29 agosto, 2010

Domingo


- Vai daí que na semana passada o Rodrigo teve dor de ouvido, não foi na escola na terça, nem na quinta, nem na sexta. Não teve febre, só dor. E parou total de comer. Desde ontem está melhorzinho, mas só na segunda vamos saber se a inflamação diminuiu mesmo. E o pior é que ele está (ou está gostando de fingir que está) um pouco surdo. Na sexta-feira, eu falava com ele e ele me dizia "não tô ouvindo nada, mãe, porque esse ouvido não quer escutar".

- Então, na sexta ele foi comigo pra USP, prometendo que ia me deixar trabalhar um bocadinho. Levamos giz-de-cera, papel, caderno de pintura. E, é claro, tive que resolver as coisas que eram mais urgentes com ele falando comigo o tempo todo :-)

- Quando chegamos à biblioteca, ele pediu para pegar um livro e, enquanto escolhíamos (acabamos trazendo um ótimo, do Ricardo da Cunha Lima, chamado Cambalhota), resolvi trazer também o  do Rodrigo Lacerda, Fazedor de Velhos, que já namorei várias vezes mas acabei nunca comprando. Resultado: na sexta-feira, fui deitar por volta das 10h da noite e não dormi enquanto não acabei de ler o livro! Gostei muitíssimo.

- Gostei muitíssimo por variadas razões. Primeiro porque lembrou um pouco os livros que eu lia quando tinha a idade de ler os livros "infanto-juvenis", histórias sempre um pouco doloridas sobre os lutos e os ganhos de crescer. Mas ainda que tenha lembrado, o livro é bem melhor daqueles que eu lia, provavelmente porque - tenho a sensação - é tanto uma narrativa sobre se tornar adulto quanto uma declaração de amor à literatura. Uma espécie de aposta em que as ficções, a boa literatura, a poesia e a prosa com suas figuras e ritmos, contribuem para que as passagens e transições sejam realizadas de modo amoroso - assim, tanto um livro quanto uma companhia, tornam tudo mais leve (e, paradoxalmente, mais fundo). Ensinam. Põem nome no que, na intensidade do fluxo, se perderia. Fazem o tempo que escorre sem pausa pingar mais devagar, deixando na areia uma marca legível.

- Gostei também porque me identifiquei, nas várias vezes em que me senti pouco adequada para a sociologia; em que escutei que o que fazia era teoria literária e, quando fui para a teoria literária, escutei que fazia sociologia; e quando escrevi uma dissertação com tanta preocupação com o que ouvira e vira que achei que aquilo ainda não era sociologia; e quando escrevi uma tese em que menos importância que os achados tinha o percurso e isso também não parecia sociológico. Eu sempre inadequada, juntando o rigor do trabalho e da pesquisa a uma forma pouco usual de apresentá-las, tentando usar a honestidade e a narração como parte indissociável daquilo que sai à luz. Mais preocupada com o leitor do que com a banca.

- E agora estou acabando de ler o Mia Couto, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, presente do Jorge e da Priscila. Ele tem um jeito bonito de escrever, lapidando cada frase  de um jeito que a gente tem a impressão que não importa muito como a história vai se desenvolver; importam mais as trincas que cada pérola dura vai riscando dentro da gente. Eu queria mesmo ler um livro dele, desde que tinha dado pro Mauricio um livro infantil, chamado O Gato e o Escuro, que tinha me deixado muito emocionada. Estou gostando, sim, mas tenho medo do que acontece quando a gente lê até o fim um livro que vai abrindo buracos na nossa superfície: e se, ao acabar, a casca rachar inteira e eu me apanhar desprotegida?

- Tenho sonhado bem mais que o que costumava: sonhos longos, sonhos cotidianos, sonhos de trabalho, sonhos tão reais. Sonos agitados de Agosto. Ainda bem que setembro é ali, logo depois da esquina da semana.

- Ah! E ainda por cima ando sensível e de choro fácil. E fui inventar de comprar pro Rodrigo um livro chamado E o que vem depois do mil? Achando que era um livro sobre qualquer coisa, só porque é uma pergunta muito parecida com a que o Rô adora me fazer. "O que vem depois do vinte? E do cem? E do mil?". Comprei fechado mesmo. Chego em casa e abro, e decido ler. E aí é uma história de amizade entre uma neta e seu avô e ele fica doente e depois morre e eu chorei, chorei, chorei e mal consegui contar a história pro Rodrigo sem ficar toda engasgada, com um nó bem apertado me amarrando a garganta. Ninguém manda comprar livro só pelo título.

- Então é isso. por aqui: esse silêncio borbulhante. Boa semana para vocês e façamos como a Clarice  Lispector - de cada domingo à noite, um reveillon modesto.

