31 agosto, 2011

em fogo brando

no final de semana assistimos novamente amor à flor da pele. é tão bonito, tão delicado... mas ao mesmo tempo de uma melancolia tão fininha que chega a doer - porque da honradez não resulta recompensa, porque o encontro não se sobrepõe ao sentido do tempo (e deve ser por isso que o Kar Wai filma tanto os relógios): há tempo para tudo, e para as personagens, o tempo do encontro parece ter passado.

e na segunda-feira assistimos 2046 (aqui saiu com o subtítulo os segredos do amor), que é um filme bem diferente, muito mais comprido, muito mais confuso, que deixa a gente sem entender muita coisa. a personagem do Tony Leung, Chow, é bem... irritante, para dizer o mínimo (dá vontade mesmo é de entrar na tela e dar uns tabefes nele, tanta cafajestagem!), mas ao mesmo tempo também melancólica: desencontrada, como se estivesse mesmo a bordo do trem metafórico que viaja eternamente, sem possibilidade (ou esperança) de encontrar o porto certo onde desembarcar.

aí hoje de manhã me peguei pensando nisso: que 2046 é um futuro onde as lembranças não se perdem, mas é sobretudo um passado que a gente não consegue abandonar. é como se o passado lançasse à frente de si seus trilhos e a gente ficasse condenado a permanecer no trem, sem escape. 2046 é um quarto, quatro paredes onde o encontro se faz possível, sob a proteção do resto do mundo. fora dele, o encontro vira segredo, peso a ser carregado e só partilhado com criaturas vivas mas silenciosas. em 2046, Kar Wai repete quase à exaustão a história dos segredos insuportáveis, dos quais nos livramos ao depositá-los num buraco de árvore e, em seguida, cobri-los com barro.

eu não sei como a vida é na china e o quanto um social tão coeso pesa sobre um individuo; não sei dizer o quanto os desencontros e a infelicidade das personagens, nessas duas narrativas do Kar Wai, podem ser creditadas à circunscrição da individualidade a um quarto [e hoje de manhã também me lembrei d'o quarto 19, da Doris Lessing, que é o segredo que torna a vida suportável]. eu só vejo daqui onde estou. e daqui onde estou, me lembro de duas frases, uma da clarice, outra da camille claudel, citada pelo caio fernando abreu em uma de suas crônicas.

"Guardo seu nome em segredo. Preciso de segredos para viver" (Clarice Lispector).

"Existe sempre alguma coisa de ausente que me atormenta" (Camille Claudel).

e lembrando dessas duas frases, e pensando na recorrência com que as personagens desistem uma das outras por não encontrarem aquilo que estavam procurando - em geral, a recuperação de um amor que foi embora - fiquei pensando que o filme é sobre esses trens expressos nos quais embarcamos quando queremos nos livrar de uma lembrança/ quando queremos recuperar o que nos falta/ quando, sem companhia, não sabemos mais para onde ir: é sempre um risco, já que o trem pode nos levar ao futuro, mas também ao passado ou, pior ainda, nos deixar aprisionados em uma viagem duradoura. estar no trem é o momento-quando do abandono.

o segredo, fardo pesado, é aquilo que sempre falta mesmo quando a gente segue adiante. é a sensação de que o tempo oportuno escoou, de ter perdido o encontro certo. é o arrependimento pelo que não foi. é dor latejante que embaça os olhos e impede o reconhecimento do porto possível, condenando à errância.

queima silenciosa e mornamente, esse segredo, essa falta.

(o edu tem toda razão: para dar tal destino à personagem, o Kar Wai não deve mesmo gostar dela).

23 agosto, 2011

respirar (ou: a liberdade é azul)

depois de anos, voltei a nadar. gosto muito: o deslizar às vezes devagar, às vezes rapidíssimo, o silêncio dos pensamentos, calados pelo barulho constante dos braços e pernas se agitando contra a água. nadar é entrega e é luta.

a professora me alerta que o corpo se esqueceu de nadar do jeito certo. eu mesma não percebo, senão no cansaço que, parada tanto tempo, decifro como recomeço. romper a inércia do corpo é exaustivo, mas não é isso que provoca o cansaço: me canso tentanto respirar sem apoio, estabanadamente lançando os braços para frente quando deveria deixá-los permanecer, dando assim o impulso que tornaria a respiração mais fácil e leve. me canso tentando erguer a cabeça sem esteio. uma espécie de orgulho burro, deve ser: vencendo as distâncias sem precisar nem mesmo de mim.

depois do alerta, presto atenção e forço os braços a fornecer descanso para mim mesma. até que a lição se imprima nos músculos, no entanto, preciso lembrar de me amparar quando me lanço a braçadas na água azul e morna.

reaprender a respirar entre os movimentos que me permitem seguir adiante. viver também, é entrega e é luta.