28 outubro, 2011

plano de taxonomia da leitura


(1) sísifo: há livros que são impossíveis de vencer e se acumulam aos montes - nas estantes, na consciência ou simplesmente na cabeceira da cama. abri-los é reviver o cansaço. insistir, apesar de inútil. nesse caso, a leitura, sempre breve e logo interrompida, se faz entre suspiros e os olhos pesados.

(2) correnteza: há escritores que escrevem tão liso que os olhos escorrem pela página, ávidos. uma escrita sem quinas nem arestas. as palavras deslizando musgo a musgo o caminho até o ponto final. que para atravessar o fluxo, servem pontes ou pedras.

(3) entrega: há também escrituras suaves, que estendem a mão e a leitura é, então, caminhar lentamente nos passeios frescos. a escrita quase tão macia quanto a anterior, mas os paragráfos dão outro ritmo ao olhar. se alguns trechos comportam passada mais cadenciada, em outros há que se demorar: alternam-se capítulos áridos com outros mananciais. e para percorrer as páginas até o fim, só mesmo a confiança na mão que se tomou ao abrir o livro.

(4) espera: tem escritos que não entendemos e que, ainda assim, fascinam. os olhos voltam-se quase fixos para as páginas, bem abertos, tentando adivinhar no todo o lugar de cada palavra. feito deitar no chão numa noite estrelada e tentar, sem treino, nomear constelações. ânsia de ordem e sentido. tem livros que a gente lê e relê sentado do lado de fora da porta trancada, esticando os ouvidos para os passos e as voltas na fechadura.

(5) arqueologia: tem ainda os livros-tesouro. dos mais raros e dos menos afeitos à taxonomia, pois o valor não se mede em sal, ouro ou moeda, e o que é significante para uns é alimento de traças ou fogo para outros. os livros-tesouro lemos com olhos lânguidos, cada página um beijinho atrás da orelha. os livros-tesouro também lemos bem de perto, para os cílios escavarem os parágrafos em busca da sentença-pérola que faísque a certeza da preciosidade.

Ilustração: Alicia Varela.

26 outubro, 2011

epígrafe futura

 via Juan Yanes, a quem vale muito visitar para conhecer as fotos com que ilustra este texto.
(Texto que fica ainda mais perfeito depois de ter ouvido falar, hoje de manhã, a Jeanne-Marie Gagnebin, sobre Paul Ricouer e uma ética da memória, capaz de nos ajudar a sepultar os mortos, fazendo justiça a Fulanos, Cicranos e Beltranos).

¡Si en la historia no hubiera más que batallas; si sus únicos actores fueran las celebridades personales, cuán pequeña sería! Está en el vivir lento y casi siempre doloroso de la sociedad, en lo que hacen todos y en lo que hace cada uno. En ella nada es indigno de la narración, así como en la Naturaleza no es menos digno de estudio el olvidado insecto que la inconmensurable arquitectura de los mundos. Los libros que forman la capa papirácea de este siglo, como dijo un sabio, nos vuelven locos con su mucho hablar acerca de los grandes hombres, de si hicieron esto o lo otro, o dijeron tal o cual cosa. Sabemos por ellos las acciones culminantes, que siempre son batallas, carnicerías horrendas, o empalagosos cuentos de reyes y dinastías, que preocupan al mundo con sus riñas o con sus casamientos; y entretanto la vida interna permanece oscura, olvidada, sepultada. Reposa la sociedad en el inmenso osario sin letreros ni cruces ni signo alguno: de las personas no hay memoria, y sólo tienen estatuas y cenotafios los vanos personajes… Pero la posteridad quiere registrarlo todo: excava, revuelve, escudriña, interroga los olvidados huesos sin nombre; no se contenta con saber de memoria todas las picardías de los inmortales desde César hasta Napoleón; y deseando ahondar lo pasado quiere hacer revivir ante sí a otros grandes actores del drama de la vida, a aquellos para quienes todas las lenguas tienen un vago nombre, y la nuestra llama Fulano y Mengano. Benito Pérez Galdós (Las Palmas de Gran Canaria, 1843 – Madrid, 1920)

23 outubro, 2011

primavera

(clique na tirinha para ampliar)

 primavera estranha essa, com cara de inverno nos dias de infinito azul que de repente erram em cinza e choram como a ecoar a eternidade. tem dias que chove para sempre. tem primaveras que adiam o verão.

