30 outubro, 2013

que não sou árvore para deitar raiz

para v.

que não sou árvore para deitar raiz. ela me diz. e eu, minhas raízes aéreas, entendo. escuto o desejo de outrar-se em novas terras, novos ares, nova água. de transplantar-se pra saber o que fica o mesmo e o que muda. e o que muda é a parte em nós que se deixa carregar - o acaso, o destino, a vontade. as raízes em suspenso, encolhidas como as pernas no avião, esperando novo porto pra espreguiçar amplo. esse jeito de não pensar, pensando, que ir é diferente de chegar. porque se a gente chega, é sempre em algum espaço dentro de nós mesmos, quando a pele cabe macia, recobre de conforto a fragilidade do que então, a cada vez, somos. era esse o trecho que eu tateava quando cheguei às margens de um rio: "os livros que a gente lê são uma espécie de raiz. outra espécie é das pessoas que a gente conhece e que vão arando a gente, plantam e quando você percebe já floresceu ficou podre caiu virou adubo. meu objetivo de vida é virar adubo, te digo"*. ela não é árvore pra deitar raiz. mas o silêncio fértil, a terra úmida, o novo que inaugurou em mim afirmando o contrário.

* Marcos Visnadi, na Biblioteca do Mundo do Saturnália, há muito tempo (o link não existe mais).

25 outubro, 2013

baloiço

o sol ensaia sua aparição:
hoje deu pra borboletas
no estômago
e não reúne a coragem
necessária, tão necessária
quando a gente precisa das as caras
para bater.

enquanto ele não vem,
venta.
na rede encharcada, o ar
se deita, se espalha
faz dela balão
dançando lento
como quem se embala
sozinho, em meio à casa vazia.

pra colorir a sexta-feira



23 outubro, 2013

política abissal II (conversas chilenas)


Foto: Cristiane Fernandes
nós sempre falamos muito de política. sempre. mas o exercício de memória por ocasião desses quarenta anos quase torna a política um tabu: não tem mais discussão, parece torcida organizada. mal se começa a falar e já se está brigando. tudo muito dolorido. houve especiais de tv, alguns muito bonitos e bem-feitos, falou-se muito de tudo que passou, mas não apenas as vozes então silenciadas se manifestaram e alguns, aqueles, saíram à rua para reconhecer "exageros" ou até mesmo pedir perdão. perdão. e a resposta foi clara: não perdoamos. não é possível perdoar, ao menos não assim, como o pedido sugere - como se um aceno de cabeça ou um meneio de mãos dissipasse toda dor, ainda insepulta.

***

Foto: Cristiane Fernandes

os cachorros de santiago são muitos. e grandes. e bonitos. e saudáveis. andam entre os transeuntes, altivos. alguns têm roupas. outros, morada coletiva em casas construídas nas praças. provavelmente para que se abriguem no frio. não brigam entre si, ao menos não cotidianamente. os latidos que ouvi, somente dos cachorros com dono. esperam o sinal fechar para latir com veemência para a fila de carros. dormem, em meio à calçada, com serenidade que revela a confiança de que estarão seguros. não recebem afagos a todo o tempo, mas de vez em quando alguém se senta para lhes coçar a orelha. são parte da paisagem. são signo vivo de certa forma de tratar a vida?

***
creio que não ia gostar do brasil. o chile é um país maravilhoso: caminhando para um lado, temos sol forte e calor; caminhando para o outro, temos frio e neve. meus tios me convidam sempre, mas eu nunca vou. prefiro aqui. vou pegar um azul para você, que está muito lindo. sou gráfico, faço silk para camisetas. mas ganho dinheiro mesmo aqui, vendendo sapatos. quase o dobro. para passar as férias, prefiro o chile, já estou acostumado. meus pais vão sempre ao brasil, eu não. fico aqui. e o vermelho? você não gosta? é couro, todo sapato chileno é feito de couro de verdade. aqui nesse país, agora é assim: se as coisas estão bem ou se estão mal, depende de pra quem se pergunta. e não tem a ver com posição social, não, é uma questão de fé. há os que crêem que tudo vai melhorando e está bem. há os que crêem que tudo está piorando e está mal. e a verdade é que ninguém entende nada do que está se passando. por isso vivo cada dia de uma vez, me concentro no que estou fazendo agora. acho que o verde é que ficou bom, não é verdade?

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nos ônibus que passam, vários, a placa lembra que tentar viajar sem dinheiro para a passagem é crime, dá multa vultuosa e faz o barato sair caro. no jornal entregue na porta do metrô, ficamos sabendo de lei recentemente aprovada, que torna todos os cidadãos doadores compulsórios de órgãos, a menos que eles se dirijam a um cartório e paguem uma pequena quantia para registrar seu desejo de não doar. é uma pequena quantia mesmo, entre seiscentos e cinquenta e oitocentos e cinquenta pesos. mas juntando o conhecimento da lei, o deslocamento, o tempo de ir ao cartório, a taxa, o custo aumenta e torna os pobres apenas doadores compulsórios. os pobres que a gente quase não vê nas ruas centrais de santiago e que minha amiga me explica que é porque estão longe. que é porque sabem o seu lugar. que é muito importante saber seu lugar. dormirão tão tranquilos quanto os cachorros nas esquinas? terão a coragem de provocar os motoristas dos carros, enfileirados, em sua inexorável rota?