30 abril, 2008

Para encerrar o dia


Rodrigo ontem, às 7h da manhã, pruma mãe com dor de garganta e de nariz entupido:
- Olha, mãe, meu avental. Eu fiquei feliz quando eu ganhei este avental de passarinho.
- É, filho, é lindo esse avental.
- Mãe, eu vou lavar louça.
- ...
- Mãe, fecha aqui pra mim, o meu cinto de estrelinha.
- Pronto, filho, fechei.
- Mãe, cadê o papai e a mamãe do passarinho?
- Não sei filho.
- Ele está triste, mãe.
- Então vamos procurar o papai e a mamãe dele.
- Vamos!

***

Rodrigo ontem, recém chegado da escola.
- Mãe, quero ver Chiriro. Só um pouquiiiinho (mostrando com os dedinhos o pouquinho).
- Tá filho. Um pouquinho.
- Mãe, eu gosto da Chiriro. Eu não tenho mais medo.
- Que bom, né filho?
Depois de dois minutos de filme:
- Mãe, quero ver muuito (aumentando a distância dos dedinhos para fazer um muiiito).

***
Rodrigo hoje, saindo da escola, andando na viela. (A gente costuma parar o carro na rua de trás, para não muvucar demais a porta da escola e poder pegá-lo com tranquilidade).
- Olha, filho. Quem está aí na frente?
- É o P. G.!
- É mesmo, ele está com a mamãe dele.
- Ele é da escola.
- Como assim? E você não é da escola?
- Não. Eu sou da mamãe.
AAAAAAAAAAAAAAAAAAIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII!!!!!

***

Rodrigo, assistindo Chiriro de novo e conversando com a Bia.
- Bia, vai aparecer um jacaré muito forte.
Era o dragão...

***

E hoje ele ganhou um presente: duas camisetas do homem-aranha (sério, gente, eu não aguentava mais a chateação dele quando a única que ele tinha estava lavando...).
Chegamos em casa e ele mais que depressa pediu para vestir uma.
Aí estava sentado, com a camiseta nova, comendo um pedaço de bolo de cenoura.
- Mamãe, eu estou feliz.
Beijos, beijos e mais beijos da mamãe na criatura.

Quando o amor acabou

(...) em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba”. (Paulo Mendes Campos)

Começara com um renovado impulso de mergulhar nas palavras – procurando novos autores, novos livros, novas maneiras enfim de reter o fluxo da vida transformando-os em prosa ou poesia. E bebia as palavras como se fossem a mais pura verdade, espantada com o novo mundo que ia se abrindo, dentro dela, à medida que as palavras escorriam pelo seu interior.

Com essas eternidades correndo nas veias, veio em seguida a vontade de escutar música o mais alto possível. Ouvia a mesma voz por horas a fio, tecendo delicadezas por dentro para dar corpo à impossibilidade de amar.

Veio ainda o desejo sempre insatisfeito de rearrumar os móveis, rearranjar as roupas, jogar fora tudo o que estava sobrando. Abrir espaço, desprender-se, tornar-se livre de todas as coisas que haviam inventado para viver e que agora haviam se tornado entulho no meio do caminho. Ela quase podia ver – com seu novo olhar de quem descera ao fundo com os olhos bem abertos para não perder nenhum detalhe – os sentimentos que nutriam um pelo outro encaixotados, empoeirados, empilhados à espera de uso no meio da sala, do quarto, do banheiro e até da cozinha.

As coisas aconteciam rápido, enxurrada, levando e lavando com uma violência em tudo contrária à pasmaceira à qual estavam habituados. Pelo imprevisto da irrupção, ela não tivera forças para se conter e, quase sem escolha, foi se deixando tragar.

Havia escolha. Mas ela não resistiu.

Meu nome é eu



Era esse o título de um dos últimos trabalhos que fiz na graduação, comparando as trajetórias de duas mulheres: a Loreley, do Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres (Clarice Lispector) e a Susan Rawling, do conto "O quarto 19", (Doris Lessing).

(Durante toda a graduação, flertei com uma sociologia da literatura. Mas sempre de um jeito desconfortável porque eu me apaixonava tão perdidamente pelo texto que não conseguia escapar de uma análise que me parecesse proposta por ele - e aí ouvia dos meus professores que aquilo não era sociologia e sim crítica literária. Então, ao final da graduação, fui fazer mestrado na Letras, na Teoria Literária. E ouvia do meu orientador que minhas análises ainda eram muito sociológicas...Qualquer dia conto melhor esta história, mas o resumo da ópera é que voltei para a sociologia - do trabalho, vejam só - e mesmo depois de um mestrado e três anos de doutorado continuo me sentindo desconfortável...).

Bom, mas o fato é que me lembrei deste trabalho ontem, ao rever A viagem de Chiriro.

A própria questão da viagem já aproxima o filme do Uma aprendizagem, por exemplo. No livro da Clarice há várias referências à história de Ulisses, que no livro é também o nome da personagem condutora da travessia de Lóri no caminho para se assumir. Um condutor amoroso e paciente, que provoca, aponta caminhos, mas que faz questão de se ausentar de vez em quando, dando ao outro a liberdade de experimentar sua própria coragem.

E o Haku da história da Chiriro é uma personagem bem próxima a do Ulisses...Ele está ao lado dela, amparando, cuidando, mas nem por isso a gente tem a impressão de que ele está a protegendo de tudo e todos. Ele também tem seu próprio caminho a percorrer e o bonito é que eles tenham se encontrado e, neste encontro, encontrem também razões e possibilidades de se experimentar de outras maneiras.

No filme, a feiticeira controla os seres roubando-lhes o nome - roubando assim sua identidade, seus laços e memórias e a possibilidade de fazer o caminho de volta.

Mas Haku e Chiriro já se conheciam e, por isso, guardavam dentro de si os nomes um do outro. Com outro nome ou com outro corpo e em qualquer tempo, ambos eram capazes de se reconhecer. E é nesse olhar do outro em que a gente também se reconhece que fica guardada a possibilidade de quebrar o feitiço, de sair do olho do furacão para o qual de vez em quando somos arrastados e voltar para o ponto de partida.

Não que se retorne do mesmo jeito. Se (na leitura do Auerbach) Ulisses empreende suas viagens mas volta do mesmo jeito, ileso, o mesmo não acontece com a Lóri e a Chiriro. Elas são profundamente transformadas, marcadas pelo que experimentaram (mais como o Abraão da Bíblia, na leitura do mesmo Auerbach). Tomam posse de seus nomes - contornos daquilo que são, garantia de que a liberdade de ir passando do que são ao que querem ser não significa abandono de si. Nem a perda do amor de quem está lhes acompanhando.

Em ambos os casos, a gente teve a chance de conhecer as personagens num momento muito específico de suas vidas: um momento de travessia. Então seria fácil imaginar que se trata de um "momento definidor", após o qual a vida entra numa nova etapa, mais estável. Engano nosso, eu arriscaria dizer. Porque a Chiriro parte sem olhar para trás, mas com a promessa de reencontrar Haku. E o romance da Clarice termina com dois pontos:

O que sugere encerramentos provisórios, porque estar vivo é estar pronto para fazer novas travessias, novas viagens, ser desafiado por novos encontros ou encarar o desafio de se encontrar de novo nos encontros antigos.

É. Eu gosto dessas histórias de amor e de encontro em que a liberdade - ou sua aprendizagem - estão colocadas tão radicalmente.

Imagem: http://www.tvcultura.com.br/detalhe_episodio.aspx?idprograma=288&idepisodio=4072

29 abril, 2008

Aprendendo a sentir



Desde que li "Perto do Coração Selvagem", da Clarice, um trecho me assombrava vez-em-quando. É assim: "Eu me sinto segurando uma criança, pensou Joana. Dorme, meu filho, dorme, eu lhe digo. O filho é morno e eu estou triste. Mas é a tristeza da felicidade, esse apaziguamento e suficiência que deixam o rosto plácido, longínquo. E quando meu filho me toca não me rouba pensamento como os outros. Mas depois, quando eu lhe der leite com estes seios frágeis e bonitos, meu filho crescerá de minha força e me esmagará com sua vida. Ele se distanciará de mim e eu serei a velha mãe inútil. Não me sentirei burlada. Mas vencida apenas e direi: eu nada sei, posso parir um filho e nada sei. Deus receberá minha humildade e dirá: pude parir um mundo e nada sei. (...) Meu filho se moverá em meus braços e eu me direi: Joana, Joana, isso é bom. Não pronunciarei outra palavra porque a verdade será o que agradar aos meus braços".

