27 dezembro, 2009

Perguntinha básica

Eu é que tenho problema ou esse vídeo dos Strokes dá... tipo assim... barato?

(é pergunta retórica, tá, gente? Eu que ando mesmo com problema, meio adolescente demais, ouvindo Interpol, Arcade Fire e Strokes sem parar...).

25 dezembro, 2009

Buarqueanas

Rodrigo, antes de dormir, no dia em que voltamos para casa e descobrimos que a Thelma e Louise (nossos gerbis) tinham morrido:

- Mas, mãe, por que elas morreram?
- Não sei, filho. Pode ser porque elas estavam velhinhas, pode ser por qualquer coisa, a gente não sabe...
- Mas mãe, a vovó falou que foi de calor.
- Pode ser, filho.
- Mas mãe, não falou no jornal que os hamsters tinham morrido de calor...

Pois é filho, você tem toda razão: a dor da gente não sai no jornal...

Natal e 2010

Querido filho Rodrigo,

desde seu nascimento que as mensagens de final de ano passaram a ter você como interlocutor privilegiado, como se no momento de "fechar para balanço" e celebrar a renovação das esperanças, me coubesse - como sua mãe - tentar organizar o que aprendemos juntos no ano que passou.

Este ano foi bastante intenso, cheio de desafios mas também conquistas. No primeiro semestre, a família toda finalmente se livrou da tese que, embora de minha responsabilidade, mobilizava todo mundo. Em julho, pela primeira vez em toda a sua vida, você ficou de férias com uma mãe que não tinha mais um relógio correndo por dentro! E no segundo semestre teve a defesa, teve o lançamento do livro e - nos espaços que o fim do doutorado abriu - teve muito softie sonhado e costurado, teve bolsinhas costuradas à mão, brincadeiras de massinha, cartas e cartões, muito colo, filminho e pipoca, teve fazer cookies para dar de presente, teve pesca com seu pai... Teve encontro e reencontro, sem pressa: como se finalmente os pés reaprendessem a dureza e a maciez de pisar o chão.

Também foi ano pleno de companhias. Mais próximas ou mais à distância, é difícil explicar o quanto houve amparo e mãos dadas no meio do furacão. Você também me deu a mão, filho: não sei se cedo demais ou se na hora certa, mas aprendeu que adultos também se perdem e têm dúvidas, e me deu de presente seu carinho e sua presença, verdadeiras âncoras para que as tempestades não me levassem pra muito longe.

Observação óbvia, você cresceu muito neste ano. E acho que todos nós crescemos junto com você, filho. Suas perguntas, seus desconcertos, seu estranhamento frente a este mundo ao qual já quase nos acostumamos são preciosos e os ajudam a descobrir novos significados para essa coisa de estar vivo. Nas suas alegrias, e também nas suas tristezas.

Como em nossa recente experiência com a perda. Mal chegamos de viagem e descobrimos que nossos pequeninos gerbis, a Thelma e a Louise, tinham morrido. Não sabemos como, nem porquê, e a falta de explicação só reforçou nosso desconcerto diante de um sono profundo demais do qual não pudemos acordá-las. Choramos juntos, por nossas pequeninas companheiras, e talvez eu tenha chorado também por ter que te ensinar tão cedo a se despedir, dessas despedidas definitivas.

Juntos, demos nosso tchau pra elas, agradecemos por tê-las em nossa vida por tanto tempo, avisamos que iremos sentir saudade. E o que mais achei bonito na sua dor foi sua coragem em enfrentá-la, em não se distrair dela, em chorar, peguntar, enunciar a saudade e a tristeza na falta do que você chamou de "suas companhias". É doído sim, filho, mas é tão bom ter afetos, não? Tão bom ter amigos queridos cuja presença no mundo nos conforta, e de quem sentimos falta. Tão bom não andar indiferente e poder ser afetado por presenças ou ausências...

Que no ano que começa, filho, a gente possa continuar caminhando de mãos dadas e prestando atenção aos caminhos que escolhemos.

Muitos beijos,

mamãe.

18 dezembro, 2009

Que seja doce

Ô coisa límpida de se desejar: que seja doce.

(E eu não consigo pensar nessa frase sem me lembrar do Mauricio, que é das companhias mais doces que tenho nessa minha vida...).

15 dezembro, 2009

Feridas

Porque algumas não saram, nem fazendo tudo certinho, nem cuidando com pomada de calêndula-algodão-esparadrapo-água oxigenada. Há algumas que, embora não doam, também não é possível fazer estancar: viram fonte, minando vagarinho um sangue rosinha e aguado, suficiente para colorir de um colorido especial o que na vida é fluxo, correnteza e ir-em-frente. Há feridas que são pura rememoração.

11 dezembro, 2009

Pra rir (e dançar...)

Dica da Flávia! Me acabei de rir!

Mas me deu também um pouco de saudade, de carregar o Rô no sling. Ele continua amando um colo, mas cada vez que a gente o pega, parece que as pernas dele escorrem mais para fora da gente... Ele tá enorme e abandonou o sling e o mei-tai há tempos... um dos meus sling inclusive tá circulando por aí, entre amigas e suas filhotas. Mas que dá saudade de quando era só colocá-lo no meu pertinho e sair por aí, isso dá!

08 dezembro, 2009

Contagem Regressiva


Calma! Ainda não falando do Natal e nem do Ano-Novo...  Por aqui estou me preparando mesmo é para as férias do , que começam na próxima quarta-feira e só terminam no fim de janeiro. Estou tentando correr com as coisas que preciso fazer porque depois de terça que vem... trabalho só de noite e aos finais de semana.

Ele está muito contente que as férias estão chegando. Este ano não foi mole pra ele, com mãe doida terminando tese... E mesmo que ele tenha ficado em casa em julho, eu não estava propriamente de férias, já que estava naquela transição fim-antecipado-de-bolsa + procurar trabalho + pegar o que aparecesse.... Mas agora não: pelo menos até a primeira quinzena de janeiro por conta dele.

Temos nos preparado para as férias: já checamos o estoque de guache; estamos colecionando sucata; eu já selecionei alguns projetos, como softies, dragões e uma coroa de feltro... Até estamos planejando coisas gostosas para fazer e comer: cookies, bolos, pães, cuscuz baiano (tem uma milharina comprada faz tempo, mas quem disse que no café da manhã conseguimos fazer? E eu tenho ótimas lembranças de comer o cuscuz que a Vanuzia fazia de manhã, com manteiga derretendo, acompanhado de um café feito na hora. Podia ser segunda-feira que passava a parecer domingo!). Eita! Depois das férias, vou ter que passar um mês num spa ;-)

(Vou abrir um parêntese: sexta passada eu estava no Centro Público de Economia Solidária de Osasco e um empreendimento estava produzindo uma encomenda no Café Oficina. Eu parei lá uns minutos, para comprar um suco de laranja e fiquei olhando o cuidado delas, fazendo esfihas de escarola, e me deu uma saudade das tardes na casa da minha avó... do processo de fazer recheio, mexer a massa e depois sentar para enrolar coxinhas e bolinhas de queijo ou fazer esfihas e empadas. Já falei disso antes: de como aquelas tardes, passadas no espaço de uma casa que estava repleta de pessoas e de histórias, tem um sabor especial e constituem um tempo querido dentro de mim. Sexta-feira, tive a sorte de reviver um bocadinho disso...).

Para encerrar este post meio nonsense, acho que estou tão animada com essas que são as primeiras férias do Rodrigo sem que eu tenha que pensar em tese porque ele parece estar me fazendo há tempos um pedido que o Zé Miguel Wisnik colocou lindamente em uma canção chamada "Tempo sem tempo": "vê se encontra um tempo pra me encontrar sem contratempo por algum tempo...".

Vamos lá, então: subverter o tempo, desviar da sua linearidade, brincar de esticá-lo em tardes preguiçosas, horários flexíveis... fazer da casa um espaço de cheiros, sabores e texturas... assistir TV de tarde, ficar de pijama o dia todo... Deixar o tempo vazio pra gente não ter que pensar no que quer, até querer.

Imagem: Relógio Salvador Dalí,  tirado daqui.

02 dezembro, 2009

Constatação

Da vida eu gosto é crua.

Quando dói, dói mesmo: dói o corpo e dói a alma. E então sei que estou viva, porque meu corpo é carne, sangue, músculo e fibra. Nasceu, cresceu e um dia vai morrer. Mas quando dói não tem passado, nem futuro: é só presente, latejando como só coisa que está viva.

Quando é bom, é bom mesmo. De um bom que pode ser manso e amplo ou súbita explosão de cintilâncias. Mas é bom no corpo e na alma. E eu então sei que estou viva, na paz ou no cansaço do meu corpo que é carne, sangue, músculo e fibra. Sem passado, nem futuro - no ondular da minha respiração de coisa viva.

Sem anestesia, sem subterfúgios, sem caminho fácil. Cheia de sabor, cheiro e textura, rescendendo à terra donde acabou de sair (e pra onde vai voltar). Crua, para afiar os dentes e instigar o que em mim é também bicho e instinto.

Da vida, eu gosto crua.

29 novembro, 2009

Flor de Obsessão

Fui trocar as músicas do MP3 (colocar o primeiro volume da trilha sonora de Glee, dentre outras coisas) e percebi que sou incapaz de apagar os dois álbuns do Interpol.

Não importa o humor, nem a situação, nem a fase da vida: sei bem que vai ter um momento em que a salvação estará em ouvir No I in Threesome no volume mais alto possível (ou Pace is the Trick, ou qualquer outra das faixas de Out love to admire e Antics). E por isso não consigo apagar...

26 novembro, 2009

Agradim

Já que meu mau-amor anda atacado, que a correria anda intensa, a lista de afazares imensa, a grana curta, o ano acabando, e dali a pouco é outra década, um agradinho pra você, só para te(me) lembrar que - no meio de tanta coisa que corre, passa e não deixa nem poeira - tem esse amor de delicadezas trançadas para que a gente descanse.

