03 setembro, 2014

incêndios

(ao som de radiohead)

desde janeiro, elegi 2014 como um ano de cultivar a rememoração. cultivar no sentido da cultura como cuidado com o os vivos e o presente, mas também como respeito aos mortos - o que também significa ouvi-los no presente, deixar-se ser interpelado pelo sentido trágico de suas vidas. afinal: em 2014, são cem anos desde o início da I Guerra Mundial. cinquenta desde o golpe civil-militar no Brasil. vinte desde o genocídio em Ruanda.

tenho lido por isso muitos livros e assistido muitos filmes sobre tais assuntos. sempre me dividindo entre reunir coragem para enfrentar tais horrores - e enfrentá-los como horrores humanos, também meus - e me dando espaço para também, por vezes, olhar para outro lado: ler gibi, assistir seriado, passar um dia plantando e replantando flores e matos...

e aí, por razões que não têm exatamente a ver com essas, embora tenham tudo a ver com o problema do presente e da memória, meu amigo julio me falou de incêndios. edu e eu assistimos o filme há uns dez dias e é, de fato, um filme lindíssimo. e muito perturbador. e por isso mesmo bastante potente. depois de ver o filme, acabei lendo também a peça de wadji mouawad e as reflexões que se seguem foram provocadas tanto pelo filme quanto pela leitura.

é difícil falar do filme e do livro sem remeter ao enredo, em especial porque se trata de um filme que se estrutura sobre a descoberta da verdade. mas vou tentar.

também é difícil falar do filme e do livro sem remeter a Édipo Rei, que Aristóteles toma como modelo da tragédia. não vou tentar evitar o assunto, ainda mais porque a comparação com Édipo é reveladora de alguns de nossos dilemas presentes.

depois de assistir o filme e acabar de ler a peça, em algum momento da noite acordei pensando que Foucault ficou tão interpelado pelo Édipo Rei, pela questão da verdade. mas há também uma certa tradição que pensa a peça de Sófocles como o acontecimento que dá forma a categoria "vontade" que vinha se constituindo na experiência ocidental: Jocasta e Laio tentam escapar de seu destino, terrível e revelado por um adivinho, e é por isso mesmo que eles todos são levados inexoravelmente a ele. a vontade humana, insurgente, é também inútil: essa tentativa de fuga ao destino é obscurecida numa rede de segredos e lealdades e - central para o desenvolvimento da trama - compaixão, deixando todos os seus participantes cegos e incapazes de fazer frente à força dos fatos que a própria tentativa de escapar desencadeia. Jocasta e Laio tentam fugir da verdade em Tebas; Édipo tenta fugir da mesma verdade em Corinto e a fatalidade se impõe a partir de um mau encontro numa tríplice encruzilhada.

de todo modo, quando a verdade reaparece, ela revela a todos que o destino se cumpriu. um horror de algo que, apesar de tudo, estava de acordo com uma espécie de vontade dos deuses (ou má vontade em evitá-lo). Em Édipo, há no destino, senão coerência, um sentido de necessidade. Mas em Édipo há o problema da vontade desorganizadora, tanto mais porque contrária a uma vontade maior e mais forte, inescapável, superior. esse é o cerne da tragédia: o embate entre uma vontade impotente e uma vontade que nunca desvia, certeira. a verdade, assim, é a recomposição da trilha de vontades que leva ao desfecho; as peripécias são essa caminhada de volta - tudo aquilo que se revela no refazer dos caminhos. é assim que o estrangeiro se encontra em casa.

incêndios é o trágico mais contemporâneo, que ao mesmo tempo repete e desloca os problemas colocados pelo Édipo. há uma questão subjacente que é a da imanência do mundo: não há referência a deuses ou a um deus em nenhum momento, que eu me lembre. A cultura, a tradição são forças presentes, mas elas não são referidas a outro mundo: estamos aqui, irremediavelmente aqui, nessa terra, nesses tempos, muitas vezes em guerras que não escolhemos, nossa vontade atravessados por práticas das quais não temos como escapar. nós, seres trágicos, a faca no pescoço.

ainda assim, parece haver uma vontade superior à nossa, emaranhados que estamos aos fios da própria história: ao ciclo de ofensas e vinganças, interminável, inescapável. mas é bonito, porque o que conduz o destino não é o esforço em escapar ao vaticínio, mas uma promessa (e depois outras) também imanentes, pois feitas entre pessoas: é da ordem propriamente ética que se desdobra o drama, do esforço de ser fiel à promessa de romper a tradição, romper o encadeamento das ofensas e vinganças ("incêncios" é a terceira parte de uma tetralogia que se chama, justamente, "o sangue das promessas"). a promessa de tornar possível uma outra forma de estar juntos. pois a peça volta e meia retoma essa frase-testamento dita por Nawal: "agora que estamos juntos, melhorou".

é muito bonita (e dolorosa e intensa) como Nawal leva esses filhos que ela ama e que não ama à verdade - como se a falta de amor abrisse a possibilidade de conduzi-los à verdade; como se o amor pudesse brotar possível depois da verdade pesar até o ponto do esmagamento. um silêncio que é uma pedra no peito - e que faz a gente perder o fôlego só de cogitar enunciar a verdade.

abrindo as pistas de um caminho que é ao mesmo tempo retorno e passo adiante, Nawal abre a seus filhos a possibilidade de inscreverem seu lugar no mundo, alfabetizados e letrados nas durezas e na verdade. eles também começam a construir um lugar fora daquele atribuído à vítima (pois que vítimas também foram) - essa figura que sofre as dores inevitáveis do acidente e se vê despojada de potência e vontade. os filhos de Nawal não são esmagados pela verdade: terminam a peça ouvindo o silêncio da mãe, esse silêncio eloquente e intenso.

em tempos tão cínicos - quando a verdade é escancaradamente dita porque evidente, porque é "assim mesmo que as coisas são", e por isso mesmo nada causa escândalo ou faz tabu - é notável que a verdade, finalmente clara, não seja dramatizada com excessos e psicologismos. ela simplesmente está a luz, e interpela no presente cada uma das personagens. o propriamente trágico está no fluxo do tempo, na historicidade onde a gente vive mergulhado. e é sempre presente.

lembrei de um trechinho da Jeanne-Marie Gagnebin:

Não temos que pedir desculpas quando, por sorte, não somos os herdeiros diretos de um massacre; e se, ademais, não somos privados da palavra, mas, ao contrário, se podemos fazer do exercício da palavra um dos campos de nossa atividade (como, por exemplo, na universidade), então nossa tarefa consistiria, talvez, muito mais em restabelecer o espaço simbólico onde se possa articular aquele que Hèléne Piralian e Janine Altounian chamam de “terceiro” – isto é, aquele que não faz parte do círculo infernal do torturador e do torturado, do assassino e do assassinado, aquilo que, “inscrevendo um possível alhures fora do par mortífero algoz-vítima, dá novamente um sentido humano ao mundo. No sonho de Primo Levi, deveria ser a função dos ouvintes, que, em vez disso e para desespero do sonhador, vão embora, não querem saber, não querem permitir que essa história, ofegante e sempre ameaçada por sua própria impossibilidade, os alcance, ameace também sua linguagem ainda tranquila; mas somente assim poderia essa história ser retomada e transmitida em palavras diferentes. Nesse sentido, uma ampliação do conceito de testemunha se torna necessária; testemunha não seria somente aquele que viu com seus próprios olhos, o histor de Heródoto, a testemunha direta. Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar outra história, a inventar o presente (GAGNEBIN, 2006: p.57; grifos meus).