Ainda que o Caio Fernando Abreu tenha sido tantas vezes lido e relido, e em momentos tão diferentes da minha vida, mudou bastante o modo como o leio.
Antes, era uma leitura furiosa, devassadora, atropelo de palavras quase sufocante (a voz da Ana Lúcia na cozinha que Vinicius, Petronio e eu dividíamos, lendo "Sem Ana, Blues", sem pausas-sem respirar-sem nos deixar respirar). Já agora é deleite que em vez de rasgar, aveluda por dentro.
Ao longo da convivência com ele, foi baixando a poeira da intensidade e da dor e pôde emergir o que nele (também) é esperança e fé.
Teve um trecho de um dos contos dos Dragões que me perseguiu por muito tempo:
"Quero mais um uísque, outra carreira. Tudo aos poucos vira dia e a vida - ah, a vida, pode ser medo e mel quando você se entrega e vê, mesmo de longe.
Não, não quero nem preciso nada se você me tocar. Estendo a mão.
Depois suspiro, gelado. E te abandono".
Fazia tempo que eu não pensava neste trecho e lembrei dele na semana passada, relendo Estranhos Estrangeiros:
(...) Tirou a roupa aos poucos. Completamente nu, começou a girar de braços abertos no meio da sala. Remoto, então, como se viesse do apartamento ao lado ou de baixo, de cima - talvez o de Lavínia, a lasciva, lembrou querendo rir, mas não conseguiu -, o som da campainha cortou o movimento. Uma voz que chega de longe. Navalha, alfanje, cimitarra. A cabeça ainda girava no meio da tontura quando entreabriu a porta para ver Santiago parado no corredor, mãos nos bolsos.
- Resolveu aceitar aquele chá, Santiago?
- Eu não me chamo Santiago - ele disse.
Não afastou o corpo para que o outro entrasse. Mas ele entrou. Fechou a porta às suas costas. Estendeu as duas mãos. Tocou-o nos ombros. De frente.
- Eu também não me chamo Pérsio. Portanto não nos conhecemos. O que é que você quer?
Ele sorriu. Estendeu as mãos, tocou-o também. Vontade de pedir silêncio. Porque não seria necessária mais nenhuma palavra um segundo antes ou depois de dizerem ao mesmo tempo:
- Quero ficar com você.
Provaram um do outro no colo da manhã.
E viram que isso era bom".
E pensando nos dois trechos juntos, percebi a importância do estender a mão, desse esforço para tocar o outro, para também ser tocado. E pensei também se não é essa passagem, essa travessia de nós mesmos ao outro pela ponte das mãos, que pode nos salvar.
O primeiro livro de contos do Caio chamava Inventário do Irremediável. Mas no momento de republicar o livro, ele deu um passo atrás e pôs um hífen no título: Inventário do ir-remediável. E com esse traço-ponte ensinou que as partidas têm volta, as ações têm perdão, as portas fechadas podem ser reabertas. Se você estender a mão.
Antes, era uma leitura furiosa, devassadora, atropelo de palavras quase sufocante (a voz da Ana Lúcia na cozinha que Vinicius, Petronio e eu dividíamos, lendo "Sem Ana, Blues", sem pausas-sem respirar-sem nos deixar respirar). Já agora é deleite que em vez de rasgar, aveluda por dentro.
Ao longo da convivência com ele, foi baixando a poeira da intensidade e da dor e pôde emergir o que nele (também) é esperança e fé.
Teve um trecho de um dos contos dos Dragões que me perseguiu por muito tempo:
"Quero mais um uísque, outra carreira. Tudo aos poucos vira dia e a vida - ah, a vida, pode ser medo e mel quando você se entrega e vê, mesmo de longe.
Não, não quero nem preciso nada se você me tocar. Estendo a mão.
Depois suspiro, gelado. E te abandono".
Fazia tempo que eu não pensava neste trecho e lembrei dele na semana passada, relendo Estranhos Estrangeiros:
(...) Tirou a roupa aos poucos. Completamente nu, começou a girar de braços abertos no meio da sala. Remoto, então, como se viesse do apartamento ao lado ou de baixo, de cima - talvez o de Lavínia, a lasciva, lembrou querendo rir, mas não conseguiu -, o som da campainha cortou o movimento. Uma voz que chega de longe. Navalha, alfanje, cimitarra. A cabeça ainda girava no meio da tontura quando entreabriu a porta para ver Santiago parado no corredor, mãos nos bolsos.
- Resolveu aceitar aquele chá, Santiago?
- Eu não me chamo Santiago - ele disse.
Não afastou o corpo para que o outro entrasse. Mas ele entrou. Fechou a porta às suas costas. Estendeu as duas mãos. Tocou-o nos ombros. De frente.
- Eu também não me chamo Pérsio. Portanto não nos conhecemos. O que é que você quer?
Ele sorriu. Estendeu as mãos, tocou-o também. Vontade de pedir silêncio. Porque não seria necessária mais nenhuma palavra um segundo antes ou depois de dizerem ao mesmo tempo:
- Quero ficar com você.
Provaram um do outro no colo da manhã.
E viram que isso era bom".
E pensando nos dois trechos juntos, percebi a importância do estender a mão, desse esforço para tocar o outro, para também ser tocado. E pensei também se não é essa passagem, essa travessia de nós mesmos ao outro pela ponte das mãos, que pode nos salvar.
O primeiro livro de contos do Caio chamava Inventário do Irremediável. Mas no momento de republicar o livro, ele deu um passo atrás e pôs um hífen no título: Inventário do ir-remediável. E com esse traço-ponte ensinou que as partidas têm volta, as ações têm perdão, as portas fechadas podem ser reabertas. Se você estender a mão.
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