A gente é catavento e girassol, é meio avesso, mas também é encontro e reconhecimento. Então, um carinhozinho para recomeçar mais uma vez.



22 novembro, 2009

Livros


Nesta sexta-feira,dia 27 de novembro de 2009, a Annablume realizará o lançamento de quatro títulos que integram a Coleção Trabalho e Contemporaneidade, dentre os quais o meu "Entre Desalento e Invenção":

  • Entre Desalento e Invenção: experiências de desemprego e desenraizamento em São Paulo. Fabiana Jardim.
  • Em busca do "novo": intelectuais brasileiros e movimentos populares nos anos 1970/80. Marco Antonio Perruso
  • O trabalho reconfigurado: ensaios sobre Brasil e México. Marcia de Paula Leite e Angela Maria Carneiro Araújo
  • Entre a solidariedade e o risco: sindicatos e fundos de pensão em tempos de governo Lula. Maria A. Chaves Jardim
O lançamento será das 18h30 às 21h30, na Livraria Martins Fontes, Av. Paulista, 509. Estão todos convidados!

Para quem quiser saber mais sobre o livro, um pouquinho dele pelo mundo:

Desalento Paulistano (Boletim FAPESP, em 19/10/2009)
Matéria Rede Brasil Atual (9/11/2009)
Entrevista ao Pesquisa Brasil (Eldorado AM e Revista FAPESP)



***

Esta semana tem ainda a Feira de Livros na USP, com diversas editoras vendendo a pelo menos 50% de desconto. De 4ª a 6ª feira, no Prédio da História e Geografia (na Cidade Universitária).

16 novembro, 2009

(silêncio)

vontade de ficar sozinha
só para saber
se você ia
ou vinha
quando deixou
esse bagaço
no meu peito
pedaço estreito
defeito na mercadoria
do jeito que você queria

(Alice Ruiz)

Desafiando a gravidade

Glee realmente não faz muito bem prum ser que no dia-a-dia já acha que está num "Qual é a música?"... O último episódio foi super bonito e - como em geral - delicado. Adoro o jeito com que eles desenvolvem toda a coisa da adaptação/inadaptação, do jeito mais bem-humorado e sem puro preto-no-branco.

E fiquei com essa música na cabeça ontem o dia todo, em especial depois de ver o vídeo do Tony Awards, em que as duas, a Kristin Chenoweth e a Idina Menzel estavam concorrendo: é daquelas cenas de arrepiar e levar às lágrimas (ou eu é que, além de labreguenta por natureza, estou na TMP...). É um trechinho do musical Wicked, que está em vias de virar filme, e é uma espécie de continuação do Mágico de Oz.




09 novembro, 2009

à procura


Já te contei da primeira vez que te vi. Já te contei também do abismo que se abriu debaixo dos meus pés, sem aviso, nem seguro, quando você também me viu. Já te contei, já recontei: para não esquecer e para não lembrar mais.
Mas então, ela pôs em palavras a exatidão daquele instante em que nada mais foi igual. E foi quase te reencontrar, no começo da madrugada, quando sonho e realidade se misturam e pressagiam infinitas possibilidades.
De manhã, ansiosa, fui reler o texto e não achei. Entre os goles no café, tentei me manter calma, procurar com mais cuidado, modificar as chaves de busca, desesperada pela possibilidade de ter perdido a boniteza daquela carta. Finalmente, consegui encontrá-la: estava ali o tempo todo, bem na frente do meu nariz, mal escondida debaixo da minha angústia em perdê-la.
Perder você faz parte da vida. Inaceitável é perder a precisão com que alguém enfeixa os sentimentos todos e os amarra em três parágrafos e um ponto final.

Carta nº 9 - dos primeiros dias (Rita Apoena)

Ontem os seus olhos doeram em mim. E como pode um olhar doer em alguém uma dor tão limpa, rabiscar de azul o silêncio que estendi pelos cantos no chão? Tive tanto medo de encontrá-los, tive medo de levantar os cílios e eles se deitarem feito um pássaro em tuas mãos tão claras, e descobrires o que eu já não posso evitar. Tive medo de notares o quanto eram indefesos diante dos teus... Por isso, tratei de escondê-los por trás do quadro, dos ferros na janela, da cortina, do tapete, das pétalas, colocando-se diante de minhas pálpebras, enquanto eu falava qualquer coisa para me esconder por trás das palavras.

Mas foi quando eu ainda nem havia dito nada, foi quando eu ainda nem te conhecia, foi na fresta que, por descuido, esqueci aberta... que teus olhos doeram em mim, caíram em mim e me mancharam de tinta. Não sei o que era ali dentro deles, se a minha tristeza ou a tua, mas nunca vi olhos tão claros, nem outros que ofuscassem tanto a minha vida.

Agora eu viro para o lado e não quero mais que o outro me siga, não quero mais que o outro me toque porque tocar as minhas costas é empurrar a manhã para o meio das nuvens, entende? Uma manhã que era toda feita para colher as maçãs, as maçãs que eu enrolaria doces numa forma para te dar. Por isso, quando ele me tocou, duas lágrimas eu aninhei no travesseiro, e escorri com elas, e dentro delas esperei que ele tocasse o meu corpo. Só voltei quando ele acabou.
 
Imagem: Nacho Gómez

Ultimamente


Por Liniers.

29 outubro, 2009

Sina é palavra feminina?


Vai daí que tenho pensado uma porção de coisas, provavelmente por estar pensando no que fazer daqui pra frente (e, talvez mais importante, em como fazê-lo), mas também devido aos trabalhos que ando fazendo e às aulas que estou dando, de Sociologia do Trabalho. Ou seja, sincronizaram-se vários fatores e cá estou eu, de novo, pensando bastante sobre o que é ser mulher e, mais central, que raio de mulher quero ser.

Vira e mexe volto aos versos finais de um poema da Adélia Prado, né? "Mulher é desdobrável/ Eu sou". São versos que ressoam muito dentro de mim, me interpelam mesmo (talvez quase tanto quanto o trecho de Amor e Erotismo: a Dupla Chama, do Octavio Paz, em que ele define o amor como intensidade, essa espécie de burrice bonita de perder de vista o fato de sermos feitos de carne e, portanto, mortais).

Os versos me tocam também porque foram escritos como parte de um diálogo com outros versos que também me tocam muito: a sentença do anjo torto, que sai da sombra pra vaticinar, "[...] Vai, Carlos! ser gauche na vida". É o primeiro verso do Poema de Sete Faces (por sua vez, o poema que abre o livro Sentimento do Mundo), e fala bastante dessa condição da poesia no mundo moderno, desse descompasso de nascer poeta em um mundo prático, lotado de desejos e pernas, em que as rimas não representam nenhuma solução, (vale lembrar, o próprio verso de Drummond é diálogo com "O Albatroz", de Baudelaire, que é também um retrato eloquente da inaptidão do poeta à vida ao rés-do-chão).

Quando Adélia Prado escreve o poema "Com Licença Poética", portanto, está dirigindo-se à Drummond, mas marcando uma diferença fundamental em sua condição: mais que poeta, é mulher e, assim, sujeita a sinas diversas. Seu anjo anunciador, por exemplo, não é torto, nem vive à sombra:

Quando nasci um anjo esbelto desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira.

A anunciação do anjo traz um vaticínio estranho, que é menos de condição (ser gauche na vida) do que de missão: carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher, esta espécie ainda envergonhada.

Falando de mulher como uma espécie, a poeta marca a radicalidade da diferença com os homens. O interessante é que nesses versos ela escapa da ideia de essência feminina, ao ligar o peso da tarefa que lhe foi confiada pelo anjo menos à fraqueza de "sexo frágil" do que ao fato das mulheres estarem ainda envergonhadas - de sua própria força ou de chamar a atenção, portando uma bandeira.

Na continuação do poema, a poeta, mineira como Drummond, parece recusar a possibilidade de escapar mineiramente de suas afirmações (como Drummond faz em seu último verso, desconversando ao atribuir à lua e ao conhaque o tom confessional do poema):

Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza
e ora sim, ora não, creio em parto sem dor.

Suas observações sobre si mesma, em primeira pessoa (muito diferente, portanto, do evasivo "homem de óculos e bigode" com que Drummond descreve a si mesmo), referem-se ao universo feminino, falando de aparência (e sua relação com o casamento), de gostos, e da desconfiança em relação a uma dor que é essencialmente feminina: a dor do parto.

Dizendo que ora sim, ora não, acredita em parto sem dor, a poeta fala do evento fisiológico do parto - momento que é intensamente corpo e carne-, mas também parece colocar em xeque a "dor e a delícia" de ser mulher. Muito diferente do significado que a dor assume em Drummond como, por exemplo, em um poema como "Relógio do Rosário", em que o poeta observa que "[...] nada é de natureza assim tão casta/ que não macule ou perca sua essência/ ao contato furioso da existência" para concluir que "vivendo/ estamos para doer/ estamos doendo" (Claro Enigma).

À tudo que em Drummond é essência e condição, Adélia parece opor flexibilidade e fluidez: a dor do parto, afinal, é passageira - sendo verdadeira ou não; mesmo supostamente feia, ela diz que não é tão feia que não possa casar... Nenhuma das identidades ou crenças cristaliza, e isso traz liberdade à poeta.

Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos - dor não é amargura.

Embora tenha sido destinada a carregar bandeira, aqui a poeta afirma que cumpre a sina ao escrever o que sente, nesse movimento inaugurando linhagens e reinos. Mais uma vez à diferença de Drummond, que fala de sua condição de gauche filiando-se de certa maneira à linhagem dos poetas modernos, Adélia Prado recupera o poder criador da palavra, que inventa filiações, não apenas em direção ao passado, mas também ao futuro. E a poeta conclui o verso novamente falando de dor: "dor não é amargura". Se às mulheres é dado a possibilidade de, doendo, colocar um filho no mundo, a elas também parece estar dada a possibilidade de significar a dor de outro modo - não ligando-a à essência da condição humana, mas ao ato gerador, que se lança na direção do futuro: que âncora mais firme na direção do futuro que um filho?

