26 fevereiro, 2011

Do fundo do baú

Hoje tive que dar uma pequena arrumada no escritório, que está um caos de livros e papéis, e acabei encontrando um troço muito antigo, acho que do segundo ano de faculdade. Feito numa das noites de música, vinho Sinuelo e muita, mas muita conversa e risada que tínhamos na casa dela, um "teste vocacional para as ciências sociais". Escrito pela Tati, pela Ju e por mim, é só trocadilho bobo ao longo de todo o "teste", mas ainda dá para ouvir o eco das nossas descobertas e esperanças de antes dos vinte anos.

Então, "porque hoje é sábado", divido com vocês estas bobagens adolescentes.

Teste vocacional para as ciências sociais
(Diga-me quem sois e te direi quem és). 

DADOS PESSOAIS:
Nome:
(  ) próprio
(  ) alugado
(  ) financiado
(  ) clonado
(  ) irrelevante

Idade:
(  ) jovem
(  ) maduro
(  ) senil
(  ) ancião

Signo
(  ) próprio
(  ) somente ascendente
(  ) chinês, nê?
(  ) N.B.A.

Estado civil:
(  ) SP
(  ) solteiro
(  ) casado
(  ) indefinido

PERFIL

Quando você se olha no espelho, você vê alguém:
(  ) egocêntrico
(  ) etnocêntrico
(  ) antropocêntrico

Responda SIM ou NÃO:
- Você se acha maisque Weber?
- Você tem pés-francos (ou frankfoot, como eles dizem lá)?
- Você seria capaz de um hobbes a banco?
- Às vezes você se sente mauss ou menos?
- Durkheim na prova?
- Você já viu sua mãe de Bobbio?
- Você acha que A Oleira Ciumenta é um livro de auto-ajuda para mulheres com crise no casamento?
- Você toca baixo, alto Xingu ou não é o tipo de pessoa que classifica as coisas em um sistema binário?

Qual o tipo de abordagem do problema "Com quantos paus se faz uma canoa" se parece com você?
- marxista: qual a força de trabalho gasta para se fazer uma canoa?
- weberiana: qual o espírito dos homens que precisam de canoas para navegar?

SOBRE SEUS HÁBITOS:
- Você dorme de hobbes ou de pijama?
- Qual é o seu hobbes?

O mais interessante é que o teste acaba assim, abruptamente e sem nenhuma tipologia orientadora da leitura dos resultados. A única anotação ao final, com a letra da Ju, diz apenas "parem de xingar o meu vinho" :-)

25 fevereiro, 2011

às vezes*

E é tão bom querer e poder voltar para casa.

(Quadrinho de Fábio Moon e Gabriel Bá, tirado do 10 Pãezinhos; dica da Veronika)

*clique na tirinha para aumentar.

15 fevereiro, 2011

de passagem

Primeiro o homem, todo menino, no meio da rua. Os braços pensos para baixo, como quem devolve ao outro o enigma que foi incapaz de resolver. As mãos espalmando a pergunta. Depois a moça, toda antiga, emoldurada pela janela do quarto. Dura e distante, afirmando enfaticamente a resposta que o outro não quer ouvir. Por último a chuva, suspensa, recusando interromper e transformar a cena. Nos filmes românticos, o reencontro  sempre uma umidade de pingos grossos e lágrimas. Não ali. Não agora. Finda a história.

09 fevereiro, 2011

ao rés do chão

comprei na feira um quarto de melancia: linda, madura, de um vermelho fresco e vigoroso que põe água na nossa boca antes mesmo do primeiro bocado. cabe mal na geladeira. daí da ideia de transformá-la em suco, no meio da tarde quente e abafada. chego a pegar a jarra, mas me falta coragem. melancia bonita e doce assim não é de se saborear em pasta. não: coisas doces e suculentas assim só valem a pena inteiras - os pedaços estalando, o sumo escorrendo pelos cantos da boca, as sementes interrompendo e completando a fruição. que o bom da vida não é de se tomar aos goles, mas de se cravar os dentes.

02 fevereiro, 2011

Um livro

Primeiro pensei em colocar no Margens. Mas é tão bonito, tão bonito, que decidi colocar aqui mesmo, para dividir com as pessoas queridas que costumam vir me visitar :-)

"Um livro é produzido, evento minúsculo, pequeno objeto manejável. A partir daí, é aprisionado num jogo contínuo de repetições; seus duplos, a sua volta e bem longe deles, formigam; cada leitura atribui-lhe, por um momento, um corpo impalpável e único; fragmentos de si próprio circulam como sendo sua totalidade, passando por contê-lo quase todo e nos quais acontece-lhe, finalmente, encontrar abrigo; os comentários desdobram-no, outros discursos no qual enfim ele mesmo deve aparecer, confessar o que se recusou dizer, libertar-se daquilo que, ruidosamente, fingia ser.

[...]

Gostaria que um livro, pelo menos da parte de quem o escreveu, nada fosse além das frases de que é feito; que ele não se desdobrasse nesse primeiro simulacro de si mesmo que é um prefácio, e que pretende oferecer sua lei a todos que, no futuro, venham a formar-se a partir dele. Gostaria que esse objeto-evento, quase imperceptível entre tantos outros, se recopiasse, se fragmentasse, se repetisse, se simulasse, se desdobrasse, desaparecesse enfim sem que aquele a quem aconteceu escrevê-lo pudesse alguma vez reivindicar o direito de ser seu senhor, de impor o que queria dizer, ou dizer o que o livro devia ser. Em suma, gostaria que um livro não se atribuísse a si mesmo essa condição de texto ao qual a pedagogia ou a crítica saberão reduzi-lo, mas que tivesse a desenvoltura de apresentar-se como discurso: simultaneamente batalha e arma, conjunturas e vestígios, encontro irregular e cena repetível".

(Michel Foucault, no novo prefácio à História da Loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2008).