Talvez porque pouco depois minha sobrinha tenha nascido e essa "verdade de carne" tenha ficado impressa em meus próprios braços, talvez pela beleza e simplicidade da forma que a Clarice encontrou para dizer da maternidade, esse trecho volta e meia me voltava à cabeça. E depois que o Rodrigo nasceu, várias vezes me assusta essa mesma constatação: pude parir um filho e nada sei. Me assusta e me traz paz, ao mesmo tempo - me liberta da necessidade de saber ou pôr em palavras aquilo que vou aprendendo; me torna possível experimentar a vida de outro jeito: mais um presente que o Rodrigo me dá.

Então, meu desejo (de Natal e de ano novo) é que cada um de vocês também encontre momentos-pessoas-experiências que lhes deixe marcado na alma e no corpo essa plenitude das verdades que não precisam ser postas em palavras e essa imensa de liberdade de, não sabendo, simplesmente viver.

* Este texto foi escrito nas festas de 2005.

Imagem:
http://www.art.com/asp/default-asp/_/posters.htm?%20&ui=35189404C390492B931848EFC17255F0

As expressões do amor


Meu sangue de pesquisadora não me abandonou nem mesmo durante a minha gravidez: eu queria saber tudo, conhecer tudo, me preparar da melhor maneira. E foi nessas pesquisas que conheci os carregadores de pano, os slings.

Conheci primeiro os da Bettina, lá do sul. Achei tudo lindo e fiquei animada com a perspectiva de carregar o filhote daquele jeito. Mas o tempo foi voando, o Rodrigo resolveu nascer 3 semanas antes do previsto e eu até ia me esquecendo do tal do sling...

Mas como a necessidade é a melhor amiga das boas idéias, quando o Rô estava com cerca de um mês e eu super cansada, sem conseguir sair de casa (as ruas aqui perto são intransitáveis com carrinhos...), lembrei do sling. E corri procurar uma alternativa mais próxima de SP (leia-se: mais rápida e portanto mais adequada à minha situação de desespero).

Foi então que encontrei a Analy (que naquela época tinha o www.babywearing.com.br) e encomendei um sling, nem me lembro mais de que cor era. Ela ainda havia me prevenido que era melhor ver os tecidos ao vivo...Quando chegamos à slingada, me apaixonei pelo sling vermelho - e o Rodrigo também gostou da novidade. Ficou quietinho, com uns olhões bem abertos prestando atenção em tudo.

(Foi por meio da Analy que eu conheci a Materna e tenho certeza que essa rede de mulheres e mães maravilhosas foi fundamental para a minha experiência de ser mãe. As experiências partilhadas põem em xeque modelos estabelecidos, ampliam o repertório e abrem espaço para que a maternidade seja exercida a partir de um olhar atento aos nossos queridos filhotes - como são, e não como gostaríamos que eles fossem).

Bom. Daí que nunca mais paramos de andar de sling, né? Rodrigo estava com cólicas? Era colocá-lo sentado no sling, que tudo se resolvia; o problema era agitação? lá ia o menino para o sling passear pelo bairro; a mãe é que estava estressada? passeio na gente que em meia quadra caminhada tudo ficava mais tranqüilo... O Edu também adorava caminhar com o serzinho penduradinho.

Quando ele começou a comer frutas, íamos ao CEASA e o Rodrigo era a sensação dos vendedores. Vez em quando aparecia alguém para perguntar se ele não estava apertado, machucado etc. Mas em geral as pessoas se encantavam. Porque a segurança que o Rô sentia transparecia na carinha dele, na simpatia para com as pessoas...Pena que não temos foto dele sentado no sling, feliz da vida, comendo melancia (ou banana ou pêra ou mexerica já que ele ganhava pedaço de tudo quanto era fruta).

Ele está pesado para usar o sling agora. Mas isso não significa que tenhamos deixado de carregá-lo. Porque quando as costas começaram a reclamar, compramos um mei-tai (que está na foto). Cansei de fazer comida com ele amarrado nas costas. Às vezes ele estava com sono, mas não queria dormir, então eu o colocava nas costas e, mal começava a cozinhar, ele já estava dormindo.

Hoje usamos mais para passear e mais na frente (ele diz que tem medo de cair das costas). O fato é que ainda é muito gostoso carregá-lo pertinho de mim. No mei-tai, parece que estamos num abraço sem pressa e sem fim. Ele se aconchega e só vai curtindo a paisagem.

Não acho que colo e carinho des-eduquem ou deixem mal acostumado. Não mesmo. As crianças têm necessidades diferentes e o Rô desde pequeno exigia muito contato físico e proximidade com a gente. Se não fosse o sling, acho que teríamos pirado. O sling, assim, tornou possível dar a ele toda a proximidade que ele pedia sem que para isso tivéssemos que abrir mão de tudo e focar apenas nele. Porque a atenção de que ele precisava não tinha a ver com o olhar, o falar...Tinha a ver com pele, com o cheiro, com os ritmos do corpo.

Numa viagem para Londrina, perdemos o sling vermelho. Fiquei tão triste. Porque era um pano que embalara sonos, sonhos, descobertas e é como se parte dos primeiros anos do Rô tivesse ficado impresso nele, nas marcas, manchas e cheiros.

Fazer o quê? O mais importante, acredito, está impresso na memória e no corpo do Rodrigo. Um lugar-tempo de conforto ao qual ele sempre poderá voltar durante a vida.


28 abril, 2008

Porque eu amo o Caio


(Essa carta eu encontrei este fim-de-semana. Foi o Maurice que me deu, antes mesmo de sair o livro com as cartas que ele escrevia, a tanta gente...E é tão bonita, que não resisti a dividi-la com vocês. Uma carta do Caio, escrita num agosto que parece não ter existido dentro dele. Pelo menos não naquele ano).

"Sampa, 08 de agosto de 1984
Luciano, mano

(...) Luciano Alabarse: eis que estou ótimo. (...) Tem uma felicidade mansa por dentro, devagarinho. A casa bonita. Os dias bonitos. A roseira bonita. E pessoas novas (tem coisa melhor que gente?) E trabalhos novos (breve a cores). Guardo o meu amor por dentro. É precioso. Pensar nele faz com que tenha vontade de cuidar de mim mesmo- então é bom. Guardando, guardando, feito jóia. Precioso, delicado. Meus dias têm sido claros. Lembro de um velho samba-canção: "Eu não peço nem quero/ para o meu coração/ nada mais que uma linda ilusão". Supersábio.

Joguei I Ching lindo hoje, bem na hora da minha Revolução Lunar, 14 graus de Capricórnio. As coisas vão dar certo. Vai ter amor, vai ter fé, vai ter paz - se não tiver, a gente inventa. (...)

Hoje estou pensando que ter amado meio torto durante tanto tempo talvez esteja me conduzindo a algo mais claro? É uma dúvida que te coloco. E sinto coisas tão boas, Luciano, ondas de energia claras que me sobem Kundalini acima - e então penso que está certo assim, na nossa sede infinita (Drummond) acreditar e levar porrada mas voltar a acreditar e cair do cavalo e não deixar de acreditar e se desenganar e se arrebentar mas continuar acreditando que, de alguma forma, há alguma resposta de humano para humano. E que amar o humano do outro e aceitar e amar teu próprio humano, e que esse é o único jeito, o único way-out possível: procurar no humano do outro a saída do nosso próprio humano sem solução. E na minha memória, amar os pés nus do meu amor na minha blusa roxa. Ou o beijo na boca na escadaria. E pouco importar que tudo tenha sido ou continue sendo fantasia ou carência, porque é assim que as coisas são, e é através disso - e só disso, venusiano total - que posso crescer, e não me importo nem um pouco de voltar e acreditar e de ficar todo aceso e mais delicado para olhar as coisas, qualquer coisa.