Adélia ensina: dor não é amargura; pode ser libertadora, pode ser criadora, pode sobretudo ser um momento, e não companhia constante como nos versos latejantes do Drummond.

Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô.

Nos versos que vão levando o poema ao final, a poeta mais uma vez foge à tristeza como destino: sua tristeza não tem pedigree, não é essencial nem inescapável. O que lhe parece essencial é a vontade de alegria, herança de uma genealogia exagerada. E vale notar que ela não fala da alegria em si mesma, mas do impulso, da vontade de alegria - a poeta, sem dúvida, é mulher de gostos e desejos. Por isso mesmo, escapa com ferocidade de qualquer prisão:

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Nem venha anjo nenhum me lançar maldição, que mulher é desdobrável! Ao invés da evasiva com a qual Drummond encerra seu poema, atribuindo sua comoção à lua e ao conhaque, escapando menos ao destino do que à expressão de si mesmo, Adélia Prado encerra seu poema com a afirmação da possibilidade de fugir ao destino, numa radical afirmação de si mesma: "Eu sou".

Essa afirmação da condição feminina como possibilidade de transbordamento dos limites me toca fundo. Só não sei se é por eu ser mulher ou por, como Drummond, saber-me gauche, inconforme ao meu próprio tempo e, por isso mesmo, seduzível por uma possibilidade de escapar. Em outras palavras, não sei se sou desdobrável por ser mulher ou pela ferocidade com que procuro ser aquilo que não sou. Acho que não é por essência: é escolha.

Imagem: daqui.

28 outubro, 2009

Sagarana


Vixe, que anda difícil roubar tempo para sentar e escrever! A semana passada foi uma trabalheira interminável, fim-de-semana corrido (felizmente, por razões boas, já que só corremos tanto porque temos gente muito querida, que nos faz largar a casa de perna pro ar só para poder estar presente...) e muita estrada percorrida entre domingo e ontem - fomos e voltamos de Caxambu, parando em São José para deixar o Rô, que ficou três dias com os avós.

Sábado começou com encontro gostoso e há muito planejado, no Parque da Água Branca, com a Eli, o Joha e os meninos deles - que não víamos há um ano! O tempo obviamente foi curto, mas nem por isso deixou de ser gostoso... E o Rodrigo, tadinho, que acho que estava tão cansado do mofo dos fins de semana chuvosos e que, mal pôs o pé no Parque, soltou: "Ai, que delícia estar no Parque!".

Aliás, o Rô tá uma coisa de querido. Tão absurdamente companheiro, tão esperto e falante... Depois do parque fomos almoçar, e o cara simplesmente não pára de tagarelar: tudo é assunto - lembranças, observações, projetos... O corpinho pequeno mal contém tanta vida, e deve ser por isso que a palavra predileta dele ultimamente é transbordar. A vida transborda pela boca, pelas mãos, pelas pernas, e inunda todo mundo ao redor. Meu coração também transborda, cheio de ternura e alegria, mas também de um pouco de medo e de vontade de ser imortal: não quero perder nem uma vírgula de tudo isso!

Depois fomos na festa dos meninos da Veronika, deliciosa e cheia de crianças contentes e açucaradas pulando e se divertindo. Rodrigo subiu em árvores, fez malabarismos com a A. M., escorregou com a A. Mas chegou em casa ainda agitado, frente à perspectiva de arrumar as malas e ficar na casa da avó, fazendo planos de brincadeiras com o primo e o avô e de aconchegos com a avó.

Domingo, saímos tarde e chegamos em SJC na hora do almoço. Demos uma de cachorro magro e saímos de casa antes das duas; mesmo assim, foram 4 horas pra andar 200 km, já que os últimos 100 km são bem sinuosos e ainda tinha chuva e neblina em alguns trechos. Edu matou sua vontade de dirigir em estrada antimonotonia, e eu enchi os olhos de paisagens, já que o fato de ter vivido grande parte da minha vida no Vale do Paraíba provavelmente me trouxe um gosto pelas montanhas. Adoro-adoro-adoro, bem mais que praia.

Domingo à noite, ainda assistimos Distrito 9, que por enquanto só posso classificar como surpreendente. Mas confesso que fiquei um pouco impactada com tantas cenas de guerra - o filme parece partir de uma perspectiva crua - nas cenas, nos sons, a gente tem a impressão de estar diante de algo que é difícil digestão, algo que é quase repulsivo, e que a gente bem queria que estivesse só no Outro...



Como o lançamento do livro era só na segunda à noite, passeamos um bocadinho, descansamos outro bocadinho e comemos uns bocadões, que a comida era boa, saborosa e leve.

A arquitetura do hotel em que ficamos me deu nostalgia da casa velha da minha avó, que ficava na beira da ferrovia... Era uma casa antiga, com seus azulejos velhos, louças antigas e amarelas... Nas minhas lembranças, a casa inteira tem um tom amarelecido: lembro dos banhos de bacia, do cachorro que ficou doente e que deve ter sido minha primeira experiência com a morte, dos ratos e baratas que infestaram a garagem abarrotada de recortes de jornal, do piano da minha mãe que só mais tarde foi morar na nossa casa, da banheira amarelo-claro, do chão de cimento queimado vermelho da varanda, dos vasos de arruda na beirada da porta, de onde o Seu Zé sempre pegava um galho para colocar atrás da orelha... No Hotel, várias dessas lembranças latejaram.

Na segunda à noite, junto com a abertura do 33º Encontro da ANPOCS, foi o lançamento dos muitos livros. A Annablume estava lá com 5 títulos da mesma coleção que o meu (Trabalho e Contemporaneidade) e mais um livro, que parece muito interessante, e é uma etnografia sobre o modelo de prevenção de AIDS e DSTs entre travestis. Foi bom rever tantas caras conhecidas, entre professores e colegas desde o tempo da graduação, embora eu confesse que sempre tenho dificuldades em lidar com essas relações velozes, de contatos abreviados... Eu sou lenta, não adianta, e depois fico remoendo a resposta que faltou ou aquela que, expressa rapidamente, saiu fora de tom.

De todo jeito, fiquei bem contente com o livro, porque foi um trabalho bacana mesmo - modéstia, modo off ;-). Aliás, há um tempo falei sobre ele para a Agência FAPESP (Desalento Paulistano) e a matéria ficou bem bacana - mesmo a entrevista tendo contado com a participação de certa criatura pequena que interrompia com frequência para me pedir para desenhar círculos ou cobrar o brigadeiro prometido como forma de descarado suborno, caso ele se comportasse durante a entrevista :-)

Ontem voltamos, parando na hora do almoço para resgatar Rodrigo, numa viagem que começou às 8h e terminou às 17h... E ainda saí correndo pra dar aula, super baqueada e querer-querendo ficar gripada, mas no fim deu tudo certo. Ufa!

Vamos ver se agora voltamos à programação normal.

Imagem: daqui.

20 outubro, 2009

August Day Song*


Era chuva fina quando fui deitar

daquelas eternas, que acinzentam por dentro.

No meu sonho, porém, tudo explodia em luz

e mesmo a dor era mansa

e mesmo a paixão era tranquila -

instante, mas também futuro.

Tinha gosto de beijo roubado,

tinha vertigem de abismo bem debaixo dos pés,

tinha alegria sem sombra de angústia.

Era bom o sonho. Era sonho de agosto.

E acordei relutante,

quase com vontade de ficar morando nele.


* Título de uma canção da Bebel Gilberto.

Imagem: Alicia Varela

17 outubro, 2009

Remédio inusitado

Pois então que ontem eu ainda estava ruinzinha de dor nas costas. Mas aí, à noite, família completa reunida em torno da mesa, e a Bia lembrou que viu outro vídeo de um bebê dançando Beyoncé e é só mencionar essa música que a gente fica diiiiiias com ela na cabeça... E é impossível não começar a se mexer e canta ohohoh...

E nessas de dançar, mesmo que contidamente, não é que alguma coisa entrou no eixo e a dor diminuiu um pouco?

Então, já que não dá para incorporar o vídeo original, fiquemos com a hilária interpretação do time de futebol de Glee dançando "All the single ladies"!


16 outubro, 2009

Mas já que se há que doer...

... que pelo menos seja com poesia :-)

Desde ontem, minhas costas deram de doer um monte. E, como acontece nessas ocasiões (que eram frequentes durante algum tempo, mas tinham parado há uns quatro anos), me lembrei do Drummond e de seu poema dolorosamente lúcido, em que ela fala da vida como ordem e do peso imenso que carregamos sobre os ombros - a mão de uma criança: a lembrança, bem em meio à tempestade do presente e da vida nua, de que há que guardar espaço para o futuro.

Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.


Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.


Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

14 outubro, 2009

Finalmente, o sol

Pra alma espreguiçar, macia e morna. Pro cabelo secar mais rápido. Pra recarregar as baterias. Pra esperança ser possível. Pra gente se virar na direção certa. Pra mãos e pés ficarem aquecidos. Pro edredom ser só por aconchego. Pra alma se ampliar de azul. Pra respirar mais leve. Pra dissipar o mofo. Pro arrepio ser só por prazer. Para florescer. Por pura festa. Pra sorrir mais fácil. Pra dar sentido ao quintal. Pra que andemos leves do guarda-chuva. Pra corar os rostos. Pra dar gosto à salada. Pra estender a mão e convidar a andar ao lado - on the sunny side of the street.

12 outubro, 2009

Decisão de feriado prolongado

Em conversa familiar, ficou combinado: se tivermos outro filho, também vai se chamar Rodrigo, só pra gente economizar a voz ;-)

07 outubro, 2009

Em pedaços

O rapaz da padaria é a boca e o queixo de um grande amor.
Quando chega às cinco da tarde, que os pães saem todos quentinhos do forno,
eu me arrumo bem bonita e perfumosa para ir à padaria.
O marido acha graça - tanto tempo de casados, e eu esperando toda noiva
quando ele chega do trabalho.
Nem desconfia que não me arrumo pra esperar,
mas para ir ao encontro:
de um passado que não passa,
e é ainda quente, que nem o pão que trago comigo na volta.

