este ano, especialmente, a mudança parece que ficou mais palpável, mais nítida. por isso esse esforço de agarrá-la com palavras.
esse fim de ano me trouxe uma preguiça maior. preguiça da correria e do frenesi. mas ao mesmo tempo me trouxe uma energia boa, que obriga à permanência. nesses tempos, precisa de muito mais pique pra parar que pra continuar no fluxo.
talvez por isso esse intervalo entre o fim de 2011 e o começo de 2012 me tenha obcecado com a imagem da beirada: borda da piscina, orla da praia, margem do rio. todas essas beiradas em que a gente se apoia, podendo hesitar antes de se curvar em mergulho. a sensação boa do piso firme e da desnecessidade da pressa. mas também a sensação boa da iminência da água, fria ou quente, doce ou salgada, rasa ou funda, parada ou correnteza. na beira a gente antecipa a sensação, aprende a decidir.
então, nessa beirada de 2012, meus votos são que a gente tenha sempre essa borda firme pra onde correr - um descanso, um respiro, uma mão dada. e que a gente tenha também a coragem do salto (pois a beirada também é do abismo). companhia e coragem. será muito?

16 dezembro, 2011

faixa preta

o exercício consiste em ir por debaixo da água e voltar em qualquer estilo. quatro vezes, a professora me diz. (um conto da Doris Lessing um dia quase me mata afogada: a travessia da personagem me roubando o fôlego. emergi do conto precisando de socorro, ar, respiração boca-a-boca). obediente, faço o que a professora manda. mergulho, e a água me pesa como intenso presente. braços e pernas em movimento, vencendo a faixa pintada no chão. a maior armadilha é não olhar à frente - a água e a pressão multiplicadas por mil sem essa perspectiva. que carpe diem que nada! eu quero: a luz no fim do túnel, o pote no final do arco-íris, a linha de chegada.

09 dezembro, 2011

constatação

vai daí que, para diminuir os sintomas da gripe, Interpol é melhor que paracetamol.

07 dezembro, 2011

nove

o dia quase acabava quando me lembrei: a data gravada do lado de dentro da aliança confirmando que é hoje, que foi há nove anos que a gente inventou uns ritos para dizer ao mundo que a partir de então apostávamos no para sempre. a gente não é muito de lembrar e comemorar datas - ainda bem que você é como eu, e não se chateia com a minha memória falha ou com a minha dificuldade de emergir do fluxo dos dias - mas vale a lembrança e o esforço de cavar um respiro no cotidiano e celebrar. mais um ano. trezentos e sessenta e cinco dias e tanta coisa que não cabe nessa conta - nossos encontros, nossos desencontros; nossas perdas, nossos ganhos; nossa saúde, nossa doença e todo um conjunto de cintilâncias, minúsculas partículas de tempo que se acumulam nos nossos corpos, nos nossos móveis, e se entranham por tudo isso que é nossa vida em comum. é pouco. é tanto. é na corda bamba. é, ainda hoje, para sempre.


Por Toda Vida from Cinema de Rua on Vimeo.

02 dezembro, 2011

enlevo


indo para longe de casa por alguns dias, ouvindo música bem alto para preencher com som a saudade antecipada, por um breve momento - juro para vocês - o que me sustentava no ar não era mais o avião, mas o som delicadíssimo que saía do mp3.

Imagem: Alicia Varela.

01 dezembro, 2011

posto de observação



pézinhos fincados no galho, os passáros vizinhos ao aeroporto se reúnem todos os dias às cinco da tarde para acompanhar os pássaros enormes e esquisitos em sua estranha revoada: um a um, obedientes, avançam na fila rumo ao céu, sem canto nem alegria de asas a bater.
piam muito e farfalham as asas; galhofeiros, os pássaros vizinhos ao aeroporto, entre riso e inveja - não sabem se seus irmãos são ridículos em sua rigidez ou maravilhosos nas alturas que alcançam.
os pássaros enormes e esquisitos, porém, nem-te-ligo: sobem sempre de nariz empinado.

Imagem: daqui.