Antes mesmo de engravidar e ter o Rô, eu já tinha uma pequena coleção de livros infantis. Uns que eu lia quando criança, outros que comprei porque gostei e pronto!
Um deles é Guilherme Augusto Araújo Fernandes, de Mem Fox. Choro todas as vezes em que leio até hoje. Acho lindo e singelo.
E pensando nesse livro foi que outro dia comecei a me lembrar...
Um dos primeiros livros de sociologia que li - sem que tivesse sido indicado pelos professores, entenda-se - foi o maravilhoso Memória e Sociedade: Lembrança de Velhos, da Ecléa Bosi. Foi uma revelação.
Eu estava no primeiro ano da faculdade e encontrei o livro por acaso. As bibliotecas ainda eram todas separadas, e a nossa ficava num espaço escuro, abarrotado. Encontrei o livro num dos carrinhos de devolução, achei o título interessante e parei para olhar. Li a orelha, uns trechinhos da arguição da Marilena Chauí e decidi levar.
Ainda que seja um trabalho defendido na Psicologia Social, o livro mudou completamente minha maneira de entender o que é a sociologia, o que é o trabalho de pesquisa e, principalmente, o que é uma pesquisa de campo. O livro é um registro muito bonito das lembranças e memórias dos velhos que falaram com Ecléa, e as análises que ela faz são tão delicadas - não pesam no texto, dialogam com os entrevistados, deixam clara a importância tanto de uma escuta atenta quanto de "bons" informantes, dispostos a narrar parte de sua história.
E logo em seguida, saiu o livro do Carlos Heitor Cony: Quase-Memória (recentemente republicado). Eu li, reli, treli aquele livro. Li tantas vezes e sempre com a mesma grata surpresa. É um livro que fala da relação de um menino e de um homem com seu pai, e das lembranças inventadas que a gente põe no lugar da falta que sente...
Como eu tinha gostado desse livro, o Padilha (meu padrasto) me indicou o do Mário Martins: Valeu a pena. Um livro de memórias, super gostoso de ler, cujo ghost-writer foi Franklin Martins, filho de Mário.
Minha empolgação com o tema da memória continuava. E então resolvi escrever um projeto de iniciação científica, para tentar comparar o livro do Cony com as lembranças do Mário Martins. Livros absolutamente diferentes em estilo, objetivo etc. Por fim, uma professora ofereceu a mim e à Ana uma bolsa de iniciação e meu projeto ficou deixado de lado.
Acho que também por essa época que decidimos fazer um trabalho de campo, em Antropologia III - sobre velhice. Lembro que era III porque a gente também estava fazendo Sociologia III e lendo Marx :-) De maneira que nossa leitura da velhice estava toda enviesada pela questão do valor pessoal ligado ao valor produtivo etc. e tal.
Mas não era só isso. A gente entevistou jovens e velhos, resenhou filmes, interpretou contos e livros...Foi um trabalho daqueles tão ambiciosos que a gente só faz mesmo nos primeiros anos de faculdade, quando é jovem e sem-noção.
Eu tenho as fitas até hoje: histórias de São Paulo quando o condutor do bonde eletrético ainda esperava pelos passageiros usuais atrasados, por exemplo, ou histórias tão grandes que as fitas não venciam a quantidade de coisas que havia a contar.
Eu sempre gostei de ouvir histórias. Criança séria e tímida, os livros foram meus primeiros amigos. Mas o que eu mais gostava mesmo era de "ouvir" histórias. Para mim, nada havia de mais gostoso do que as férias na casa dos meus avós maternos, em que os adultos - tios, primos, tias-avó, tios-avô - se reuniam em torno da mesa para relembrar as artes e experiências que tiveram como crianças, as brigas, as gostosuras, as viagens malogradas, os apertos e apuros que haviam consolidado nossa família como uma família.
A cozinha também eram um espaço mágico e sagrado, onde todas as mulheres da família se apertavam depois das refeições para arrumar a bagunça mas também, principalmente, para conversar. Era na cozinha que circulavam as informações sobre as crises, se dividiam alegrias, se negociavam saídas...
Mais tarde, na época em que morei em Londrina, eu corria com minhas lições só para poder desfrutar das conversas da minha avó e da D. Cida, sua ajudante. Naquela época, minha avó fazia salgados para vender e eu sentava lá na cozinha e ficava observando e escutando as duas conversarem, filosofarem, relembrarem namoricos e emoções de menina. Enquanto uma abria a massa e a outra cortava os círculos, enquanto uma colocava o recheio e a outra ia fechando as esfihas com os dedos levemente molhados em água, enquanto uma passava o pincel com gema e a outra arrumava as esfihas na assadeira, eu ia aprendendo a ser mulher, a ser esposa, a cozinhar e a tecer os fios da minha própria história.
Depois, com Walter Benjamin, eu aprenderia a importância do trabalho manual e da distensão que ele propicia para a atividade de narrar. A narração que possibilita a experiência, em contraposição às vivências que se sucedem linearmente sem significar. Narrar é peneirar os significados das vivências, é reter o que importa, é distinguir no fluxo do tempo as marcas que constroem o fio de uma vida.
Talvez o que mais me emocione na história do Guilherme Augusto Araujo Fernandes é sua disposição em ouvir, em não aceitar que as memórias se percam - ainda que ele não saiba muito bem o que é uma memória. É assim que as memórias são recuperadas - porque há alguém disposto a ouvi-las, a revive-las. Alguém que encontra pretextos para a conversa - esses pequenos ganchos nos quais as lembranças podem se ancorar: como um livro infantil, a necessidade de escrever em um blog ou a coincidência de ouvir falar da Éclea Bosi duas vezes no mesmo dia...