06 outubro, 2009

Nasceu!


Meu livrinho querido, fruto do meu trabalho no mestrado. No site da editora já dá pra comprar (e tá em promoção).

Vai ser lançado no Encontro da ANPOCS, em Caxambu, mas assim que tivermos uma data de lançamento em São Paulo, aviso!

04 outubro, 2009

Si se calla el cantor...

Logo que acordei, dei de cara com a notícia. Ando tão doidinha, que nem sabia que ela estava internada e, assim, a notícia foi chocante e me encheu de tristeza. É que é sempre triste quando morre alguém que transformou o mundo em um lugar mais bonito e habitável, contribuindo para renovação das esperanças.


01 outubro, 2009

Mau Humor

Minha irmã, quando pequena, inventava significados pra rabugice, torcendo as palavras e dizendo que era tudo "mau amor".

Desde a semana passada que estou assim: coração raso de paciência e, na superfície da pele, pequenas dinamites querendo explodir. Feito cachorro brabo, rosno, ladro-ladro-ladro, ainda que não morda.

Mesmo com aqueles que amo e que me amam, estou azeda de dar nó na língua. Amando um amor talhado feito leite velho.

(Só melhora um pouquinho quando o Rodrigo, em sua sabedoria de criança, mesmo depois de rosnares e latidos, insiste em caminhar comigo de mãos dadas. E enquanto agradeço a ele por não desistir de mim, nem mesmo quando estou muito chata, entendo melhor a misteriosa receita que transforma o leite talhado em delicioso doce de leite. Rodrigo sorri, me estende a mão, e o azedo vira mel: pura arte de recuperar o bom do amor).

Pra adoçar a boca (e o amor):



30 setembro, 2009

Pra rir um pouco

Quando estou escrevendo, tenho sempre um dicionário por perto, pra poder checar se a palavra que me vem à cabeça significa mesmo o que necessito que ela diga... Também costumo manter aberta uma janela com um dicionário online, e o Priberam é minha escolha predileta.

Tudo isso pra dizer que hoje, pela primeira vez, prestei atenção na nuvem de palavras mais procuradas e percebi que, entre elas, está "auspicioso".

Alguém aí quer apostar que quando passarem os efeitos da última novela das oito, essa palavra vai sumir dali?

29 setembro, 2009

Penélope moderna

Como é difícil sentar na frente da tela em branco para puxar os fios da memória e ainda tecer com eles uma trama inteligível!

Começo, recomeço; escrevo, apago; penso um rumo, logo me dou conta de que a trama pede que eu vá por outro... Fio e desfio sem parar, procurando no passado algo que se pareça com: um caminho.

Mas e toda aquela conversa de que o caminho se faz ao caminhar?

(Estou tentando, há um mês, concluir um Memorial acadêmico. Sem sucesso, como pode-se perceber...).

25 setembro, 2009

Silêncio (em alto volume)

Vai daí que depois de tantas coisas (e tão intensas), ando me sentindo um pouco "vazia", um pouco sem palavras. Sintomaticamente, já na terça acordei meio moída e com a garganta doendo, e na quarta tive que ficar praticamente de cama (embora seja mais exato dizer "de sofá", já que aproveitei e assisti muitos episódios da primeira temporada de In Treatment). Ontem consegui trabalhar, ainda com a garganta reclamando e hoje acabei ficando com o Rodrigo o dia todo - era pra ser só de manhã, mas a gente foi se atrasando, se arrastando e no fim achei que ele estava precisando de um dia de mãe só pra ele, ou vai ver que eu é que estava precisando de um dia de ser só mãe pra ele, não sei.

O fato é que estou meio lenta e aérea, ainda que esteja colocando os pés no chão devagar, bem devagar, pra ver se não esfolo os pés, nem aterriso de trambolhão. Sem pressa alguma, como se pra compensar a violência de tantos tempos desencontrados dos últimos anos.

Vontade de ficar quietinha, só pra poder ouvir com calma tudo aquilo que dentro de mim sussurra, fala e de vez em quando berra. Se por fora ando cheia de silêncios é porque aqui dentro tá assim, ó: puro zumzumzum.

21 setembro, 2009

A origem da primavera*

Então, depois de quase cinco longos anos, acabou. Não tem mais relógio correndo por dentro, não tem mais culpa por tudo que não li, não tem mais desespero com o que podia ter sido e não foi.

O que sobrou foi a vontade de seguir em um caminho já iniciado, e a felicidade de recuperar o prazer que o trabalho de pesquisa sempre me deu (mesmo com as crises necessárias que fazem parte do processo).

A banca de defesa foi muito, muito respeitosa e generosa. Muito mesmo. Eu achei que ia ser paulada pra todo lado. E não é que foi super fácil e sem críticas: todos apontaram problemas, lacunas e explicitaram aquilo que eu já sabia - que o trabalho promete muito mais que cumpre. Mas todos observaram que isso se deveu também ao tamanho do empreendimento e valorizaram essa minha "coragem" (ou falta de noção, de acordo com o que minha terapeuta chamou de "minha banca interna"...) de me esforçar para me aproximar do meu "objeto" de um modo diferente.

E o carinho das pessoas que foram? Da mensagenzinha da enteada mais nova na hora do almoço? Da enteada mais velha, na platéia? Da amiga querida e de seu namorado? Do Marco, que veio lá de Campinas? De parte da equipe de Osasco, que ainda me mandaram um bilhete e um presente? Do Mauricio, da Ana e da Carla, da segunda fileira? Do marido, mais nervoso que durante o parto? Do Pedro, da Monika, da Veronika, do Wilson... E mesmo da Leny, membro da banca, que fez a leitura mais querida e atenciosa desse mundo?

Tem muita coisa a ser pensada, corrigida, refletida, lacunas a serem preenchidas. Mas só o fato do futuro ter voltado a ser possível já rearranja imensos espaços por dentro.

Hoje de manhã, fazendo a preparação final da apresentação, fui falar do rito que encerra parcialmente um percurso de pesquisa e também uma relação de quatorze anos com a USP, e me lembrei da voz da Fátima Guedes, cantando "e lá vou eu...". (E, obviamente, tive que fazer uma força imensa para não começar a chorar).

Hora de içar as velas e seguir em frente. E lá vou eu...



* um dos títulos do primeiro capítulo do livro Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, de Clarice Lispector.

18 setembro, 2009

Calmaria


Não chega nem a ser respiro; é mais o breve intervalo entre inspirar e expirar. A fé cega de quem está em plena travessia, pé ante pé na pinguela estreita que leva de um lado a outro, e consegue não olhar pra baixo. A calmaria de estar mergulhada no presente, esquecida da turbulência recém-ultrapassada e também das incertezas do futuro. Concentração no agora- mesmo, pés fincados na terra, lua nova, início de estação. Uma pequena morte: instante fora de qualquer tempo e espaço. É breve (a esta altura da vida já sei). É fundo. É bonito, também: encher a alma de horizonte, ampliar espaços por dentro. Nem adianta pedir pra durar - dali a pouco o vento sopra, tudo se agita, é necessário içar as velas e decidir a nova direção. Mas não ainda: por enquanto é tempo de permanecer.

Imagem: Patricia Metola

15 setembro, 2009

Artes

No final de semana, fizemos um "foguete" guardador de giz de lousa. Na verdade, é uma casinha, mas Rodrigo viu que era pontudo e cismou que era foguete, então...foguete ficou sendo :-)


Ao contrário dos outros, esse dá uma trabalheira danada!


Era muito detalhezinho pra costurar... E ainda era do livro em que os moldes não vêm na escala certa; e como era domingo, não tinha jeito de ir copiar a 200%, de modo que foi no olhômetro mesmo...


Mas acabou dando tudo certo...

14 setembro, 2009

Contagem Regressiva


Por aqui, em compasso de preparação para a defesa, que será daqui há uma semana. Uma mistura de sensações boas e tensas, de alegria e de tristeza (afinal, a defesa também encerra meu percurso como aluna da USP, durante quase quatorze anos).

A defesa - que é pública - acontecerá no dia 21 de setembro (segunda-feira que vem), às 14 horas, no Prédio da Administração da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, sala 116.

Então é isso: na próxima segunda, além de abrir os braços para a chegada da primavera, espero poder abrir os braços para uma nova fase da vida, ritualizando o final de uma etapa longa e, apesar de tudo, boa.

Imagem: www.gettyimages.com.br

11 setembro, 2009

Rápida e rasteira

- A quinta temporada de Supernatural começou bem; mas vamos combinar que Castiel podia ter aparecido mais, né?

- Espero que não vá ser uma temporada de muitas DRs entre Sam e Dean, que ninguém merece!

- Uma das coisas que mais gosto na série realmente é o fato deles tirarem sarro de si mesmos com frequência :-)

- Sessão nostalgia: não é que dei de cara com um vídeo do Toto? Uma música que era trilha de novela, em 1986...

E chega de notícias inúteis nesse post de hoje.

10 setembro, 2009

Em bom baleiês

Olhaaaaa sóóóó a baleeeeeeía que a gente fez hoje de manhããããããããããã:

Nãããõ ficoooooou liiiiinda e simpáááááááática? ;-)

08 setembro, 2009

Cristal

Os dias cinzas podem ser tristes, de uma tristeza funda e dolorida a que também chamamos melancolia. Tava até no livro, que o Rô trouxe da biblioteca circulante no feriado, a expressão "ele estava mais triste do que três dias nublados".