Na minha lápide, quero alguma coisa mais ou menos assim: "Caio F. - que muito amou". And that's it.".

And that's it.


Fonte da imagem: http://arrozcomtodos.blogs.sapo.pt/85133.html

Silêncio

A vida, esta vida que, inapelavelmente, pétala a pétala, vai desfolhando o tempo, parece, nestes dias, ter parado no Bem-me-quer”, (J. Saramago)


E quando a gente, depois de tanto tempo sem dizer, finalmente diz é muito difícil que a voz que se acostumara ao silêncio não saia fora de tom, não berre e nem sentencie palavras tão definitivas como: adeus, para sempre, nunca mais.

Mas já em seguida, quando a explosão de lava encontra as formas do relevo e pode mansamente ir descendo e esfriando, vem a vontade de ter sabido sussurrar e dizer devagar, tateando as possibilidades ao invés de encerrá-las.

Porque só assim seria possível interromper a tempestade e fazer a vida parar, só mais um pouquinho, no tempo do bem-querer.

Fonte da imagem: http://www.ibama.gov.br/edicoes/site/imgRicardo/08Orquidea.jpg


27 abril, 2008

Achados ou perdidos

Do dia em que se conheceram só se lembrava de ter chorado muito, horas e horas de lágrimas entrecortadas por soluços e/ou gritos (nem sempre sufocados) de dor e desespero. Era o final previsível de uma série de falhas, erros, medos, sempre tão cuidadosamente escondidos ao longo daquilo que se acostumara a considerar como “sua vida”. Bem, sua vida de mentiras terminava ali e parecia que tudo fora tão de repente, embora sua casa não tivesse relógios na parede que fizessem o tempo passar. No dia em que se conheceram ela não deu importância ao fato de se terem conhecido porque nada podia importar mais que sua dor e suas lágrimas e depois, nada importaria mais que seus olhos cansados e pesados, o sono que cairia sobre ela, sua cabeça que ficaria latejando a noite inteira e o corpo trêmulo – tanto frio e desamparo em meio à solidão.

Do dia que se seguiu àquele que foi o dia em que se conheceram, ela só se lembrava de ter feito tudo igual a todo dia – o show deveria continuar, embora soubesse cada vez com mais certeza que sua vida estava longe de ter qualquer elemento de espetáculo -, com a diferença única e crucial de não estar presente e isso a fazia pensar até hoje, passados tantos anos, anos que ficavam ainda mais longe porque sempre há um abismo nos separando de nossas quedas; isso a fazia pensar em que força estranha e externa a teria movido por sobre aqueles dias, que espécie de energia apática poderia tê-la alimentado até que aquele dia se tornasse ontem. Mas estas perguntas não duravam muito; há sempre mesmo qualquer estranheza a nos mover por sobre cada dia, uma estranheza que ela não se atreveria a chamar de vida, apenas – e esta parte do pensamento era solene -, apenas um vago resíduo, apenas o inominável.

Só então, e já era o terceiro dia, é que se lembrou de haverem se conhecido e esta lembrança sabia à bala de café, tão doce e insone e amarga no fim, estranhamente amarga: haviam se conhecido. Olá, olá, sou Fulano de Tal, e eu sou Fulana. Notara que ele gostava de sobrenomes, tinha quase necessidade deles para uma identificação mais completa, mas ela queria o incompleto aquele dia, queria os pedaços, por isso só lhe dissera seu primeiro nome. Haviam se conhecido na fila de um cinema, nenhum filme importante, nada que pudesse fazer adivinhar o estado na alma de quem iria assistir à sessão. Nada de especial sobre o filme que pudesse aproximá-los por afinidades intelectuais-artístico-culturais, só haviam começado a conversar devido a um incidente com um casal que estava na fila, uma briga, uma discussão, vozes elevadas, um certo constrangimento geral até que eles resolvessem se retirar, o que mesmo assim só ocorreu após a intervenção discreta – eram todos adultos, maduros e civilizados – do segurança. Como se estivessem imediatamente próximos trocaram olhares cúmplices de queabsurdo e ela se voltara para frente, rezando não, porque naquele dia perdera a fé em tudo, então melhor, torcendo intimamente para que o desconhecido não encarasse aquilo como um convite à conversa, já arrependida de ter esquecido seus problemas e ter prestado atenção no “em torno”.

No entanto, já era tarde demais, e o desconhecido engatara uma conversa amena e neutra sobre trânsito, sobre a loucura da Cidade-que-nunca-pára, sobre a nova faixa de bandas do governo; tudo conversa normal entre pessoas integradas e adultas e pensando neste último adjetivo que atribuído a si mesma tornava-se cômico, ela pôde, com um sorriso resignado e cansado, entender porque a lembrança dele sabia à bala de café.

O quase-desconhecido não lhe havia despertado emoção alguma: era moço, good looking (ela nunca conseguia encontrar expressão equivalente a esta para descrever um rapaz), agradável e, afinal, ela estava tão sozinha naquele instante, naquela fila, naquele dia que. Podia ser que o tempo passasse mais rápido, que a fila começasse a andar ou ainda que o mundo se tornasse mais bonito – o mundo encantado porque em algum planeta há uma rosa, em algum canto se esconde um pássaro que se ama. Ela pensava todas estas coisas quando se conheceram, tudo eram hipóteses diante de uma pessoa, e ela repetiu várias vezes em seu pensamento esta palavra, pessoa-pessoa-pessoa, apenas para se dar conta da realidade que era uma pessoa, essa coisa grande e indecifrável.

O semi-conhecido fora tão delicado em não lhe questionar sobre os seus olhos ainda vermelhos que ela quase havia recomeçado a chorar. Mas ela só pretendia fazer isso quando já protegida pelo escuro da sala de cinema ou já escondida por detrás do enredo do filme, quem sabe. As pessoas no cinema estavam lá para tornar a vida mais leve e ela precisava estar lá para poder adensar sua vida e sua dor, para sentir ainda mais contundentemente que tudo poderia ser melhor, para assistir a felicidade e a vida que lhe era negado viver. As quedas eram tantas, como aquela, daquele dia, a música do Paul McCartney que não lhe saía da cabeça so sad, so sad, sometimes she feels so sad, alone in the apartment ..., ‘till the man of her dreams comes along and stay, come on stay, and he comes, and he stays, but he lives the next day, so sad, sometimes she feels so sad... ela que era assim, meio óbvia demais.

Do dia em que se conheceram até o dia em que ela se lembrara havia a distância intransponível e imensurável do descaso e da indiferença, ela o reconheceria caso pensasse mais detalhadamente no assunto. O fato é que ela se lembrara dele como quem é apanhado pelo esquecimento do guarda-chuva num dia de sol escaldante – e depois novamente se esquece.

Não haviam trocado telefones ou confidências, aquele era para ela um péssimo dia e o pseudo-conhecido não constituíra interesse suficiente que a fizesse se desvencilhar das tramas da dor e da angústia.

Assim, ela se lembrou de haverem se conhecido quando seus pés novamente tocaram o chão frio e conhecido do cotidiano; mas lembrou-se sem emoção, remorso ou esperança.

E então o esqueceu.


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Desde o dia em que se conheceram, Ele se coloca todos os dias na fila do cinema, o mesmo cinema, esperando por Ela, sonhando com Ela, profundamente impressionado pelos inconsoláveis olhos ainda vermelhos – e que ele prometera a si mesmo fazer sorrir e brilhar -; do dia em que se conheceram, só era capaz de se lembrar do que ocorreu depois de tê-la encontrado, Ele que queria tanto encontrar alguma coisa: só se lembrava de suas mãos morenas, seu rosto, seu vestido longo, sua voz suave e cansada. E cada vez que se lembrava dela, vinha-lhe à boca um gosto quente, amargo e infantil de bala de café.

26 abril, 2008

Modo: Ordem Aleatória

Rodrigo no café da manhã:
- E agora, José? Vou comer um bolinho.
Diz se não é para querer apertar. E diz se o Rodrigo não resolveu o problema do coitado do José do jeito que só as crianças conseguem...

