27 julho, 2008

Antes da chuva


"Enquanto isso, era verão. Verão largo como o pátio vazio nas férias da escola? Dor? Nenhuma. Nenhum sinal de lágrimas e nenhum suor. Sal nenhum. Só uma doçura pesada: como a da casca lenta dos elefantes de couro ressequido. A esqualidez límpida e quente. (...) Era por ódio que não havia água. Nada escorria. A dificuldade era uma coisa parada. (...) É nessa hora que o bem e o mal não existem. É o perdão súbito, nós que nos alimentávamos com gosto secreto da punição. Agora é a indiferença de um perdão. Pois não há mais julgamento. Não é um perdão que tenha vindo depois de um julgamento. É a ausência de juiz e de condenado. E não chove, não chove. Não existe menstruação. Os ovários são dusa pérolas secas. Vou vos dizer a verdade: por ódio seco, quero isto mesmo, e que não chova. E exatamente então ela ouve alguma coisa. Uma coisa também seca que a deixa ainda mais seca de atenção. É um rolar de trovão seco, sem uma saliva, que rola, mas onde. No céu nu e absolutamente azul sem nenhuma nuvem de amor que chore. (...) A urgência é ainda imóvel mas já tem um tremor dentro. Lóri não percebe que o tremor é seu, como não percebera que aquilo que a queimava não era o fim da tarde encalorada, e sim seu calor humano. Ela só percebe que agora vai mudar, que choverá ou cairá a noite. Mas não suporta a espera de uma passagem, e antes da chuva cair, o diamante dos olhos se liquefaz em duas lágrimas. E enfim o céu se abranda".
(Clarice Lispector)

Todas as vezes em que as crianças ficavam muito agitadas, quase a ponto de enlouquecer os adultos, minha avó perguntava: -"vocês estão adivinhando chuva?". Talvez por isso eu seja capaz de reconhecer tão bem a sensação estranha de agitação e ansiedade que me acomete quando o tempo vai se fechando, armando uma tempestade que nunca chega, e tudo parece ficar suspenso: não são presságios, nem anúncios de tragédias - é antes da chuva.

Nem por isso deixo de sentir os efeitos do tempo suspenso. (Gosto mais é das tempestades de verão, que caem de repente, generosas, lavando tudo.). Já essas chuvas doloridas, feitas de expectativa e chumbo, essas me doem por dentro. Me tornam excessivamente consciente da vida a ponto de parecer insuportável.

E então, quando a primeira gota cai e atinge o chão, o alívio. O respiro. A vida que pode enfim seguir adiante.

Sempre gostei de conhecer os ciclos do meu corpo. De saber exatamente em que período do ciclo estou, não por me lembrar de cor as datas, mas por reconhecer os movimentos do que sinto - o recolhimento de antes de menstruar; o súbito alívio da menstruação, destravando por dentro as portas fechadas; a explosão de alegria dos dias férteis.

Antes da menstruação, muitas vezes é como antes da chuva - secura e aridez, intensidades que parecem que vão durar para sempre. Tudo fica tão mais agudo, que a única vontade é de me esconder, para não me ferir. Talvez também para não ferir, já que estou entre as coisas que se tornam agudas - minhas palavras, meus gestos afiados.

E uma estranheza em relação a tudo, como se as formas do dia-a-dia fossem grades. Uma imensa vontade de escapar. E a sensação igualmente imensa de que escapar é inútil.

Suspensa, na expectativa de que algo que não sei bem o que é aconteça - talvez um telefonema, ou uma carta, ou uma presença súbita para fazer essa vida descarrilar. Mas nada acontece.

Até que chorar volta a ser possível - chove, enfim - e o que antes era areia se torna brinquedo: pesquisa de novas formas. A primeira gota de sangue, e o rio volta a correr por dentro.

Quando li pela primeira vez este livro da Clarice Lispector - Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres - reconheci imediatamente essas sensações, tão femininas (o que obviamente não quer dizer que os homens não as entendam também, a partir de outros códigos). Reconheci, embora isso não me torne menos sujeita a elas: é também antes da chuva.

Imagens: ilustração de Patricia Metola, http://tipika.blogspot.com/

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