19 julho, 2008

Meu pai (4)

Ontem, no caminho de encontrar o Mauricio, ia relendo Arquitetura do Arco-íris, da Cíntia Moscovich, quando topei com o conto "Fantasia-Improviso", que fala da relação de uma mulher com um homem cego.

É sempre assim, desprevenida, que me assalta a lembrança: meu pai já não pode ver.

Há alguns anos sua visão borrou, manchou até tampar de vez. E ele deixou de ver.

Meu pai olhava e via o mundo. Adorava ler, dirigir, trabalhar. Sempre teve o orgulho masculino, agravado pela origem gaúcha e o pai militar, da independência: mas precisou aprender a precisar.

Meu pai não dá a ninguém o espetáculo do sofrimento: não deixa que lhe vejam doer. As histórias que ele me conta e que me contam dele dizem que ele é forte, bem humorado, "alto astral". Dizem que é preciso estar atento para notar sua cegueira, pois ele se porta como os que vêem.

Desconfio que, astuciosamente, ele nos cegue com seu entusiasmo, só para guardar a certeza íntima de que - a despeito de tudo - ele vê mais longe do que nós.

Será que sua cegueira é luminosa? Ou será escura, como os olhos fechados? Será que sua cegueira são olhos abertos para dentro? Ou serão retinas fatigadas, um desvio do olhar da contemplação do passado, presente e futuro?

Quando escrevo sobre meu pai, é querendo que as palavras lhe alcancem. Que cortem o espaço, lançando na direção dele um fio, uma corda. Luz no escuro da distância em que a gente se perdeu. Voz que oriente o caminho de volta.

Escrever sobre ele é tateá-lo, na esperança de que possamos nos ver.

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