(Eu tenho mania de perguntar "e agora?" quando o Rô faz alguma coisa atrapalhada. E numa dessas vezes, disse "E agora, José" e ele achou o maior barato. Então eu li a poesia para ele. E não é que o menino gostou? Vira e mexe ele pergunta para si mesmo: "E agora, José?" e vai continuando: "acabou a festa, "acendeu" a luz...").

A Bia - irmã mais velha do Rô - diz que ele vai ser excluído na escola porque vai ficar recitando Drummond, cantando músicas estranhas que ninguém conhece.

(Hoje eu estava cantando para ele "Alguém Total", do Luiz Tatit, que é uma música que fala de abraço. E quando acabou, ele me pediu para cantar de novo. "Canta mais, mamãe, a música do abraço". É. Talvez a Bia tenha alguma razão).

E o que eu mais gosto sobre fazer a feira no CEASA, além da qualidade das frutas - que em nenhum sacolão ou supermercado é a mesma - é de trazer sempre flores para a casa. Adoro.

(E a Batchan que atende a gente adora ver o Rodrigo pendurado no mei-tai - que ela chama de ombu - e sempre acaba dando um raminho qualquer de presente. Outro dia ganhei um ramo de eucalipto, que perfumou a casa a semana toda).

Hoje tentamos arrumar algumas coisas em casa, que estavam acumuladas desde janeiro, quando reformamos o quartinho-escritório. Achei tanta coisa gostosa - cartas, bilhetes, cartões. Os do Petronio me levaram de volta à biblioteca antiga da Sociais, aos domingos em que a gente sempre se encontrava para almoçar ou passear. Eu acordava cedo, ía à missa e na volta (a casa dele era no caminho), comprava jornal e passava para vê-lo. E assim acabávamos passando o dia juntos. Era tão gostoso. E o Petronio é uma das pessoas mais bem humoradas e inteligentes que conheço. E também pura doçura e leveza.

(E é tão inteira essa sensação de gratidão à vida pelas pessoas que a gente teve a sorte de encontrar. Mesmo que a gente se perca depois).

Eu odeio Lost. Pelo menos no intervalo de tempo que vai de um episódio ao outro. Eu só gosto de Lost nos cinqüenta minutos em que estou assistindo. Depois odeio. E não vou escrever mais porque já basta os spoilers que solto sobre os livros que comento. Mas o último episódio foi f...

(E já que toquei no assunto séries, estou morrendo de saudades do Dexter. E do House. E é o suficiente de homens mau-caráter de quem tenho saudade.)

Para terminar, um desejo: Zeca Baleiro cantando Hilda Hilst? Eu quero-eu quero-eu quero.

25 abril, 2008

Estrelas da Manhã

Rodrigo acordou às 7h e me chamou. Fui lá falar com ele, que estava ainda meio com preguiça, me viu, pegou o Amigão e se esparramou na cama.
Quando finalmente despertou, pediu para tirar o macacão-cobertor que vai por cima de tudo. E se espantou com as meias.
- Olha, mamãe. A minha meia. São iguais.
- É filho, um par.
- Tem estrelinhas.
- É mesmo, Rô.
- A sua não tem estrelinhas.
- Não, filho. A minha não tem.
- Quando você crescer, você vai poder ter meias de estrelinha, mãe.
Oba! Não vejo a hora...

E para a sexta-feira ser bonita, uma canção deliciosa do Luiz Vieira, Prelúdio para ninar gente grande. Beijos e bom fim de semana!

Quando estou
nos braços teus,
sinto o mundo
bocejar...
Quando estás nos braços meus,
sinto a vida descansar.
No calor do teu carinho
sou menino-passarinho
com vontade de voar...
Sou menino-passarinho
com vontade de voar.

* Quando eu aprender direito as ferramentas do blogger, tento colocar o aúdio da música.

24 abril, 2008

Ricardo

Eu tinha 18 anos e ele uns... 33? Nem me lembro direito.

Ele não parecia ser mais velho; ao contrário, tinha cara de moleque, jeito de moleque...Nos conhecemos no cursinho, e o fato é que ele ficava bem à paisana no meio de todo mundo.

Ele queria prestar arquitetura - era bom de desenho. Ele era também divertido (mesmo que com um humor de vez em quando ácido) , contador de causos, agregador de gente em torno dele. E também tinha pinta de namorador...

Também não me lembro como é que começamos a andar juntos; deve ter sido quando as turmas de maio e as do intensivo se juntaram, no segundo semestre.

Não sei bem porque a gente se aproximou - deve ter sido por causa da Camila, que já era amiga dele antes do cursinho. O fato é que ficamos amigos, batíamos papo, trocávamos textos e bilhetes. Os dele eram sempre escritos à lápis, numa letra de fôrma miúda e perfeitamente desenhada. Coisa de quem gosta de desenho, deve ser. Alguns eu ainda tenho, guardadinhos bem escondidos que é para eu não topar demais com eles.

Aquele ano não estava sendo fácil para mim: era o último ano do magistério de manhã, estágio à tarde, teatro às sextas-feiras e cursinho de noite. Para completar, minha mãe ficou um mês fora e fiquei cuidando da casa e da minha irmã.

Foi durante essa viagem da minha mãe que ficamos juntos. Numa festa do pessoal do INPE (onde ele trabalhava). Ficar com ele não chegou a ser uma surpresa, embora também fosse um pouco inesperado. Vejam: a gente se gostava, mas a gente também se provocava, se dava broncas, brigava mesmo (ai como eu era chata aos 18 anos!).

A gente estava junto, embora também não estívessemos assim "juntos". E em um dado momento tudo errou, tudo ficou desencontrado. Eu era menina demais e era muita coisa junta acontecendo. Porque no meio de tanta coisa, ainda aconteceu a doença da Fabiana. Minha amiga querida, com quem cresci e que descobriu naquela época que estava com câncer.

Paramos de ficar juntos do mesmo modo que tínhamos começado - sem surpresa, meio inesperadamente. Embora não tenhamos parado de conviver, ao contrário.

Logo depois ele se apaixonou perdidamente e começou a namorar. Eu passei no vestibular, vim para São Paulo e a gente só se falava de vez em quando. Foi numa dessas vezes que ele me contou que eles estavam grávidos e iam casar. Ele estava tão feliz e eu fiquei muito feliz por ele.

Não foi nem dois anos depois, eu acho, porque o filho dele era bebê e eu ainda morava na R. Casa do Ator. Foi a Marilda, querida, que me deu a notícia: ele morrera, num domingo tranquilo, depois do almoço, junto com a família. 35 anos e um enfarto fulminante.

Como eu havia sido avisada com atraso, não havia nada que pudesse fazer naquela altura - e me dei conta da importância dos ritos para ajudar a gente a se despedir. Eu não me despedi dele. E vai ver que é por isso que vez em quando ele me interpela ou então sou eu que me vejo conversando com ele. (Ou vai ver que sempre ia ser assim mesmo, porque a história de dizer que as pessoas continuam vivas dentro da gente está longe de ser conto da carochinha).

Um dos temas principais das nossas conversas é o meu cabelo. Naquela época eu tinha o cabelo bem comprido, no meio das costas, e ele odiava. Queria me convencer de todo jeito a cortá-los - indo comigo ao cabeleireiro ou desenhando diferentes cortes para me ajudar a decidir. Ele sabia que eu era menina, mas estava a fim mesmo era de me ver virando mulher.

Por isso, quando um dia finalmente resolvi me despedir de uma parte de mim, o rito foi cortar o cabelo. Bem curto, bem leve. Uma poderosa maneira de me assumir. E foi inevitável olhar tudo aquilo no chão e não pensar nele.

Meus cabelos no chão do salão foram, (são sempre), as flores que eu coloco ao lado do seu túmulo.

Bem vindo ao deserto do real

Um professor muito querido sempre chamava nossa atenção para a especificidade do olhar da criança para o mundo e as relações sociais: por estar numa situação liminar, as crianças circulam silenciosas e quase despercebidas, estando portanto em situação privilegiada para compreender "os bastidores" das relações. (Estou simplificando os argumentos, mas se alguém quiser saber mais, pode dar uma olhada no Capítulo 3 do livro de José de Souza Martins, Fronteira: A degradação do Outro nos confins do humano, publicado pela Hucitec).

