24 abril, 2008

Ricardo

Eu tinha 18 anos e ele uns... 33? Nem me lembro direito.

Ele não parecia ser mais velho; ao contrário, tinha cara de moleque, jeito de moleque...Nos conhecemos no cursinho, e o fato é que ele ficava bem à paisana no meio de todo mundo.

Ele queria prestar arquitetura - era bom de desenho. Ele era também divertido (mesmo que com um humor de vez em quando ácido) , contador de causos, agregador de gente em torno dele. E também tinha pinta de namorador...

Também não me lembro como é que começamos a andar juntos; deve ter sido quando as turmas de maio e as do intensivo se juntaram, no segundo semestre.

Não sei bem porque a gente se aproximou - deve ter sido por causa da Camila, que já era amiga dele antes do cursinho. O fato é que ficamos amigos, batíamos papo, trocávamos textos e bilhetes. Os dele eram sempre escritos à lápis, numa letra de fôrma miúda e perfeitamente desenhada. Coisa de quem gosta de desenho, deve ser. Alguns eu ainda tenho, guardadinhos bem escondidos que é para eu não topar demais com eles.

Aquele ano não estava sendo fácil para mim: era o último ano do magistério de manhã, estágio à tarde, teatro às sextas-feiras e cursinho de noite. Para completar, minha mãe ficou um mês fora e fiquei cuidando da casa e da minha irmã.

Foi durante essa viagem da minha mãe que ficamos juntos. Numa festa do pessoal do INPE (onde ele trabalhava). Ficar com ele não chegou a ser uma surpresa, embora também fosse um pouco inesperado. Vejam: a gente se gostava, mas a gente também se provocava, se dava broncas, brigava mesmo (ai como eu era chata aos 18 anos!).

A gente estava junto, embora também não estívessemos assim "juntos". E em um dado momento tudo errou, tudo ficou desencontrado. Eu era menina demais e era muita coisa junta acontecendo. Porque no meio de tanta coisa, ainda aconteceu a doença da Fabiana. Minha amiga querida, com quem cresci e que descobriu naquela época que estava com câncer.

Paramos de ficar juntos do mesmo modo que tínhamos começado - sem surpresa, meio inesperadamente. Embora não tenhamos parado de conviver, ao contrário.

Logo depois ele se apaixonou perdidamente e começou a namorar. Eu passei no vestibular, vim para São Paulo e a gente só se falava de vez em quando. Foi numa dessas vezes que ele me contou que eles estavam grávidos e iam casar. Ele estava tão feliz e eu fiquei muito feliz por ele.

Não foi nem dois anos depois, eu acho, porque o filho dele era bebê e eu ainda morava na R. Casa do Ator. Foi a Marilda, querida, que me deu a notícia: ele morrera, num domingo tranquilo, depois do almoço, junto com a família. 35 anos e um enfarto fulminante.

Como eu havia sido avisada com atraso, não havia nada que pudesse fazer naquela altura - e me dei conta da importância dos ritos para ajudar a gente a se despedir. Eu não me despedi dele. E vai ver que é por isso que vez em quando ele me interpela ou então sou eu que me vejo conversando com ele. (Ou vai ver que sempre ia ser assim mesmo, porque a história de dizer que as pessoas continuam vivas dentro da gente está longe de ser conto da carochinha).

Um dos temas principais das nossas conversas é o meu cabelo. Naquela época eu tinha o cabelo bem comprido, no meio das costas, e ele odiava. Queria me convencer de todo jeito a cortá-los - indo comigo ao cabeleireiro ou desenhando diferentes cortes para me ajudar a decidir. Ele sabia que eu era menina, mas estava a fim mesmo era de me ver virando mulher.

Por isso, quando um dia finalmente resolvi me despedir de uma parte de mim, o rito foi cortar o cabelo. Bem curto, bem leve. Uma poderosa maneira de me assumir. E foi inevitável olhar tudo aquilo no chão e não pensar nele.

Meus cabelos no chão do salão foram, (são sempre), as flores que eu coloco ao lado do seu túmulo.

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