Mas tem dia que o cinza não traz tristeza. Ao contrário: ressalta a festa. Quando o cinza não invade, só emoldura, é que as cores ficam ainda mais vivas. A árvore tão nua que é quase sombra, com sua explosão de rosa, colorindo o caminho. O tapete de pôr-do-sol, na mistura de folhas vermelhas e douradas. Ou as cintilâncias do som, que rebrilham e espocam alegrias.

Tem dia que o cinza é colorido.

Hoje, tenho certeza que foi porque topei com essa música que o chumbo do céu virou leveza:


07 setembro, 2009

Gratidão



Aí a gente abre a caixa postal e encontra uma mensagem de uma pessoa com quem só tivemos contato virtual, comentando cuidadosamente nosso trabalho, de forma respeitosa e provocadora. Sem "passar a mão na cabeça", mas ajudando a reconhecer o que merece mais cuidado, o que é instigante, o que precisa ser melhorado...

E o azul dá pinceladas por dentro, só de saber que tem gente querida e generosa no mundo...

Escatologias


Crianças adoram falar em xixi e cocô. Não sei bem por que, mas é uma diversão transgressora das boas: xixi, cocô, pum, arroto. O Rodrigo se diverte horrores falando no assunto... Os amigos dele também...

Há umas semanas, o professor do Rô tinha dado uma olhada naqueles livros de softies que comprei no ano passado e tinha visto a foto do "Cocô solitário". Aí ele comentou comigo que esse era um ótimo "bicho" para as crianças da sala do Rô, todos por volta de seus quatro anos, porque ele adoram o assunto.

Vai daí que Rodrigo ouviu essa conversa e começou a me pedir para "fazer um cocô" pra ele. Neste final de semana, finalmente compramos o feltro marrom e fomos testar o molde. O resultado é esse aí de cima: o "cocô do Rodrigo"...

Pior são as conversas que passaram a fazer parte da nossa rotina, após a chegada do "cocô":

- Filho, vamos sair; você vai levar o seu cocô?

- Mãe, onde está o cocô que você fez pra mim?

- Eu quero dormir com o cocô...

Escatologia pura :-)

Para ler ouvindo História do Cocô (do programa Cocoricó).

03 setembro, 2009

Alquimia

Desde a semana passada que o Rô estava com desejo de fazer panquecas. Vejam que não era de comê-las; ele queria fazer as benditas. E eu dizendo que faríamos, mas sem conseguir cumprir a promessa com tanta correria.

Hoje, então, conseguimos nos organizar e fizemos as tais panquecas. Primeiro, a massa. Inventei de colocar uma parte de farinha branca e a outra de farinha de aveia, e ficou bem boa. Ia tentar com a integral, mas ela às vezes deixa tudo pesado, e eu já tinha dado a mancada de só ter um ovo... Achei que ia ficar seco e duro demais. Mas a farinha de aveia é tão fininha, que deixa tudo mais fofo mesmo, então deu certo.

Massa feita e panquecas fritas, começamos a fazer o recheio. Como tinha que usar o fogão, enquanto eu cozinhava o Rodrigo ficou amassando pão. Gente! Fiquei orgulhosíssima: ele fez o pão praticamente sozinho. Pus os ingredientes e falei que tinha que ficar igual massinha, e ele foi amassando, virando, misturando... E eu só assistindo a massa crescer, feliz!

Acabei o recheio da panquecas (fiz de abobrinha; experimentei outro dia num restaurante e adorei...) e fui lavar a mão do Rô, explicando pra ele que a massa precisava descansar antes de ir pro forno. Cobri a massa e deixei na cozinha.

Lavamos a mão, conversamos um pouco, começamos a nos preparar para rechear as panquecas. Dali a dois minutos, Rodrigo vai levantar o pano que cobria o pão, "pra ver se a massa já acordou" :-)

As panquecas comemos no almoço; o pão vai ficar pro lanche.

E nada como aproveitar o último suspiro de calor antes do final de semana pra fazer pão, né? A massa cresceu que foi uma beleza!

01 setembro, 2009

Cansaço II - A Missão

- Sabe aqueles dias em que as coisas vão se embolando, embolando e quando você percebe, o dia quase acabou e você não conseguiu fazer NADA do que tinha planejado? Pois ontem e hoje foram assim. E eu tô três vezes mais cansada do que estaria, se tivesse feito tudo que tinha pra fazer, porque não tem nada pior do que correr como barata tonta e ainda assim não sair do lugar :-(

- Do lado positivo (porque às vezes há um), acho que consegui me acertar de novo com a rotina da casa, resolvi pendências antigas, encontrei ontem a Paulinha e hoje bati um pouco de papo com a minha antiga chefe, com quem tive momento conflituosos, mas a quem admiro imensamente (e mais, à medida que o tempo passa). É engraçado isso: quando fui trabalhar lá, eu tinha vinte e poucos anos; e ela às vezes lia nossas dificuldades de comunicação em termos de geração (não era só comigo, mas também com a minha sócia ou outros participantes da equipe). Na época, eu não concordava muito com essa leitura; mas hoje, acho que ela tinha muita razão - e nem era pela idade, era pelo momento que a geração dela tinha vivido (na militância, nas lutas, nos movimentos sociais da década de 80; no caso dela, ainda, que foi Deputada constituinte, isso era ainda mais verdade), e o momento em que a minha começou a viver. Na minha pesquisa de doutorado, quando olhava os movimentos sociais em torno do desemprego, topei com a figura dela várias vezes... Ela faz parte das pessoas que deram a vida para fazer acontecer um projeto de país, coisa que a gente só com dificuldade consegue dimensionar: o que é estar no lugar e no tempo em que a história parece aberta à mudança... Não é que não esteja agora e a todo momento, mas atualmente é difícil até mesmo identificar onde estão os limites de nossa experiência que constituem necessidades radicais. Enfim: cousas...

- Pra iluminar o dia, de manhã Rodrigo e eu combinamos de fabricar um bicho de feltro. Era para ser um ET, porque ando querendo testar umas coisas pensando já nas lembrancinhas do aniversário dele. Mas na hora H, Rodrigo decidiu que queria um bicho-com-cabeça-de-triângulo. Fizemos o molde, cortamos, eu costurei à mão (porque minha máquina não anda querendo funcionar direito; e a menorzinha não costura duas camadas de feltro nem com reza braba...) e o Rodrigo "recheou". Eu queria chamá-lo de E-Tri, mas o Rô cismou que vai chamá-lo de Batman, então o que se há de fazer?
Vejam se não ficou bonito:

28 agosto, 2009

Cansaço

- Hoje eu bem queria que o mundo acabasse num barranco...

- A dica do James, como sempre, é ótima: Florence and the Machine, Dog Days. A música é boa, e o clipe melhor ainda!

- E o Mauricio fez o post sociológico mais cheio de mel do mundo. [O que me lembrou que em algum momento eu tenho que ler As Palavras e as Coisas. Mas acho que vai ficar pra depois de outros cursos e, quem sabe, depois do História da Loucura. Ou seja: a pessoa sem noção vai passar o resto da vida tentando chegar n'As Palavras e as Coisas...].

- E além de ontem um aluno ter me chamado de "professorinha", hoje recebi uma mensagem de uma aluna que começava com "oi, profi". Tudo bem que eu tenho essa cara de quem nem saiu da graduação, mas, pô! Onde está o decoro, minha gente? :-)

- Hoje eu vi a Cecilia e toda a Familia Rillo Alencar!!! Vocês não têm ideia de como ela está fofa e querida... Doçura total, minha gente. E como ela não gostou do meu colo, joguei a carta básica do "vou te mostrar umas coisas legais", e aí ela curtiu tentar pegar a estrela do mar pendurada na parede do restaurante e as rebarbas de um quadro de tapeçaria... Igualzinha à mãe dela: não pode ver tirinhas de tecido que já sai querendo pegar...

- Hoje o dia foi corrido, cheio de atrasos, mudanças de rumo. Mas inesperados que não chegam a trincar a sensação inteireza, ao contrário: parece que tudo era parte de um mesmo fluxo. Estranho. Mas inteiro.

24 agosto, 2009

Coração quentinho

O Rodrigo não anda a fim de sair de casa. Simples e definitivo assim: não importa qual seja a proposta, o ser prefere ficar dentro de casa, brincando ou mesmo assistindo filmes (agora ele entrou na onda de "Princípes e Princesas", do Michel Ocelot, que é lindo e divertido mesmo). Não quer ir ao parque, não quer ir a aniversários.

Eu e o Edu já estávamos ficando preocupados. Ainda que achemos que é só uma fase, sabe como é: já estávamos cogitando problemas - em casa, na escola, sei lá - , tecendo hipóteses, imaginando soluções... Mas ontem, conseguimos convencê-lo a ir à festa de um amiguinho de quem ele gosta bastante.

Chegamos lá, mas os amigos da escola mesmo não tinham chegado. Ele então ficou tomando chocolate quente (a festa era às 10h da manhã, então era um café-da-manhã, delicioso) e se ambientando. Disse não a todas as nossas tentativas de fazê-lo experimentar os brinquedos, fez birra para a mãe do amiguinho, mas pelo menos não deu chilique nenhum, só ficou observando...

Os amiguinhos dele começaram a chegar, e, num passe de mágica, de repente ele estava brincando, pulando, correndo. De vez em quando checando para ver se não sumíamos, mas ainda assim se divertindo muito com as brincadeiras propostas pelos monitores.

[A festa foi em um buffet muito bacana, que trabalha numa linha antroposófica, então não tem nada de brinquedos barulhentos, quilos de açucar, crianças alucinadas etc. Tinha sucos naturais, espaço amplo, contação de histórias e brinquedos em sua maioria de madeira, para estimular a imaginação. Muito, muito bacana. Ao invés da exaustão de um tempo que foi vorazmente consumido, a gente sai com a sensação de paz, gratidão e encontro].