Essa história do terremoto me fez lembrar que, quando criança, eu tinha três grandes medos: de terremoto, de incêndio e de guerra nuclear. Aparentemente, eu não era a única (o Edu que me indicou: a Soninha também tinha medo de coisas parecidas).

De terremoto eu tinha medo devido às cenas do terremoto do México, em 1985. Eu tinha 8 anos e imagino a impressão que as notícias da época devem ter me causado. Me lembro de sonhar, de me angustiar com os desaparecidos e soterrados... E o fato da minha mãe ter morado por dois anos na Califórnia não foi favorável a que esse medo de terremotos fosse deixado pela vida, substituído por outros mais concretos.

O medo de incêndio também foi alimentado por imagens: me lembro nitidamente na noite em que liguei a TV e vi o incêndio do prédio da CESP. E vejam que era 1987, eu já era um pouco mais velha. Mas aquele prédio queimando no meio da noite, a correria para apagar o incêndio, a dúvida sobre se havia gente ou não no prédio...Ui!

E tinha o medo de guerra nuclear, né? Que não dava para passar pela Guerra Fria incólume. Eu ficava apavorada em época de São João; sério mesmo a-pa-vo-ra-da! Como eu morava em São José dos Campos - SP, onde fica o Instituto Tecnológico de Aeronáutica - ITA e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - INPE (onde aliás os meus pais trabalhavam), rolava a lenda de que a cidade estava no alvo - não sei bem de quem - por ser militar e por abrigar além dos centros de pesquisa, um monte de indústrias de armas. Então eu vivia com medo e qualquer estouro achava que era a guerra que estava vindo aí.

Um parênteses: o filme Exterminador do Futuro só acrescentou imagens aos meus medos e fantasias. Aquela imagem da mãe embalando o filho no parquinho e em seguida desaparecendo, com o cogumelo gigante surgindo no horizonte e os ventos cheios de poeira radioativa se espalhando rapidamente... putz!

O título do post é uma fala do filme Matrix (lembram-se? Quando o Morpheus conta pro Neo a verdade nauseante sobre o que se tornou o mundo?) , mas também de um livro do Slavoj Zizek (a grafia é outra, mas eu não sei fazer isso no meu teclado português) sobre o 11 de setembro. Vale a pena. E eu lembrei dele porque ia escrever sobre medos de infância até que percebi o quanto eles estão relacionados às imagens, à amplificação do real ou à representação do que está/parece na iminência de se transformar em realidade.

Para mim, criança, o clima de medo sob o qual vivemos muito tempo ficou representado assim: o medo dos acidentes e o medo do fim do mundo, nenhum pouco acidental...Talvez fosse da finitude da vida que eu tivesse medo, de morrer e de ver morrer as pessoas que eu queria bem. Mas nas minhas lembranças não era isso que eu temia - eu temia era a aleatoriedade das coisas, a falta de sua previsibilidade. Fossem as tragédias provocadas por acidentes ou escolhas, o que mais me angustiava era a impotência para evitá-las.

Sensibilidade sociológica infantil anunciando que a gente vive sempre num nível de escolhas e decisões descoladas da História?

Vai ver que é por isso que ainda hoje eu gosto tanto das metáforas de Matrix.

23 abril, 2008

Alento

Sabe quando por detrás do coração tem uma coisa que sopra e pesa e torna a vida mais densa a ponto de ser difícil de respirar?
E nem suspirando é possível mudar de parágrafo por dentro?

Eu decididamente não fico bem antes da chuva.

Breves

Quando, depois de muitos anos, conseguimos reunir uma trupe de mulheres muito queridas e especiais para uma noite de curtição, não podia dar outra: a terra tremeu.

***
E é claro que prevendo que a mãe ia sair, Rodrigo se fez de esperto, chegou da escola dormindo e quando cheguei em casa, tchã-ram! Encontrei o Edu caindo de sono e o Rodrigo de pijama, animadíssimo brincando de jogo de tabuleiro (leia-se: espalhando as peças do jogo de tabuleiro pela sala).

***
E às 6h30 da manhã (reparem que fomos dormir quase à 1h), Rodrigo acorda. Aí começa a conversar comigo, que sugiro a ele que vá para a sala ver filme (leia-se: deixe a mamãe dormir mais um pouco). Então segue-se o diálogo:
- Vai ver um filme na sala, Rô.
- Não.
- Você não quer ver filme?
- Não, mamãe. Eu vou mamar ainda.
- É?
- Eu vou mamar ainda, antes de ver filme.
E assim foi. Mamou e foi todo contente para a sala ver "o filme da lampadinha" (lembram daquele curta da Pixar?). E eu que estava achando que depois da estomatite o menino ia desencanar de mamar...

***
E já que é de "breves" que se trata, fica a dica do Porta Curtas Petrobras, onde é possível encontrar uma porção de coisas bacanas. A visualização é meio ruim (ou eu é que não sei fazer direito), mas o repertório é bem legal.

22 abril, 2008

Urgência

Espera, disse, e só então reparou em quanto ele estava perto dela, perto do seu corpo, perto de sua nuca, assim tão nua e exposta por aquele indecente rabo-de-cavalo que ele odiava porque achava que era assim que ela disfarçava sua feminilidade, mal sabendo que ela não era desses truques, que ela não tinha truques nenhum e por isso talvez fosse diferente do que ele costumava imaginar que as mulheres eram.

Espera, ela sentiu sua voz suada e rouca muito próxima de si, e ficou feliz que ele estivesse repetindo aquele pedido, ela que apenas desejara que ele dissesse Espera, ela que não queria ir, ela que só desejaria permanecer ali para sempre, tendo-o atrás de si, quase enlouquecido, talvez ela tivesse mesmo alguns truques, principalmente o de fingir que não tinha truque algum e assim ficava livre para pegá-lo desprevenido, aberto, tão nu quanto sua nuca salgada de suor.

Não acabava de conseguir se virar, apenas esperava-esperava-esperava, já adivinhando aquele olhar que ela conhecia bem demais, aquele rosto que ela conhecia bem demais, aquela barba que ela conhecia bem demais, tudo enfim que nele lhe era familiar; mas ela não virava nunca porque tinha um medo infantil de que ele de repente tivesse se tornado outro e que não fosse encontrar em seus olhos senão estranhamento e pavor, nele que era sua referência mais certa, provavelmente a única referência.

Sua vida tresloucada, sem regras, horários, lugares, sem nada; ele era o único algo fixo; e ela não podia se virar assim, assumindo o risco de não encontrá-lo; esperou ele lhe mandar esperar mais uma vez, sabendo da cena ridícula que estavam protagonizando, ele ali parado e ela ali parada, ele talvez tivesse desistido de fazê-la esperar apesar dela estar parada, teve medo, o conhecia demais para saber que ele não chamaria de novo, já havia chamado duas vezes, ele era sempre tão paciente com suas hesitações, ele respeitava sempre suas decisões, ele não chamaria, mas ela precisava que ele a chamasse para que pudesse voltar à realidade, para que pudesse não mais ter medo, para que pudesse enfim se virar, para que pudesse ter certeza de que era ele mesmo e ele estava tão calado agora que talvez nem estivesse mais ali.

O braço entrelaçando carinhosamente o seu, ela o reconheceria em qualquer lugar, era o braço dele; fechou os olhos com o alívio do toque, ao mesmo tempo um pouco nervosa pelo desespero dele em fazê-la ficar, ele não era disso, devia querer muito que ela esperasse e ela não gostava de esperar nem lhe agradava a idéia de que ele desejasse tanto que ela ficasse ali, com ele, porque afinal esta era a intenção, ninguém pede espera apenas para que o outro pare, apenas para que o outro permaneça, ele lhe pedia para permanecer com ele e isso ela já não sabia mais se queria.

Ela queria, pelo menos ela quisera até aquele gesto de desespero, agora tinha mais medo ainda de não reconhecê-lo: que parte dele além do braço haveria tocado o seu próprio a fim de retê-la? Não conseguia se virar, a nuca cada vez mais salgada e nua, os olhos novamente abertos e assustados, o corpo em sobressalto, os braços ainda enlaçados ao dele, enlaçado – enlace – enlatado – entalado, pensou todas estas bobagens enquanto tentava mais uma vez se virar sem saber se era isso ou não que queria.

