09 janeiro, 2013

três receitas vegetarianas - insistência


“A que horas eles iam mesmo chegar?”, perguntou, um olho no relógio e outro na panela, pra outra que procurava um cd novo já que o anterior acabara de acabar. As mãos cheirando ao alho e à cebola que agora fritavam shshshsh no óleo, perfumando a casa. “Encontrou os cds?”, voltou a inquirir, já distraída da pergunta anterior enquanto ia jogando na panela o arroz lavado. “Encontrei sim!”, ouviu a outra dizer ao mesmo tempo em que a voz de Madeleine Peiroux preencheu a distância da cozinha à sala. Sorriu. Adorava aquele cd. Era o que ia dizendo quando a outra alcançou a cozinha, muito animada, atirando à queima-roupa “você roubou um cd de uma biblioteca? E de uma biblioteca em Paris?!!”. A água fervente quase desviando o curso rumo à panela, o pulo das mãos tão brusco quanto a batida do coração. Não era que era isso mesmo? Não era que um dia tinha roubado um cd? A voz saiu branca “Nossa. Tinha até esquecido”. Tentou na mesma pausa se lembrar e esperar que a outra esquecesse. Não funcionou. “Tem uma boa história aí, não tem?”, a outra toda interesse e provocação. “Nem tanto”, tentou frustrar a insinuação, “Época de durezas de estudante, um pouco de irresponsabilidade e esquecimento...”. Fez uma pausa para lavar as abobrinhas que vinha descascando e pegar, embaixo da pia, o ralador. “... e, claro, um grande amor. Ou, pra ser mais justa, uma grande paixão". Tão solene essa última afirmação que a outra agora era só olhos a escutar. “Nunca tinha me dado conta, mas você me faz lembrar um pouco dela”, “Dela quem? Da paixão?”. Negou rindo enquanto quebrava os ovos, separando gemas e claras: “Dela: do objeto da paixão”.  As sobrancelhas da outra se erguendo discretas em compreensão. “A gente ficou juntas pois dois meses, pouco antes de eu voltar. E foi tão, mas tão urgente – aquele cronômetro às avessas, marcando um tempo que se esgotava. A gente tinha hora pra acabar e então acabou quando essa hora chegou. Mas acabou o tempo e não a paixão, claro, que só inflamava mais com aquele fole soprando tic-tac em tudo-tudo-tudo que a gente fazia e vivia”. Ela ia lembrando em voz alta enquanto mexia o fogo bechamel em fogo um pouco alto demais, o cheiro da noz-moscada recém-ralada inebriando levemente as palavras. “Em horas em que a gente quase desesperava da consciência de que o tempo era curto, a gente ouvia Dance me to the end of love, agarradas na sala minúscula do apartamento onde ela morava. Era tão triste. E era tão lindo”, as abobrinhas e as gemas girando piruetas no molho ainda quente. “Eu tinha emprestado esse cd na biblioteca, e depois que a conheci  fui renovando, renovando, incapaz de devolver. Até que chegou o dia de voltar e sem pensar muito enfiei o cd na mala e trouxe comigo. Se tudo o que a gente fez foi roubar o tempo, eu tinha que ficar com alguma coisa, sabe? Eu não pensei muito nisso, mas acho que eu quis salvar alguma coisa de todo aquele incêndio e foi só isso que eu consegui trazer”. A fala agora entrecortada pelos soluços do metal batendo as claras. “Não pensava nessa história há tanto tempo... parece que foi noutra vida... até assustei quando você me perguntou do roubo...”. “Logo vi que tinha uma boa história ali”, a outra rasgou o silêncio, os olhos voltando a ver e deixando a tarefa da escuta novamente pros ouvidos. As claras em neve bem firmes se dissolvendo delicadas na mistura de abobrinha, leite, queijo e gemas. “Em vinte minutos temos suflê”, anunciou, já fechando o forno. “A que horas mesmo marcamos?”. A outra agora em pé ao seu lado, servindo-se de mais vinho enquanto lhe passava a sua taça, novamente cheia. Olhando de esgueio o relógio, “Acho que ainda temos uns minutinhos”. Encostadas as duas no balcão, bebericando em silêncio. Até que a outra “Eu te faço lembrar dela?”, “Nunca tinha reparado, mas lembra sim: o jeito que o cabelo cai nas suas costas, o modo das mãos se mexerem quando contam histórias, e essa mania de morder o lábio pelos cantos, num esgar que é meio riso, meio aflição”. O disco chega em I’ll look around e a outra pergunta, a voz num fiozinho “Quer dançar comigo?”. A campainha toca e tudo já parecendo errar em desencontro. “Salvas pelo gongo”, a outra brinca, embora o nó na garganta, sem gosto nenhum de salvação. “Outro dia a gente dança, prometo. Eu te convido pra jantar, só nós duas”, ela adia atender a porta apesar dos ding-dongs insistentes. “Combinado, então. Eu venho e te faço uma receita de berinjela que quero muito experimentar”.