Um deles é Guilherme Augusto Araújo Fernandes, de Mem Fox. Choro todas as vezes em que leio até hoje. Acho lindo e singelo.
E pensando nesse livro foi que outro dia comecei a me lembrar...
Um dos primeiros livros de sociologia que li - sem que tivesse sido indicado pelos professores, entenda-se - foi o maravilhoso Memória e Sociedade: Lembrança de Velhos, da Ecléa Bosi. Foi uma revelação.
Eu estava no primeiro ano da faculdade e encontrei o livro por acaso. As bibliotecas ainda eram todas separadas, e a nossa ficava num espaço escuro, abarrotado. Encontrei o livro num dos carrinhos de devolução, achei o título interessante e parei para olhar. Li a orelha, uns trechinhos da arguição da Marilena Chauí e decidi levar.
Ainda que seja um trabalho defendido na Psicologia Social, o livro mudou completamente minha maneira de entender o que é a sociologia, o que é o trabalho de pesquisa e, principalmente, o que é uma pesquisa de campo. O livro é um registro muito bonito das lembranças e memórias dos velhos que falaram com Ecléa, e as análises que ela faz são tão delicadas - não pesam no texto, dialogam com os entrevistados, deixam clara a importância tanto de uma escuta atenta quanto de "bons" informantes, dispostos a narrar parte de sua história.
E logo em seguida, saiu o livro do Carlos Heitor Cony: Quase-Memória (recentemente republicado). Eu li, reli, treli aquele livro. Li tantas vezes e sempre com a mesma grata surpresa. É um livro que fala da relação de um menino e de um homem com seu pai, e das lembranças inventadas que a gente põe no lugar da falta que sente...
Como eu tinha gostado desse livro, o Padilha (meu padrasto) me indicou o do Mário Martins: Valeu a pena. Um livro de memórias, super gostoso de ler, cujo ghost-writer foi Franklin Martins, filho de Mário.
Minha empolgação com o tema da memória continuava. E então resolvi escrever um projeto de iniciação científica, para tentar comparar o livro do Cony com as lembranças do Mário Martins. Livros absolutamente diferentes em estilo, objetivo etc. Por fim, uma professora ofereceu a mim e à Ana uma bolsa de iniciação e meu projeto ficou deixado de lado.
Acho que também por essa época que decidimos fazer um trabalho de campo, em Antropologia III - sobre velhice. Lembro que era III porque a gente também estava fazendo Sociologia III e lendo Marx :-) De maneira que nossa leitura da velhice estava toda enviesada pela questão do valor pessoal ligado ao valor produtivo etc. e tal.
Mas não era só isso. A gente entevistou jovens e velhos, resenhou filmes, interpretou contos e livros...Foi um trabalho daqueles tão ambiciosos que a gente só faz mesmo nos primeiros anos de faculdade, quando é jovem e sem-noção.
Eu tenho as fitas até hoje: histórias de São Paulo quando o condutor do bonde eletrético ainda esperava pelos passageiros usuais atrasados, por exemplo, ou histórias tão grandes que as fitas não venciam a quantidade de coisas que havia a contar.
Eu sempre gostei de ouvir histórias. Criança séria e tímida, os livros foram meus primeiros amigos. Mas o que eu mais gostava mesmo era de "ouvir" histórias. Para mim, nada havia de mais gostoso do que as férias na casa dos meus avós maternos, em que os adultos - tios, primos, tias-avó, tios-avô - se reuniam em torno da mesa para relembrar as artes e experiências que tiveram como crianças, as brigas, as gostosuras, as viagens malogradas, os apertos e apuros que haviam consolidado nossa família como uma família.
A cozinha também eram um espaço mágico e sagrado, onde todas as mulheres da família se apertavam depois das refeições para arrumar a bagunça mas também, principalmente, para conversar. Era na cozinha que circulavam as informações sobre as crises, se dividiam alegrias, se negociavam saídas...
Mais tarde, na época em que morei em Londrina, eu corria com minhas lições só para poder desfrutar das conversas da minha avó e da D. Cida, sua ajudante. Naquela época, minha avó fazia salgados para vender e eu sentava lá na cozinha e ficava observando e escutando as duas conversarem, filosofarem, relembrarem namoricos e emoções de menina. Enquanto uma abria a massa e a outra cortava os círculos, enquanto uma colocava o recheio e a outra ia fechando as esfihas com os dedos levemente molhados em água, enquanto uma passava o pincel com gema e a outra arrumava as esfihas na assadeira, eu ia aprendendo a ser mulher, a ser esposa, a cozinhar e a tecer os fios da minha própria história.
Depois, com Walter Benjamin, eu aprenderia a importância do trabalho manual e da distensão que ele propicia para a atividade de narrar. A narração que possibilita a experiência, em contraposição às vivências que se sucedem linearmente sem significar. Narrar é peneirar os significados das vivências, é reter o que importa, é distinguir no fluxo do tempo as marcas que constroem o fio de uma vida.
Talvez o que mais me emocione na história do Guilherme Augusto Araujo Fernandes é sua disposição em ouvir, em não aceitar que as memórias se percam - ainda que ele não saiba muito bem o que é uma memória. É assim que as memórias são recuperadas - porque há alguém disposto a ouvi-las, a revive-las. Alguém que encontra pretextos para a conversa - esses pequenos ganchos nos quais as lembranças podem se ancorar: como um livro infantil, a necessidade de escrever em um blog ou a coincidência de ouvir falar da Éclea Bosi duas vezes no mesmo dia...
caramba, vou anotar todas as sugestões, pq deu água na boca!
ResponderExcluir