O outro braço surgiu em volta de seu corpo, agora estamos abraçados, ela sentiu sem pensar mergulhada naquele abraço que procurava retê-la, que procurava retê-lo, que mostrava que ambos procuravam e achavam a mesma coisa no mesmo lugar; aquele abraço que de tão estreito sufocava qualquer pensamento, aquele abraço tão necessário para conter o sentimento que ameaçava transbordar de ambos, manchando a calçada em frente ao prédio que conheciam tão bem.

Ela fechou novamente os olhos sem saber mais como não se voltar para ele, como não voltar para ele, havia passado tempo demais, mas ela estava ali à espera e ele estava ali esperando que ela não mais esperasse e nessa mistura de esperas e esperanças ela encontrou forças para se virar, apertada no abraço molhado de lágrimas e prazer lembrado-antecipado, em sua cabeça apenas o pedido dele – Espera – e ela não sabia mais o que esperar.

Acabando com a espera, sabendo agora menos que antes, virou-se então, gastando nisso todas as suas forças, ele ainda tinha algumas, ela o percebeu quando ele lhe beijou com ânsia demais, quase invadindo aquele corpo que ela achava que era dela, mas que a partir de agora. No instante em que a espera acabou ela soube – e era tarde demais.

21 abril, 2008

A paixão de conhecer o mundo



Feriados prolongados com chuva, frio e criança pequena podem ser bem cansativos. Ainda mais se a criança em questão saiu de uma doença chatinha que a deixou cheia de açucar e mimos...
Mas por outro lado, essa convivência mais intensiva é tão gostosa. Especialmente porque dá para acompanhar nas coisas mais pequenininhas o quanto o está crescendo.

O título do post é o nome de um livro da Madalena Freire. Eu li pela primeira vez há mais de doze anos, enquanto fazia magistério, e fiquei encantada. Para mim, moça do interior, que lidava com uma realidade completamente diferente nos meus estágios, foi uma grande alegria conhecer de maneira tão concreta outra maneira de educar, ainda mais crianças tão pequeninas.
E o termo que ela usa "paixão de conhecer o mundo" ficou sendo para mim o jeito mais preciso de dizer da relação com o conhecimento que uma escola deveria ser capaz de despertar em seus alunos.

O tempo passou e eu nunca cheguei a trabalhar com educação infantil. Logo que tinha terminado o magistério, não me sentia nem um pouco segura para trabalhar com criança pequena, mesmo tendo certeza que eles aprendem "apesar" da gente. Para mim, esses momentos tão fundamentais (As Etapas Decisivas da Infância, de que fala a Françoise Dolto) tinham que ser vividos junto a professores mais experientes e não junto a uma moleca de 18 anos, sem maturidade, sem repertório...

Mas a vida dá voltas e quando já estava quase terminando a faculdade, o primeiro trabalho que fui fazer foi de educação - educação no trabalho, com cooperados de uma cooperativa cheia de ambigüidades, num intenso processo vivido com mais 7 pessoas maravilhosas e sob supervisão da Fátima Freire Dowbor. Daquelas experiências transformadoras, que certamente ecoa até hoje na minha prática e reflexão. E uma experiência que também me ajudou a refazer meus laços com a educação, com essa responsabilidade tão imensa de conduzir um processo junto com um grupo de pessoas (crianças ou não).

Depois que o Rodrigo nasceu, passei para o outro lado da escola - não mais como educadora, mas como mãe. O Rodrigo ficou em um berçário dos quatro meses até pouco mais de um ano. Quando ele começou a se mover, a compreender melhor as coisas, resolvemos mudá-lo de escola. O berçário em que ele estava tinha umas coisas - comuns em grande parte das escolas infantis, mas que mesmo assim - me incomodavam. As principais eram deixar que as crianças chamassem as professoras de tia e colocar Xuxa para as crianças ouvirem. O Edu diz que é chatice minha, mas eu lia essas coisas como indicadores de que se tratava de uma prática sem reflexão. E como raios prática sem reflexão poderia levar à paixão de conhecer o mundo?

Procuramos algumas escolas e, por sorte, encontramos uma bem pertinho, que tinha um espaço amplo e gostoso e profissionais bem preparados. Foi a melhor coisa que fizemos, mudar o para essa escola.

No ano passado, que o estava no G1, a gente já percebia como o gostava e se encantava com as coisas que ia aprendendo. Tão pequenininho e ele se envolvia com os temas, as histórias, as brincadeiras...E esse ano, em que ele já fala pelos cotovelos, dá para perceber como o experimentar nessa fase se liga à imitação, ao esforço de compreender as sensações do outro, os significados do que se diz e como se diz. Acho um barato.

Porque de um lado tem essa descoberta das sensações e sentimentos - e aí o trabalho nosso e da escola de ajudá-lo a nomear essas coisas - e tem a descoberta do próprio mundo - as músicas, brincadeiras, bichos, livros, linguagens. É tão bacana. Em vários momentos me pego boquiaberta diante desse olhar curioso que ele tem para a vida. É claro que é coisa de criança, mas para mim também é clara a influência que a escola e as pessoas que nela estão tem para a maneira com que isso se expressa. Olho pro e sinto que ele é livre, que ele já tem algumas ferramentas para se colocar no mundo: ele já está no mundo. E me leva pela mão com ele, para eu ensiná-lo, para ele me ensinar.

O que mais pode querer uma mãe?


Fonte da imagem: http://jardimdaalegria.blogspot.com/2007/03/educao-infantil-artes-pequenos-artistas.html

Fantasiada de mulher

"Por que rígida quanto como somos?
Bate em tecla mesma, mesmo sem querer
E bate, bate perna, procura, experimenta e não acha
Cadê?

Está ali atônita, o universo a sua volta e olha
e não encontra
Pensou um dia que queria um vestido vermelho
Talvez um sapato bem alto, para ver do alto

Mas não sabia direito, o sentimento esta este
Mas era outro
Vermelho na verdade pois queria ser mulher"
E não sabia (Joana Zatz, "Salto Alto, Altíssimo", em Tempo Oportuno)

Meu avô tinha uma expressão engraçada sempre que a gente colocava saia ou vestido. Com seu sotaque português - amenizado, mas nunca perdido em todos esses anos de Brasil - ele sorria e comentava: "Estás fantasiada de mulher?".

Como quase toda menina, quando eu era mais nova sonhava em ser como a minha mãe. Minha mãe é um mulherão - alta, loira, com mãos delicadas e unhas sempre feitas. E quando eu era pequena, ela adorava usar saias, vestidos, maquiagem... Eu sonhava crescer e ser como ela, um transbordamento de feminilidade.

Já começa que eu não sou nem alta, nem loira. Meus cabelos crespos por um longo tempo foram motivo de vergonha e, literal e metaforicamente, embaraço. Desde sempre tímida e propensa a me esconder, quando finalmente cresci não tinha muito do mulherão que gostaria de ser. Ao contrário: teve um tempo inclusive em que eu recusava essas formas de ser mulher - saia? salto? vestidos? Não. Eu descobriria uma maneira de ser mulher que não passasse pela aparência ou pelo menos não por esses artifícios mais evidentes.

O mundo gira e a lusitana roda. E hoje tenho a liberdade de gostar de saias, vestidos e maquiagens. De ser louca por sapatos. De ser louca por bolsas (embora não qualquer uma, só as da Denize). De não sair (e nem dormir) sem creme pro rosto e pras mãos. De ter uma necessaire onde tem muito mais coisa que o necessário. De andar de unhas feitas e vira e mexe pintadas de ameixa. E até de comprar - e ler - revista sobre roupa e moda.

Nada disso faz com que me sinta um mulherão, obviamente. Ao longo da vida fui entendendo que virar gente grande é muito mais que parecer gente grande. Embora óbvia, essa é uma verdade que demora a se inscrever no corpo.

Me senti um mulherão só de vez em quando nessa vida; e acho que em nenhuma delas estava fantasiada de mulher. Talvez meu avô é que esteja certo: talvez na maior parte do tempo a gente só vista a fantasia.

Mulher, mulher mesmo, com M maiúsculo, só quando - como ensinou a travesti Agrado, em Todo sobre mi madre - a gente se parece com o que sonhou para si mesma. E isso é muito mais difícil de fazer, embora eu goste de pensar que estou no caminho certo.