Em uma certa altura, vejo o Rodrigo passar e se aproximar de um dos amigos da escola. Aí, ele estendeu a mão e perguntou: "E., vamos brincar lá fora?". Mais que depressa, E. ignorou os apelos da mãe dele, que queria que ele parasse para comer alguma coisa, deu a mão para o Rô e lá foram os dois, explorar o quintal. Tão doce, vê-los correndo de mãos dadas! Tão queridos, em sua aprendizagem de companheirismo e amizade...

Vão vendo que o único problema que o Rodrigo aparentemente tinha era um bastante comum: preguiça :-)

22 agosto, 2009

Quem não se comunica...

Marido, na Livraria, procurando um presente para mim. Antes, porém, ele resolveu passar pela seção de Sociologia, porque vício é vício... Como ele estava com ares de perdido (segundo o próprio, que eu e o Rô estávamos nos divertindo na seção de literatura infantil e não testemunhamos nada), o atendente veio perguntar a ele se podia ajudar.

Então, Edu teve a ideia de procurar algo que me ajudasse em minhas variadas manias - fazer velas, costurar softies, fazer cadernos ou álbum de fotos com papel reciclado... - e soltou:

- Eu queria ir na seção de hobbies.

Reparem vocês que ele estava na seção de Sociologia e que quando a gente fala, ninguém passa embaixo a legenda. De maneira que o moço se animou e convidou-o a seguir-lhe até a seção em que estavam todos os livros de... Thomas Hobbes :-)

Edu riu e explicou o mal-entendido (super honesto, diga-se de passagem). Tentando ser mais claro, Edu pediu então para ir à seção de "passatempos". Alguma aposta sobre onde ele foi parar?

Na seção de Sudoku!

Rindo, mais uma vez tentou explicar o que tinha em mente: trabalhos manuais. E só então, finalmente, foi levado à seção onde estavam os livros que ele realmente queria encontrar.

(E, antes que alguém pergunte, ele não me comprou nada, não, porque resolveu - depois de toda essa saga - que não seria coisa de um bom marido contribuir para a procrastinação da própria esposa...).

21 agosto, 2009

Setembro - Update

Talvez seja esse cinza, esse frio, essa vontade de ficar encolhida - cachecóis azuis, roupa mole (que me rendeu a indignação do meu filho, perguntando porque raios eu ia levá-lo a escola "de pijamas"), chá quentinho para confortar o corpo...Talvez seja porque é preciso inventar aconchegos e bonitezas para tornar a vida um bocadinho mais larga.

Fato é que hoje, ao escrever um post sobre Agosto que será publicado amanhã, lá no Margens, encontrei uma crônica linda do Caio, que não vou resistir a colocar aqui, e fiquei sorrindo sozinha da precisão que ele tem em dizer aquilo que a gente também sente, mas com ele aprende a sentir mais bonito e mais denso. E fiquei curtindo, junto com ele, a sensação boa de inventar presenças, de guardar delicadezas, de não temer clichês e cuidar de aveludar por dentro a saudade e a esperança.

E é tão mansa essa felicidade de ler um texto bonito, de rememorar canções, de me pegar sorrindo sozinha, que de repente me dou conta: já é Setembro-por-dentro.

A crônica é para ser lida ao som de "Melodia Sentimental", cantada pela Olivia Byington (linda!). Finalmente consegui subi-la no goear. Não é maravilhosa?





Carta Anônima
Caio Fernando Abreu

Tenho trabalhado tanto, mas penso sempre em você. Mais de tardezinha que de manhã, mais naqueles dias que parecem poeira assentada aos poucos e com mais força enquanto a noite avança. Não são pensamentos escuros, embora noturnos. Tão transparentes que até parecem de vidro, vidro tão fino que, quando penso mais forte, parece que vai fazer assim clack! e quebrar em cacos, o pensamento que penso de você. Se não dormisse cedo nem estivesse quase sempre cansado, acho que esses pensamentos quase doeriam e fariam clack! de madrugada e eu me veria catando cacos de vidro entre os lençóis. Brilham, na palma da minha mão. Num deles, tem uma borboleta de asa rasgada. Noutro, um barco confundido com a linha do horizonte, onde também tem uma ilha. Não, não: acho que a ilha mora num caquinho só dela. Noutro, um punhal de jade. Coisas assim, algumas ferem, mesmo essas que são bonitas. Parecem filme, livro, quadro. Não doem porque não ameaçam. Nada que eu penso de você ameaça. Durmo cedo, nunca quebra.

Daí penso coisas bobas quando, sentado na janela do ônibus, depois de trabalhar o dia inteiro, encosto a cabeça na vidraça, deixo a paisagem correr, e penso demais em você. Quando não encontro lugar para sentar, o que é mais freqüente, e me deixava irritado, descobri um jeito engraçado de, mesmo assim, continuar pensando em você. Me seguro naquela barra de ferro, olho através das janelas que, nessa posição, só deixam ver metade do corpo das pessoas pelas calçadas, e procuro nos pés daquelas aqueles que poderiam ser os seus. (A teus pés, lembro.). E fico tão embalado que chego a me curvar, certo que são mesmo os seus pés parados em alguma parada, alguma esquina. Nunca vejo você - seria, seriam?

Boas e bobas, são as coisas todas que penso quando penso em você. Assim: de repente ao dobrar uma esquina dou de cara com você que me prega um susto de mentirinha como aqueles que as crianças pregam umas nas outras. Finjo que me assusto, você me abraça e vamos tomar um sorvete, suco de abacaxi com hortelã ou comer salada de frutas em qualquer lugar. Assim: estou pensando em você e o telefone toca e corta o meu pensamento e do outro lado do fio você me diz: estou pensando tanto em você. Digo eu também, mas não sei o que falamos em seguida porque ficamos meio encabulados, a gente tem muito pudor de parecer ridículos melosos piegas bregas românticos pueris banais. Mas no que eu penso, penso também que somos meio tudo isso, não tem jeito, é tudo que vamos dizendo, quando falamos no meu pensamento, é frágil como a voz de Olívia Byington cantando Villa-Lobos, mais perto de Mozart que de Wagner, mais Chagal que Van Gogh, mais Jarmush que Win Wenders, mais Cecília Meireles que Nelson Rodrigues.

Tenho trabalhado tanto, por isso mesmo talvez ando pensando assim em você. Brotam espaços azuis quando penso. No meu pensamento, você nunca me critica por eu ser um pouco tolo, meio melodramático, e penso então tule nuvem castelo seda perfume brisa turquesa vime. E deito a cabeça no seu colo ou você deita a cabeça no meu, tanto faz, e ficamos tanto tempo assim que a terra treme e vulcões explodem e pestes se alastram e nós nem percebemos, no umbigo do universo. Você toca minha mão, eu toco na sua.

Demora tanto que só depois de passarem três mil dias consigo olhar bem dentro dos seus olhos e é então feito mergulhar numas águas verdes tão cristalinas que têm algas na superfície ressaltadas contra a areia branca do fundo. Aqualouco, encontro pérolas. Sei que é meio idiota, mas gosto de pensar desse jeito, e se estou em pé no ônibus solto um pouco as mãos daquela barra de ferro para meu corpo balançar como se estivesse a bordo de um navio ou de você. Fecho os olhos, faz tanto bem, você não sabe. Suspiro tanto quando penso em você, chorar só choro às vezes, e é tão freqüente. Caminho mais devagar, certo que na próxima esquina, quem sabe. Não tenho tido muito tempo ultimamente, mas penso tanto em você que na hora de dormir vez em quando até sorrio e fico passando a ponta do meu dedo no lóbulo da sua orelha e repito repito em voz baixa te amo tanto dorme com os anjos. Mas depois sou eu quem dorme e sonha, sonho com os anjos. Nuvens, espaços azuis, pérolas no fundo do mar. Clack! como se fosse verdade, um beijo.

(Publicada n'O Estado de São Paulo, 16/03/1988.

18 agosto, 2009

Variadas

- Final de semana passado foi de preguiça... Marido e eu tangenciando gripes, Rodrigo mal-humorado sem querer sair de casa... Mas no fim, acho que era o que precisávamos mesmo.

- No sábado à noite assistimos $icko, do Michael Moore, tão interessante quanto assustador. Os americanos realmente são os que mais levam a sério o liberalismo como arte de governo. E o pior é que o nível da discussão provocada pela proposta do Obama para reformar o sistema de saúde americano mostra como essa posição leva a uma espécie de beco sem saída: nem se consegue escapar do discurso da liberdade de comprar serviços no mercado, nem tampouco se avança na ideia de regulação social dos serviços privados... Terra de ninguém. E aí a americana com problemas de saúde adquiridos depois de seu trabalho de apoio no 11 de setembro vai à Cuba e chora com o fato de que o remédio pelo qual ela paga U$ 120,00 custar o correspondente a cinco centavos... Ela acha um insulto. Mas sua reação seguinte já não é a de problematizar as razões pelas quais seu remédio custa um absurdo em seu país, mas sim dizer "vou comprar um estoque"... (Provavelmente, hoje tem resenha do filme lá no Margens).

- Tenho escrito mais no Margens do que aqui... É que lá assumimos um cronograma, para animar as postagens, e também talvez seja porque tem várias ideais que estou precisando amadurecer antes da defesa. Acho que faz parte, né? Ter fases de silêncio, fases de outros interesses.
- Mas ainda quero escrever esta semana sobre um livrinho da Ruth Rocha que eu adorava quando pequena (Faca sem ponta, galinha sem pé) e também sobre um desenho que está passando no Discovery Kids e que eu detesto, tão equivocado ele consegue ser (alguém já assistiu a "Sid, o Cientista"?).

14 agosto, 2009

Cavar o silêncio

Presença

O Maurice, pessoa querida da minha vida, resolveu me deixar super emocionada e decidiu me dar de presente uma bolsa maravilhosa da Denize.

Levei um baita susto quando topei com aquele pacote na portaria, endereçado pra mim, com a cara inconfundível dos pacotes da La Reina Madre. Como ele tinha me avisado que meu presente estava a caminho, logo me dei conta de que tinha sido ele o autor da arte, o que só aumentou ainda mais minha surpresa e emoção.