Imagem: www.gettimages.com

23 agosto, 2010

anotado a lápis


Fim-de-semana de visita à mãe, onde topei com memórias empoeiradas - feitas de papel, de caneta, de gesso e de metal. Misturadas todas na gaveta do armário.

Tinha a embalagem do livro que o Petronio me trouxe de além-mar, registro de carinho e conspiração por e-mails com a Ana Lucia; tinha lembranças de casamentos, nascimentos e variados quinze anos; ttinha a carteira de vacinação e o último boletim do colégio, com mensagem querida da professora predileta; tinha o bilhete delicado que o Ricardo me mandou quando passei no vestibular, lembrança incandescente do vazio de maré cheia que ele deixou.

E daí encontrei trechinhos de leituras que ia fazendo. Como esta, com data de maio de 2001:

 "Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o ruím ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero todos os pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado" (João Guimarães Rosa, no Grande Sertão: Veredas).
 
Encontrei também alguns bilhetes e cartas da Ana, que por alguma razão escaparam à reunião na caixa comum. Como um pequenino papel onde pousa uma borboleta amarela:
 
"E isso implica um trabalho sobre os limites e no limite da arte, à beira do abismo - onde o disforme resiste à forma, impele ao fracasso e deixa adivinhar o impronunciável" (Plínio W. Prado Jr, na apresentação à Descoberta do Mundo, da Clarice Lispector).

Foi tão bom jogar uma porção de coisas fora! Como se, ao perder certas chaves de mim, ficasse leve para me reinventar.

Imagem: Nacho Gómez.

20 agosto, 2010

acordar

e então eu olhava aquele homem jovem, com barba macia e bem aparada e pensava "como pode, tão jovem, escrever como um velho?" e ele era o saramago; O saramago, estranhamente tão jovem e tão bonito. E eu olhava para ele, entre espantada e atônita, querendo adivinhar naquele homem de barba macia e olhos claros o que havia de sabedoria e depósito de vida vivida. Olhava, olhava, e não acabava de olhar, próximos todos de um carro que estava de partida. As portas abertas, e ele tão estacado, sem nenhuma menção no corpo de entrar (ou de partir). Paralisado na minha admiração. E eu estranhava aquele homem tão jovem e tão belo, tão altivo e tão famoso, O saramago. Quando lembrei: Saramago está morto. Com susto por detrás do coração. E eu absolutamente confusa diante daquele homem que não pode ser saramago, que até então era saramago, que podia ser filho de saramago, tão bonito e tão jovem, tão esfinge. Feito sonho indecifrável.

14 agosto, 2010

Atravessando agosto

Sem muitas palavras (pelo menos por aqui). Tentando aprender a pousar mansamente e a ter paciência com meus passos lentos e com a travessia (sempre incompleta).

Daí a feliz coincidência de encontrar a Elis, linda-linda-linda, cantando o (re)pouso e também a partida.


02 agosto, 2010

Caminhos

Olha, não é só porque a Andrea é minha médica (infelizmente, apesar de conhecer o Coletivo  Feminista - que foi onde ouvi pela primeira vez a expressão "medicina doce", sobre a qual falei recentemente - desde meus vinte e poucos anos, só a conheci depois do nascimento do Rô) ou porque tenho imensa admiração por ela: é que é muito emocionante saber que existem os que resistem ao modelo médico e conseguem construir outros caminhos: Ajudar a nascer. Leitura para alimentar as esperanças.

Confissão

Então, tá. Vou confessar: eu adoro coisas de papelaria (caderninhos, canetinhas, clipes, post-its e afins) e tenho um problema especialmente grave com marcadores transparentes. Adoro! Meus livros tem pequenas garras pintadas que se projetam de suas páginas. E o excesso de marcadores em alguns deles expressa minha empolgação com o texto, a vontade de sublinhar cada boa sentença. O que é obviamente é um tiro que sai pela culatra, já que aí ficam tantos marcadores que nem sei mais ditinguir o que importa do que não importa.

Tentei criar um código uma vez, tipo: laranja para um bom argumento, cor-de-rosa para boas referências, amarelo para novidade. Mas no meio da leitura não rola de ficar consultando tabela, né?

(no começo do ano, fui conhecer um colega que só conhecia de ler e de trocar e-mails e aproveitei para levar o livro dele, para que ele autografasse. Só na hora de tirar na prateleira é que me dei conta: o livro parecia um arco-íris, de tanto marcador... Quando ele viu, levou um susto, mas depois deu risada e comentou "é, parece que você leu mesmo...")

Fato é que nesses dias, em que estou terminando a seleção de textos para a disciplina que vou dar e que tirei uma porção de livros da prateleira, estou super contente, porque achei vários pacotinhos de marcadores que tinham ficado perdidos no meio dos livros, alguns deles ainda com todas as cores!

Cada louco com a sua mania...