Fonte da imagem: hypedesire.blogtv.com.pt/.../Julho/sapato.jpg

20 abril, 2008

Rainy days and Sundays



E hoje foi a primeira vez que Rodrigo conseguiu dormir e comer direito (desde quarta-feira). Ele teve uma estomatite, encheu a boquinha de aftas e ele não conseguia comer, mamar e nem beber nada que não fosse água gelada ("água gelada di açucar, mamãe!").
A sorte é que conseguimos falar com a médica dele e começamos com o remédio homeopático logo quando estava começando a estourar; acho que foi a sorte porque aí a coisa foi mais moderada. Mesmo assim, ele só conseguiu comer na sexta à noite...E o pior é que o bichinho estava morto de fome, chegou a brigar comigo porque - super insensível - estava comendo uma maçã na frente dele.
De doer o coração.
Mas esses dias todos deram uma estragada no menino, né? Como a médica disse que tudo o que era quente e salgado machucava, ele viveu à base de gelatina e sorvete. E só tinha um lugar no mundo que incomodava menos: o colo da mãe, para assistir filmes (Monstros S.A.; Carros; Kiriku e os Pixar Shorts). Que canseira; decorei todas as falas dos filmes...
O importante é que passou. E hoje ele já estava todo contente, pulando por aí com suas novas meias-sapato do homem-aranha.

E essa história do homem-aranha, hein? Esses meninos são muito engraçados. O Rodrigo nunca viu filme, desenho do homem-aranha, nada. Aqui a TV é bem controlada e eu fujo de programação aberta porque me irrita muito a veiculação de propagandas dirigidas às crianças...Quer que eu compre algo? Tente ME convencer e não a uma criatura pequena. Mas o fato é que o Rô tinha herdado uma papete e um chinelo do homem-aranha do primo (e que também é louco pelo tal) e ultimamente só queria sair com eles.
Aí, no Natal, ganhou uma camiseta que tem o homem-aranha e o Wolverine.

Abre parênteses: eu adoro o Wolverine. Quando estava no colegial comprava gibis do X-Men só por causa dele e depois do filme, com o Hugh Jackman na pele da personagem, comecei a gostar ainda mais (por que será?). Fecha parênteses.

Bom, nem precisa dizer que todo dia ele quer pôr a camiseta do homem-aranha, né? Em dias frios, eu ofereço o agasalho do super-homem, mas ele não quer nem saber.
Terça-feira teve reunião de pais e fiquei sabendo que é geral o fenômeno - todos eles amam o homem-aranha.
E a professora do Rô ensinou o grupo a cantar "Homem-aranha, homem-aranha, nunca bate e só apanha" e disse que foi uma revelação! Eles amaram, ficaram encantados com a idéia do homem-aranha apanhar e não bater em ninguém...
Ela também ensinou todo mundo a soltar a teia. É engraçadíssimo!

Enfim. Deixa parar por aqui que tem um relatório de 400 páginas me esperando. Bom domingo a todos.

Imagem: http://antigravidade.wordpress.com/

19 abril, 2008

Mulher que disse tchau

Para Eduardo Galeano

À primeira vista:

Vinha pela rua, com seus olhos-faca fixos à frente. Não tinha pressa, tampouco vagar. Apenas andava.
Inexoravelmente à frente. E seu coração era uma carruagem chamuscada a cujos cavalos fora ordenado que
não parassem enquanto não estivessem longe, bem longe, ainda mais longe.


Espelho:
Ela ferira. De todas as agressões possíveis, sabia que aquela era a mais definitiva. Vinha pela rua, seus olhos-lâmina fixos à frente, cortando a madrugada. Ainda perto ele dormia. Ele que se orgulhava de nunca estar dormindo. Saíra à traição, na pior delas.

Imperdoável. E ainda assim ela vinha sem remorsos.


De olhos fechados:

Com seus olhos-espada ela iria subindo a rua. Através do frio afiado da seis da manhã, ela andaria sem pressa. Embora, ele sabia, ela também não andasse lentamente.

O que doía cada vez mais intensamente era que aquela rua comprida pela qual ela andaria sem parar, atravessaria o bairro, atravessaria o rio, atravessaria a cidade. Atravessando tantas coisas quanto as palavras que ela não dissera.
Ele estaria sempre ali; agora.

17 abril, 2008

As margens do feminino

Até que me provem o contrário, tenho para mim a Hilda Hilst como nossa poeta mais bem resolvida - e por "bem resolvida" entenda-se a capacidade de reunir conteúdo e forma sem deixar sobrar nada.

Faz um tempo já que pensava em escrever sobre ela. Mas hoje, depois de ler um texto que José Castello escreveu sobre ela e que se chama “Hilda Hilst ou a derrota das palavras”, é que veio essa urgência de escrever sobre ela agora.

Que as palavras são sempre insuficientes, a gente sabe. Tem coisa que é mesmo inominável: poderíamos dizer, escrever infinitos tomos e não seria suficiente para nomear – um encontro, um adeus, um filho nos braços, um carinho antes que se feche o caixão...Existem momentos em que tudo é tão maior que dizer é impossível.

Quem me conhece sabe: sofro de um profundo amor pelas palavras. Gosto da liberdade que elas me dão, gosto do esforço da pesquisa pela palavra exata, pelo lugar exato, gosto de como elas sabem, de sua textura.

E é por isso que gosto tanto da poesia da Hilda Hilst. Do jeito que ela arranja as palavras, transbordando o seu vazio, ensinando a palavra a ser outra, aprendendo com a palavra a ser outra.

Um dos poemas que mais me impressiona diz assim: Se te pareço noturna e imperfeita/ Olha-me de novo. Porque esta noite/Olhei-me a mim, como se tu me olhasses./E era como se a água/ Desejasse/ Escapar de sua casa que é o rio/ E deslizando apenas, nem tocar a margem. /Te olhei. E há tanto tempo/ Entendo que sou terra”. Trata-se de um pedido, para o amante, para o leitor, para que não se preocupe em conforma-la, em entende-la, pois seu poema é ele mesmo inominável e o que quer é escapar do leito, é transformar água em terra e terra em água. Transfiguração – e afinal também não é disso que é feita a poesia?

A força da palavra é imensa: “Se te pronuncio/ Retomo um Paraíso/ onde a luz se faz dor/ E gelo a claridade”.

Não há, de maneira alguma uma derrota das palavras. Porque se aceitarmos que ela pode ser derrotada, nada mais nos resta – nem consolo, nem colo, nem a possibilidade de comunicação.

***

Tinha começado a escrever esse texto há algum tempo. Depois, achando que a poesia da Hilda merecia um cuidado maior, me impus a tarefa de reler seus livros para ilustrar melhor esses pontos – aí, já sabem: fase de terminar dissertação, festas de fim de ano, e acabei esquecendo ou adiando.

Mas hoje, ao abrir as notícias e descobrir sua morte, não é possível deixar passar em branco o vazio que ela deixa na nossa poesia. Sem a Hilda Hilst, todos nós ficamos mais silenciosos, mais pobres mesmos de imagens e palavras que tão bem tateavam – e nesse tatear construíam e ampliavam – as margens de estar vivo. Então, essa mensagem fica como lamento, mas ao mesmo tempo como a reafirmação de que, com sua poesia, seus contos, suas novelas “pornográficas”, Hilda tornou nosso mundo mais habitável, mais humano. Essa mensagem inacabada fica como o reconhecimento do imenso poder criador da palavra, de que Hilda Hilst nos deixa testemunho.

* Queridos, Rodrigo está doente e precisando da mãe 24 horas por dia. Por isso hoje vamos de texto requentado, só um bocadinho editado, escrito por ocasião da morte da Hilda Hilst (e lá se foram 4 anos...).

** E o engraçado é que se tivessse me lembrado deste texto antes, teria postado no lugar daquele sobre Cem Anos de Solidão já que este tem tudo a ver com o próprio nome do blog.