Então abri o pacote e dei de cara com uma cartinha linda e carinhosa, e com uma Hot Bag My Friend linda, bonita, vermelha e cheirosa.

E eu, que pensei que a emoção de receber e abrir uma La Reina não podia ser maior, percebi que me enganei: para além dos carinhos e cheirinhos que tornam tão especial cada pacote, o presente que o Maurice escolheu pra mim, com tanto cuidado e atenção, trouxe também um pedacinho dele e dessa nossa amizade - tão delicada e fortemente costurada quanto as bolsas da Denize.

As usual, mon cher, pra você o meu carinho infinito.

12 agosto, 2009

Cada coisa em seu lugar


A casa andou tão abandonada, tanta coisa a ser limpa ou jogada fora, e eu não tinha tido tempo de colocar as coisas no lugar. Na semana passada, finalmente, roubei tempo e consegui: arrumar as estantes dos livros de literatura, pôr ordem no escritório, colocar os textos em pastas, as canetas nos potes, os lápis nas caixas, os pingos nos is. Arrumar por fora, pra ver se o por dentro também encontra alguma ordem.

O corpo cansado e doído, mas recheado de cintilâncias, porque colocar colocar a casa em ordem é quase escavar as diversas camadas de amor que foram se depositando nas estantes e por toda a casa que é nossa: sete anos de vida em comum e nossos começos estão na dedicatória linda que você me escreveu no livro da Adélia Prado; nas mensagens que a gente trocava tão intensamente, até antes do começo (ou vai ver que começou aí, nas palavras cotidianas com as quais a gente se tateou antes mesmo que a paixão nos tomasse); o amor está parafusado, colado e pintado nas coisas que inventamos e construímos para que a casa ficasse mais bonita e com a nossa cara; está nas coisas que sonhamos, escolhemos e compramos juntos; está na confusão das novidades que o Rodrigo trouxe - e arrumar a casa é sempre arrumar também mais espaço para esse nosso filho que não pára de crescer.

Arrumar a casa, nessas arrumações "sérias", só dá pra fazer com muito tempo disponível para aproveitar a paisagem. Tem que ser sem pressa, para que seja possível parar a cada bilhete perdido reencontrado, a cada grifo esquecido no livro predileto, a cada sorriso de surpresa ou saudade.

Sei que você não entende direito, por isso é que venho aqui te explicar: eu arrumo a casa pra passar pano úmido por dentro de mim, pra recolher cada pedacinho e poeirinha desse nosso amor, pra evitar que ele se desgaste, pra nos reencontrar. E, assim, relembrar a certeza boa de quando te conheci e entendi que meu lugar é aqui: do teu lado.

Imagem: Alicia

10 agosto, 2009

07 agosto, 2009

Trinta e dois


Quando eu era pequena e a gente fazia aquelas brincadeiras para descobrir com quem íamos casar, quantos filhos íamos ter, e (não me lembro bem) até qual carro teríamos, a idade que eu chutava era sempre em torno dos 20 e poucos anos. 24, se não me engano. Passar dos 20 anos era atingir o auge da vida adulta. Isso e chegar ao ano 2000, quando então teríamos também 20 e poucos anos. Eram dois marcos e dois alvos, ambos semelhantes em seu significado: "virar gente grande", ser dono da própria vida, casar, ter filhos, trabalhar.

Talvez eu sinta um pouco de saudade, às vezes, da ingenuidade infantil de crer que alcançar uma idade significava alcançar, como que por decreto, tudo aquilo que supostamente vem com a vida adulta. Porque os vinte chegaram e foram embora, os trinta já chegaram há algum tempo, e as metas que marcam a passagem definitiva pra vida adulta são bem mais complicados do que fazer aniversário. Ou talvez a gente é que tenha finalmente se dado conta de que a passagem definitiva não era sentar no novo degrau porque o degrau está numa escada cambiante e muda de forma e lugar na medida em que muda o significado que a gente dá a ser gente grande. E tem muito mais envolvido do que saber com quem vamos ficar, quantos filhos vamos ter, em que cidade vamos morar ou qual carro vamos dirigir.

Pra comemorar, então, já que supostamente o dia é meu (e do Caetano Veloso e da Charlize Theron), 32 micro-coisas sobre mim.

1. Nasci num dia de muito sol e minha alma leonina é viciada no dito cujo.
2. Por isso mesmo, dias cinzas me doem muito por dentro.
3. Ainda no tema "auspícios do signo", sou a terceira geração de mulheres leoninas casadas com sagitarianos (embora minha mãe tenha depois escapado da herança...).
4. Sou tímida até beirar o ridículo.
5. Mas depois que me sinto à vontade, sou palhaça (até beirar o ridículo).
6. Adoro ler gibis.
7. Adoro falar no telefone.
8. Minhas plantas preferidas são as suculentas.
9. Depois que tive o Rô, fiquei com medo de avião.
10. Prefiro subir a serra do que descê-la.
11. Tenho "síndrome de qual é a música".  Se você falar alguma coisa, há sempre o risco de que - ao invés de responder - eu comece a cantar...
12. Não consigo começar o dia sem arrumar a cama.
13. Gosto muito de ler.
14. Tenho fases com cada escritor: se gosto, não sossego até ler boa parte de seus livros (mesmo os que são ruins).
15. Adoro livros infantis.
16. Não gosto de matar aranhas, lagartixas ou louva-deus, por causa da Sra. Minha Avó.
17. Cachorros não costumam latir para mim.
18. E por causa disso eu tinha uma encanação de que o diabo andava atrás de mim! (Dean, por favor, me salve!).
19. Tenho medo de chuva forte.
20. Tenho medo de mexer com energia elétrica.
21. Já fui bem mais disciplinada e organizada do que sou hoje.
22. Queria ser mais disciplinada e organizada do que sou hoje.
23. Adoro ouvir (e cantar bem alto) um cd do Gipsy Kings só de músicas românticas, que a Monika me gravou. "Un amoooooor...un amor vivi....llorandoôôôô^!"
24. Adoro produzir lembranças: guardo cartas, bilhetes, ingresso de cinema... Só para topar com elas de vez em quando e poder me lembrar.
26. Adorei ficar grávida.
27. Gostaria de parir de novo (mas tenho preguiça de começar tudo de novo e por isso me contento em cheirar as crias de minhas amigas).
28. Sou Jardim e meu marido tem um nome que significa "Fonte no Meio da Mata".
29. Tenho sono leve e demoro pra dormir.
30. Sou boba e dada a acreditar nas pessoas, de modo que às vezes demoro a perceber que elas estão brincando.
31. Sou lenta - posso até ser inteligente, mas só em relação a coisas que podem ser maturadas.
32. Estou finalmente começando a ler Balzac, mas era um plano antigo, que não tem nada a ver com ter mais de trinta anos ;-)

Imagem: Rodrigo em 2007, nos preparativos para sua festa de dois anos.

06 agosto, 2009

Arrumando livros - II

"Eu venho sempre à tona de todos os naufrágios" (Mário Quintana).

Arrumando CDs - IV



MP3 pode ser muito mais prático; mas não tem coisa que se compare a fuçar CDs antigos, reencontrar pedaços da gente assim, de surpresa, só por relembrar de músicas (e histórias).

Arrumando CDs - III

Arrumando CDs - II

Arrumando CDs - I

Arrumando livros - I

Parada Cardíaca

Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure
vem de dentro

Vem da zona escura
donde vem o que sinto
sinto muito
sentir é muito lento

(P. Leminski)

04 agosto, 2009

I hate to say...

Estava lendo a Susan Sontag, A doença como metáfora e AIDS como metáfora (Companhia de Bolso,2007. Tradução: Rubens Figueiredo/Paulo Henrique Brito) . Comecei naquele dia em que Rodrigo dormiu na Livraria Cultura e, conforme lia, me impressionava como o ensaio é vigoroso e pode nos aproximar, por vezes com mais clareza, de questões que estão no cerne da experiência do presente.

Se isso era verdade no primeiro ensaio, escrito em 1976, logo após ela ter se descoberto com câncer, quando cheguei ao "AIDS como metáfora" (que é de 1986), as coisas foram ficando assustadoramente próximas. Em parte, é claro, porque as observações que ela faz dialogam com a percepção que eu tinha, ainda que fosse criança, a respeito da "novidade" introduzida pela AIDS. Mas principalmente porque, num ensaio quase despretencioso, ela apanha tensões e transformações centrais para compreendermos o que nos acontece hoje e ilumina muito tanto sobre o funcionamento de todo o dia das relações sociais quanto sobre as significações e reações aos surtos de gripes atípicas.

