30 abril, 2008

Meu nome é eu



Era esse o título de um dos últimos trabalhos que fiz na graduação, comparando as trajetórias de duas mulheres: a Loreley, do Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres (Clarice Lispector) e a Susan Rawling, do conto "O quarto 19", (Doris Lessing).

(Durante toda a graduação, flertei com uma sociologia da literatura. Mas sempre de um jeito desconfortável porque eu me apaixonava tão perdidamente pelo texto que não conseguia escapar de uma análise que me parecesse proposta por ele - e aí ouvia dos meus professores que aquilo não era sociologia e sim crítica literária. Então, ao final da graduação, fui fazer mestrado na Letras, na Teoria Literária. E ouvia do meu orientador que minhas análises ainda eram muito sociológicas...Qualquer dia conto melhor esta história, mas o resumo da ópera é que voltei para a sociologia - do trabalho, vejam só - e mesmo depois de um mestrado e três anos de doutorado continuo me sentindo desconfortável...).

Bom, mas o fato é que me lembrei deste trabalho ontem, ao rever A viagem de Chiriro.

A própria questão da viagem já aproxima o filme do Uma aprendizagem, por exemplo. No livro da Clarice há várias referências à história de Ulisses, que no livro é também o nome da personagem condutora da travessia de Lóri no caminho para se assumir. Um condutor amoroso e paciente, que provoca, aponta caminhos, mas que faz questão de se ausentar de vez em quando, dando ao outro a liberdade de experimentar sua própria coragem.

E o Haku da história da Chiriro é uma personagem bem próxima a do Ulisses...Ele está ao lado dela, amparando, cuidando, mas nem por isso a gente tem a impressão de que ele está a protegendo de tudo e todos. Ele também tem seu próprio caminho a percorrer e o bonito é que eles tenham se encontrado e, neste encontro, encontrem também razões e possibilidades de se experimentar de outras maneiras.

No filme, a feiticeira controla os seres roubando-lhes o nome - roubando assim sua identidade, seus laços e memórias e a possibilidade de fazer o caminho de volta.

Mas Haku e Chiriro já se conheciam e, por isso, guardavam dentro de si os nomes um do outro. Com outro nome ou com outro corpo e em qualquer tempo, ambos eram capazes de se reconhecer. E é nesse olhar do outro em que a gente também se reconhece que fica guardada a possibilidade de quebrar o feitiço, de sair do olho do furacão para o qual de vez em quando somos arrastados e voltar para o ponto de partida.

Não que se retorne do mesmo jeito. Se (na leitura do Auerbach) Ulisses empreende suas viagens mas volta do mesmo jeito, ileso, o mesmo não acontece com a Lóri e a Chiriro. Elas são profundamente transformadas, marcadas pelo que experimentaram (mais como o Abraão da Bíblia, na leitura do mesmo Auerbach). Tomam posse de seus nomes - contornos daquilo que são, garantia de que a liberdade de ir passando do que são ao que querem ser não significa abandono de si. Nem a perda do amor de quem está lhes acompanhando.

Em ambos os casos, a gente teve a chance de conhecer as personagens num momento muito específico de suas vidas: um momento de travessia. Então seria fácil imaginar que se trata de um "momento definidor", após o qual a vida entra numa nova etapa, mais estável. Engano nosso, eu arriscaria dizer. Porque a Chiriro parte sem olhar para trás, mas com a promessa de reencontrar Haku. E o romance da Clarice termina com dois pontos:

O que sugere encerramentos provisórios, porque estar vivo é estar pronto para fazer novas travessias, novas viagens, ser desafiado por novos encontros ou encarar o desafio de se encontrar de novo nos encontros antigos.

É. Eu gosto dessas histórias de amor e de encontro em que a liberdade - ou sua aprendizagem - estão colocadas tão radicalmente.

Imagem: http://www.tvcultura.com.br/detalhe_episodio.aspx?idprograma=288&idepisodio=4072

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