então hoje, duas flores na espada de são jorge. e eu nem sabia que ela florescia - comprei, há muitos anos, um vaso de sete ervas, e elas morreram uma a uma, a não ser a espada de são jorge: firme e forte, querendo alcançar o céu, crescendo para todos os lados, ocupando todas as brechas. boa companhia. que, muito de repente, rompe o silêncio e oferece uma flor. uma não, duas.

a flor estendida acorda a esperança. e as mãos decidem distrair o coração um tanto pesado remexendo terra, podando as folhas amareladas, limpando os vasos das flores ressecadas, fertilizando a terra cansada. a atenção e o cuidado resultam em descobertas: as violetas, todas brotando; as flores de maio, depois de tanto desesperar em flor, mais comedidas na oferta das pequenas pérolas rosadas; o kalanchoe, lembrança das bodas de prata da tia, imenso, feliz ao se esparramar em mais espaço. e as suculentas, compradas também há muitos anos, em pequenos vasos de cerâmica que logo tiveram que ser substituídos por outros cada vez maiores, tentando sobreviver mais um verão à ameaça dos pulgões. que se a secura queima, a umidade em excesso também faz murchar.

com o filho, o plantio das sementes: alface e couve-flor. por enquanto, nos pequeninos berços da germinação.

me espanto com toda essa insistência em nascer e florescer. com essas presenças silenciosas, parte cultivadas, parte teimando em viver. me espanto com esse mistério que as faz tirar da terra e de si mesmas as forças para se projetarem no mundo.

e como não entendo, me contento em agradecer a surpresa. como se, de supetão, a flor recém-descoberta rompesse, além da terra, o tempo e inaugurasse uma nova estação.

Tirinha: Liniers

13 outubro, 2011

Rodrigo faz seis anos


Hoje o Rodrigo completa seis anos. Seis anos fora da minha barriga, como explico a ele, todas as vezes em que ele me pergunta que história é esta de aniversário. Especialmente esse ano, em que a vertigem das mudanças do próximo faz com que ele volta e meia questione essa comemoração, como a bater o pé bem forte: não quer ter seis anos, não quer ficar maior, não quer deixar de ser criança... Rodrigo, aos seis anos, não quer mais saber de ficar grande. Aquela ansiedade que ele tinha de crescer deu lugar ao esforço de reter o sabor desses tempos gostosos, de experiências, de fantasias, de jabuticaba e amora no pé. Ninguém disse para ele que as coisas vão mudar radicalmente, mas ele intui. Ele percebe que já não é mais tratado como criança pequena e que junto com as conquistas e liberdades vêm também as cobranças.

A gente passa a vida oscilando entre se sentir pequeno e se sentir grande. Às vezes as coisas são tão difíceis que falta ar, a gente ganha a perspectiva da nossa insignificância no fluxo das coisas. Tem outras vezes que tudo é tão pleno que a gente fica enorme, gigante mesmo. E nada disso tem a ver com aniversário: me espanto como o Rodrigo já percebeu isso. Quando aprendeu a ler, em julho, tenho certeza que ultrapassou em muito os seus 1,20m: dois, três metros de altura na aprendizagem de pensar de outra maneira. Mas agora, frente à possibilidade de mudar de escola, de passar para o primeiro ano, de sentir saudade dos professores e amigos que fez ao longo de sua vida, se sente pequeninho. Recusa o espelho distorcido: não quer ouvir que é grande enquanto se sente impotente para fazer o tempo parar.

E aí me ensina, nesse partejo vitalício em que a gente se reinventa mãe e filho, que para caminhar ao lado dele é necessária essa atenção que não teme o encantamento de aumentar e encolher mesmo sem a ajuda de biscoitos ou cogumelos mágicos: o orgulho e a admiração nos momentos de gigante, o colo nos momentos de mosquinha, as mãos dadas em todo o resto tempo.

O Rodrigo tem toda razão. ainda que 13 de outubro marque o dia em que ele decidiu que estava na hora de ver o que tinha aqui fora, é só um dia no tempo do calendário. Importante mesmo é o momento-quando a gente se sente crescer, quando a falta de ar da consciência do nossos limites encontra distração no peito inflado de alegria e orgulho por termos ultrapassado a nós mesmos. Fique tranquilo, filho: quando você voltar a sentir que cabe justo na sua própria pele, a gente bate outro bolo, enrola outros brigadeiros.

Imagem: Ziraldo (O menino maluquinho)