Em alguns trechos, sua análise me fez lembrar o Zizek de Bem vindos ao deserto do real. Embora analisando eventos muito distintos - ela, a AIDS; ele, o 11 de setembro - como focam seu olhar sobre a sociedade americana, parece que apanham mecanismos muito semelhantes. Vejam lá:

"[...] A vontade de fazer previsões pessimistas reflete a necessidade de dominar o medo do que é considerado incontrolável. Exprime também uma cumplicidade imaginativa com o desastre. A sensação de mal-estar ou fracasso cultural dá origem à vontade de começar do zero, de fazer tábula rasa. Ninguém quer uma peste, é claro. Mas é bem verdade que seria uma oportunidade de começar algo novo. E começar algo novo é bem moderno, e bem americano, também.
É possível que a AIDS esteja tendo o efeito de nos acostumar ainda mais à idéia da destruição global, uma perspectiva à qual já fomos acostumados pelos armamentos nucleares. Quanto maior a inflação da retórica apocalíptica, mais irreal se torna a perspectiva do apocalipse. Eis uma situação que se repete constantemente no mundo moderno: o apocalipse aproxima-se... e não chega a acontecer. E continua a aproximar-se. Pelo visto, estamos sofrendo de um dos tipos de apocalipse moderno. Temos um que não está acontecendo, cujo resultado permanece suspenso: os mísseis que descrevem órbitas em torno da Terra, com uma carga nuclear capaz de destruir todas as formas de vida sobre a Terra várias vezes sucessivamente, e que (até agora) não dispararam. E temos ainda aqueles que estão acontecendo, e no entanto não tiveram (até agora) as consequências mais temíveis - como a dívida astronômica do Terceiro Mundo, a superpopulação, os desastres ecológicos; e também os que acontecem e depois (segundo nos dizem) não aconteceram - com o o colapso da bolsa de valores de outubro de 1987, que foi um crack, como o de outubro de 1929, e não foi. O apocalipse agora virou uma novela: não "Apocalipse agora", mas "Apocalipse de agora em diante". O apocalipse passou a ser um evento que está e não está acontecendo. Talvez alguns dos eventos mais temidos, como os danos irreversíveis ao meio ambiente, já tenham acontecido. Mas ainda não sabemos, porque os padrões mudaram. Ou porque ainda não conhecemos os índices apropriados para medir a extensão da catástrofe. Ou simplesmente por se tratar de uma catástrofe em câmara lenta. Ou que dá a impressão de ser em câmara lenta, porque sabemos que está acontecendo, podemos prevê-la; e agora temos que esperar que ela aconteça, para que venha a se concretizar aquilo que julgamos saber.)", (p.145-6)

Susan Sontag também apanha as condições para que a AIDS seja usada eficazmente para atualizar a metáfora da "peste", numa formulação que, para mim (que venho lidando com a noção foucaltiana de biopolítica), é muito precisa: "[...] A idéia de que a AIDS vem castigar comportamentos divergentes e a de que ela ameaça os inocentes não se contradizem em absoluto. Tal é o poder, a eficácia extraordinária da metáfora da peste: ela permite que uma doença seja encarada ao mesmo tempo como um castigo merecido por um grupo de "outros" vulneráveis e como uma doença que potencialmente ameaça a todos. [...] Mais do que o câncer, e de modo semelhante à sífilis, a AIDS parece ter o poder de alimentar fantasias sinistras a respeito de uma doença que assinala vulnerabilidades individuais tanto quanto sociais. O vírus invade o organismo; a doença (ou, na versão mais recente, o medo da doença) invade toda a sociedade" (p. 127-8). Mais atual, impossível.

Igualmente fecunda é a análise que a autora faz a respeito das análises e projeções estatísticas e seus efeitos:

"A vida moderna nos habitua a conviver com a consciência intermitente de catástrofes monstruosas, impensáveis - porém, conforme nos afirmam, bem prováveis. Cada acontecimento importante tem seu duplo, além de sua representação enquanto imagem (uma duplicação já antiga da realidade, que começou com a invenção da câmara fotográfica, em 1839). Ao lado da simulação fotográfica ou eletrônica dos eventos, temos também o cálculo de suas consequências eventuais. A realidade bifurcou-se, na coisa real e em sua versão alternativa, duas vezes. Temos o evento e sua imagem. E temos o evento e sua projeção.
[...] A capacidade de avaliar o modo pelo qual as coisas evoluirão no futuro é o subproduto inevitável de uma compreensão mais sofisticada (quantificável, testável) dos processos, tanto sociais quanto científicos. A capacidade de projetar eventos futuros com certo grau de precisão ampliou a própria definição de poder, por ser ampla fonte de instruções a respeito da maneira de se lidar com o presente. Mas, na verdade, a capacidade de antever o futuro, antes associada à noção de progresso linear, transformou-se - com a aquisição de um volume de conhecimentos maior do que se poderia imaginar - numa visão da catástrofe. Cada processo é uma perspectiva que aponta para uma previsão apoiada em estatísticas. [...] Tudo na história ou na natureza, capaz de ser encarado como um processo de mudança constante, pode ser visto como algo que caminha em direção a uma catástrofe. (Ou o insuficiente, cada vez menor - decréscimo, declínio, entropia -, ou o excessivo, maior do que podemos enfrentar ou absorver - crescimento incontrolável.). A maioria dos pronunciamentos dos peritos a respeito do futuro contribui para essa nova apreensão dupla da realidade - que vem somar-se à duplicidade, à qual já nos habituamos, criada pela abrangente duplicação em imagens de todas as coisas. Temos o evento que está acontecendo agora, e temos também aquilo que é pressagiado por ele: o desastre iminente, mas não real ainda, nem completamente apreensível" (p.146-7).

Nesse modelo de conhecimento - estatístico - que altera a forma de colocar em relação passado, presente e futuro e também modifica a relação entre os elementos que são definidos como "variáveis", a duplicidade está na distância que vai das probabilidades ao acontecimento. A distribuição estatística das probabilidades é lida como duplicação da estrutura social - e dessa maneira nos é possível compreender a importância central que adquirem nos discursos, termos que estão ligados ao cálculo das probabilidades sociais, "empregabilidade', "vulnerabilidade". A ambiguidade da palavra "chance", ao mesmo tempo "oportunidade" e "probabilidade", dá notícia da importância que a idéia de jogo adquiriu em nossa sociedade. É também a ambiguidade que se expressa na idéia de que o merecimento se liga tanto ao mérito das ações, quanto à força com que se "pede ao universo"... Mas já estou misturando as estações.

Pra terminar esse post muito longo (e que talvez ainda acabe indo parar também no Margens)., vou destacar apenas mais um ponto da análise de Susan Sontag: sua observação de que o aspecto novo na utilização da AIDS como atualização da metáfora da "peste" se relaciona ao fato de ser um vírus reconhecidamente portador de duas características - a latência (sendo possível ser portador, sem estar doente) e a mutação.

[...] "Mais promissor ainda do que a idéia de latência é o potencial da AIDS como metáfora da contaminação e da mutação. O câncer continua sendo usado como metáfora para referir-se a coisas temíveis ou condenáveis, muito embora a doença seja menos temida do que antes. Se a AIDS terminar sendo utilizada para fins semelhantes, será menos por ser ela invasora (uma característica que tem em comum com o câncer), ou mesmo por ser infecciosa, mas por causa da imagística específica que se desenvolveu em torno do vírus.
A virologia fornece todo um novo repertório de metáforas medicinais que não dependem da AIDS em particular, mas que assim mesmo reforçam a mitologia sobre ela. Foi muito antes da AIDS que William Burroughs afirmou, em tom de oráculo, e Laurie Anderson repetiu, que a 'linguagem é um vírus'. E a explicação viral é invocada cada vez mais. Até recentemente, a maioria das infecções virais conhecidas manifestava seus efeitos rapidamente, como a raiva e a gripe. Mas coma expansão da categoria dos vírus de ação lenta, a lista está aumentando. Muitas doenças progressivas e invariavelmente fatais do sistema nervoso central, algumas doenças degenerativas do cérebro capazes de se manifestar na velhice e as chamadas doenças de auto-imunização agora está sendo encaradas como possivelmente causadas por vírus lentos. [...] O vírus não é apenas um agente da infecção, da contaminação. Ele transporta "informação" genética, ele é capaz de transformar uma célula. E em muitos casos o próprio vírus evolui. [...]
Talvez não seja de surpreender o fato de que o mais novo fator de transformação do mundo moderno, a informática, esteja utilizando metáforas extraídas de nossa mais recente doença transformadora. Também não admora que as descrições do processo de infecção viral agora utilizem a linguagem da era do computador, como quando se diz que o vírus produz "cópias de si próprio". Além das descrições mecanicistas, a maneira como os vírus são caracterizados de modo animista - como uma ameaça à espreita, mutável, furtiva, biologicamente inovadora - reforça a idéia de que uma doença pode ser algo engenhoso, imprevisível, inaudito" (p.131-2).

Quando comento a atualidade do ensaio de S. Sontag, não quero sugerir que sua análise sobre a AIDS seja imediatamente "aplicável" ao caso da gripe suína, mesmo porque entre os quadros provocados pela AIDS e os provocados pela gripe, há uma enorme distância. Minha observação é mais em relação à atualidade dos mecanismos de controle e segurança que produzem a duplicidade a que a autora se refere em relação às epidemias e pandemias: ainda que se trate, em princípio, de uma situação atípica, cujo modelo de compreensão é o "surto" ou a "crise", os eixos que a gripe tematiza - controle epidêmico, identificação dos casos e segregação dos doentes, vacinas, identificação da distribuição das vulnerabilidades, restrição da circulação - são eixos fundamentais para a compreensão daquilo que conforma nossa experiência do presente.

A frase final do livro de S. Sontag criticando as métaforas militares com que se descreve a doença e, de outro lado, com que se procura mobilizar a sociedade para combatê-la, também continua atualíssimo (e é mais um ponto de contato com Zizek):

"[...] A metáfora que estou mais interessada em aposentar, mais ainda depois do surgimento da AIDS, é a metáfora militar. Sua utilização inversa - o modelo médico do bem-estar público - provavelmente tem consequências ainda mais perigosas e extensas, pois ele não apenas fornece uma justificativa persuasiva para o autoritarismo, como também aponta implicitamente para a necessidade da repressão violenta por parte do Estado (equivalente à remoção cirúrgica ou ao controle químico das partes indesejáveis pu "doentes" do organismo político). Mas o efeito das imagens militares sobre a conceituação da doença e da saúde está longe de ser irrelevante. Elas provocam uma mobilização excessiva, uma representação exagerada, e dão uma contribuição de peso para o processo de excomunhão e estigmatização do doente.
A idéia de 'medicina total" é tão indesejável quanto a de guerra "total". [...] Não estamos sendo invadidos. O corpo não é um campo de batalha. Os doentes não são baixas inevitáveis, nem tampouco são inimigos. Nós - a medicina, a sociedade - não estamos autorizados a combater por todo e qualquer meio... Em relação a essa metáfora, a metáfora militar, eu diria, parafraseando Lucrécio: que a guardem os guerreiros", (p.150-1).


Para ler ouvindo "I hate to say I told you so", do The Hives.



* Este post é dedicado ao James.