Coincidentemente ou não, esta noite sonhei com formigas. Montes delas, saindo por debaixo dos tapetes da casa. Ponho em dúvida a coincidência porque tenho pensado em como entabular conversa sobre o tema “cabeludo” que o Maurice me arrumou. E aí, tendo sonhado com formigas, lembrei-me de um livro que o Maurice nunca vai ler: Cem anos de solidão.
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Contando os cem anos da saga familiar dos Buendía, o livro é a narrativa da tragédia dos destinos escritos. Todos os personagens da família estão marcados, de algum modo, por uma espécie de incomunicabilidade que torna inescapável a sua solidão. Ao fim do livro, vejam só que bela imagem, o desfecho se cumpre ao mesmo tempo em que o último da linhagem está lendo o livro no qual um cigano escrevera o destino inteiro dos Buendía. E a fatalidade se anuncia no momento no qual o futuro se realiza no presente, sem mais possibilidades de mudanças. É esse o momento em que a história inteira da família é banida da memória dos homens.
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As imagens são pefeitas para pensar sobre o que o Maurice pediu: solidão e finitude, fatalidade e inelutabilidade.
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O Maurice costuma dizer que eu leio mundo pelo viés da esperança; que, não encontrando razões para acreditar, eu as invento. Para mim, os encontros sempre fazem valer a vida e recriam um mundo no qual a vida é graça – no sentido mais epifânico do termo.
“...Provaram um do outro no colo da manhã. E viram que isso era bom”. (Caio Fernando Abreu).
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Voltando ao Garcia Marquez, a família Buendía inteira está condenada pela crença de que a solidão e a tragédia são suas condições essenciais. A vida, assim, torna-se simplesmente espera de que a dor se cumpra. Nenhum deles consegue amar de fato porque nenhum deles consegue se vincular ao outro – estão todos fadados à miséria de sua solidão e o estão por já não crerem na superação desta condição.
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Somos homens, finitos, mortais, de algum modo incomunicáveis. Tal é a tragédia de nossa condição. No entanto, temos a nosso alcance a possibilidade de criar maneiras de tentar superar a finitude, a mortalidade e a incomunicabilidade: o desejo, a arte, amores, amizade...Momentos de encontro no qual alguma grandeza relampeja em nossa condição. Foi o Maurice mesmo quem me ensinou: grandeza e miséria...
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Os Buendía, incapazes de se pensarem para além dos vaticínios repetidos por cem anos, se extinguem da memória dos homens no instante em que permitem que a tragédia se realize. Mas para impedir que ela se realizasse, seria preciso que algum deles tivesse a coragem de Sísifo, de recusar sua condição, e instaurasse neste ato criador, uma outra forma de estar vivo.
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Para conquistarmos o direito de pertencer à memória dos homens, é preciso estar entre os homens, viver entre eles. Admitir o encontro como possibilidade porque é dos encontros que brota aquilo capaz de entreabrir as portas do tempo e do espaço, entreabrir as portas da solidão e da finitude. E é preciso dizer que não me refiro apenas ao amor erótico, mas a todas as formas de encontro. Também falaria de amizade, mas o Mauricio pode falar disso muito melhor do que eu.
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Então, para não ocupar muito mais do espaço que o Maurice tão generosamente me abriu, é mais ou menos isso: o fato de sermos sós, de sermos filhos do tempo, não nos rouba, não nos deve roubar, a grandeza do encontros. Mesmo que estes sejam fugazes, mesmo que não sejam eternos, mesmo que sejam as pequenas epifanias. A vida se alimenta dela mesma e para estar vivo é preciso lutar – com nossa condição, com nossos parcos instrumentos de comunicação (“Lutar com palavras é a luta mais vã”, Drummond). Fugir dos cem anos de solidão reinventando vaticínios. Eu, por exemplo, gostaria de pôr em palavras os fios de beleza que escorrem nos momentos de encontro. Desejando que eles teçam para nós outro destino, onde caibam felicidades, alegrias, encontros. Ou pelo menos sua possibilidade.
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“O amor translada ao corpo os atributos da alma e esta cessa de ser uma prisão. (...) O amor mistura a terra ao céu: é a grande subversão. Toda vez que o amante diz: “eu te amo para sempre”, ele transfere a uma criatura efêmera e cambiante dois atributos divinos: a imortalidade e a imutabilidade. A contradição é, na verdade, trágica: nossa carne se corrompe, nossos dias estão contados. Somos filhos do tempo e ninguém escapa da morte. Contudo, amamos, com o corpo e com a alma, de corpo e alma. (...) Mas o amor é a resposta que o homem encontrou para olhar de frente a morte. Pelo amor roubamos ao tempo, que nos mata, instantes que ora transformamos em paraíso, ora em inferno. Para além da felicidade ou da infelicidade, o amor é, sobretudo, intensidade. Ele não nos presenteia com a eternidade, mas com a vivacidade; o momento durante o qual se entreabrem as portas do tempo e do espaço. No amor tudo é dois, e tudo aspira a ser um”, (Octavio Paz).
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É necessário dizer ainda que este texto é dedicado ao Edu, com quem o encontro sempre alarga as margens de estar viva.
*Essa foi a minha primeira tentativa de escrever usando o que eu achava que cabia numa "linguagem de blog". Tinha sido um pedido feito pelo Maurice e não tive como recusar. É um texto antigo.
** O Maurice não apenas decidiu ler Cem Anos de Solidão, como ainda mudou de idéia sobre a língua espanhola e comprou uma edição em espanhol.
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