15 abril, 2008

Estender a mão

Ainda que o Caio Fernando Abreu tenha sido tantas vezes lido e relido, e em momentos tão diferentes da minha vida, mudou bastante o modo como o leio.
Antes, era uma leitura furiosa, devassadora, atropelo de palavras quase sufocante (a voz da Ana Lúcia na cozinha que Vinicius, Petronio e eu dividíamos, lendo "Sem Ana, Blues", sem pausas-sem respirar-sem nos deixar respirar). Já agora é deleite que em vez de rasgar, aveluda por dentro.
Ao longo da convivência com ele, foi baixando a poeira da intensidade e da dor e pôde emergir o que nele (também) é esperança e fé.

Teve um trecho de um dos contos dos Dragões que me perseguiu por muito tempo:
"Quero mais um uísque, outra carreira. Tudo aos poucos vira dia e a vida - ah, a vida, pode ser medo e mel quando você se entrega e vê, mesmo de longe.
Não, não quero nem preciso nada se você me tocar. Estendo a mão.
Depois suspiro, gelado. E te abandono".

Fazia tempo que eu não pensava neste trecho e lembrei dele na semana passada, relendo Estranhos Estrangeiros:

(...) Tirou a roupa aos poucos. Completamente nu, começou a girar de braços abertos no meio da sala. Remoto, então, como se viesse do apartamento ao lado ou de baixo, de cima - talvez o de Lavínia, a lasciva, lembrou querendo rir, mas não conseguiu -, o som da campainha cortou o movimento. Uma voz que chega de longe. Navalha, alfanje, cimitarra. A cabeça ainda girava no meio da tontura quando entreabriu a porta para ver Santiago parado no corredor, mãos nos bolsos.
- Resolveu aceitar aquele chá, Santiago?
- Eu não me chamo Santiago - ele disse.
Não afastou o corpo para que o outro entrasse. Mas ele entrou. Fechou a porta às suas costas. Estendeu as duas mãos. Tocou-o nos ombros. De frente.
- Eu também não me chamo Pérsio. Portanto não nos conhecemos. O que é que você quer?
Ele sorriu. Estendeu as mãos, tocou-o também. Vontade de pedir silêncio. Porque não seria necessária mais nenhuma palavra um segundo antes ou depois de dizerem ao mesmo tempo:
- Quero ficar com você.
Provaram um do outro no colo da manhã.
E viram que isso era bom".

E pensando nos dois trechos juntos, percebi a importância do estender a mão, desse esforço para tocar o outro, para também ser tocado. E pensei também se não é essa passagem, essa travessia de nós mesmos ao outro pela ponte das mãos, que pode nos salvar.

O primeiro livro de contos do Caio chamava Inventário do Irremediável. Mas no momento de republicar o livro, ele deu um passo atrás e pôs um hífen no título: Inventário do ir-remediável. E com esse traço-ponte ensinou que as partidas têm volta, as ações têm perdão, as portas fechadas podem ser reabertas. Se você estender a mão.

14 abril, 2008

Recordar é viver? (ou Flor de Obsessão)

Coincidentemente ou não, esta noite sonhei com formigas. Montes delas, saindo por debaixo dos tapetes da casa. Ponho em dúvida a coincidência porque tenho pensado em como entabular conversa sobre o tema “cabeludo” que o Maurice me arrumou. E aí, tendo sonhado com formigas, lembrei-me de um livro que o Maurice nunca vai ler: Cem anos de solidão.

***

Contando os cem anos da saga familiar dos Buendía, o livro é a narrativa da tragédia dos destinos escritos. Todos os personagens da família estão marcados, de algum modo, por uma espécie de incomunicabilidade que torna inescapável a sua solidão. Ao fim do livro, vejam só que bela imagem, o desfecho se cumpre ao mesmo tempo em que o último da linhagem está lendo o livro no qual um cigano escrevera o destino inteiro dos Buendía. E a fatalidade se anuncia no momento no qual o futuro se realiza no presente, sem mais possibilidades de mudanças. É esse o momento em que a história inteira da família é banida da memória dos homens.

***

As imagens são pefeitas para pensar sobre o que o Maurice pediu: solidão e finitude, fatalidade e inelutabilidade.

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O Maurice costuma dizer que eu leio mundo pelo viés da esperança; que, não encontrando razões para acreditar, eu as invento. Para mim, os encontros sempre fazem valer a vida e recriam um mundo no qual a vida é graça – no sentido mais epifânico do termo.

***

...Provaram um do outro no colo da manhã. E viram que isso era bom”. (Caio Fernando Abreu).

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Voltando ao Garcia Marquez, a família Buendía inteira está condenada pela crença de que a solidão e a tragédia são suas condições essenciais. A vida, assim, torna-se simplesmente espera de que a dor se cumpra. Nenhum deles consegue amar de fato porque nenhum deles consegue se vincular ao outro – estão todos fadados à miséria de sua solidão e o estão por já não crerem na superação desta condição.

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Somos homens, finitos, mortais, de algum modo incomunicáveis. Tal é a tragédia de nossa condição. No entanto, temos a nosso alcance a possibilidade de criar maneiras de tentar superar a finitude, a mortalidade e a incomunicabilidade: o desejo, a arte, amores, amizade...Momentos de encontro no qual alguma grandeza relampeja em nossa condição. Foi o Maurice mesmo quem me ensinou: grandeza e miséria...

***

Os Buendía, incapazes de se pensarem para além dos vaticínios repetidos por cem anos, se extinguem da memória dos homens no instante em que permitem que a tragédia se realize. Mas para impedir que ela se realizasse, seria preciso que algum deles tivesse a coragem de Sísifo, de recusar sua condição, e instaurasse neste ato criador, uma outra forma de estar vivo.

***

Para conquistarmos o direito de pertencer à memória dos homens, é preciso estar entre os homens, viver entre eles. Admitir o encontro como possibilidade porque é dos encontros que brota aquilo capaz de entreabrir as portas do tempo e do espaço, entreabrir as portas da solidão e da finitude. E é preciso dizer que não me refiro apenas ao amor erótico, mas a todas as formas de encontro. Também falaria de amizade, mas o Mauricio pode falar disso muito melhor do que eu.

***

Então, para não ocupar muito mais do espaço que o Maurice tão generosamente me abriu, é mais ou menos isso: o fato de sermos sós, de sermos filhos do tempo, não nos rouba, não nos deve roubar, a grandeza do encontros. Mesmo que estes sejam fugazes, mesmo que não sejam eternos, mesmo que sejam as pequenas epifanias. A vida se alimenta dela mesma e para estar vivo é preciso lutar – com nossa condição, com nossos parcos instrumentos de comunicação (“Lutar com palavras é a luta mais vã”, Drummond). Fugir dos cem anos de solidão reinventando vaticínios. Eu, por exemplo, gostaria de pôr em palavras os fios de beleza que escorrem nos momentos de encontro. Desejando que eles teçam para nós outro destino, onde caibam felicidades, alegrias, encontros. Ou pelo menos sua possibilidade.

***

O amor translada ao corpo os atributos da alma e esta cessa de ser uma prisão. (...) O amor mistura a terra ao céu: é a grande subversão. Toda vez que o amante diz: “eu te amo para sempre”, ele transfere a uma criatura efêmera e cambiante dois atributos divinos: a imortalidade e a imutabilidade. A contradição é, na verdade, trágica: nossa carne se corrompe, nossos dias estão contados. Somos filhos do tempo e ninguém escapa da morte. Contudo, amamos, com o corpo e com a alma, de corpo e alma. (...) Mas o amor é a resposta que o homem encontrou para olhar de frente a morte. Pelo amor roubamos ao tempo, que nos mata, instantes que ora transformamos em paraíso, ora em inferno. Para além da felicidade ou da infelicidade, o amor é, sobretudo, intensidade. Ele não nos presenteia com a eternidade, mas com a vivacidade; o momento durante o qual se entreabrem as portas do tempo e do espaço. No amor tudo é dois, e tudo aspira a ser um”, (Octavio Paz).

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É necessário dizer ainda que este texto é dedicado ao Edu, com quem o encontro sempre alarga as margens de estar viva.


*Essa foi a minha primeira tentativa de escrever usando o que eu achava que cabia numa "linguagem de blog". Tinha sido um pedido feito pelo Maurice e não tive como recusar. É um texto antigo.
** O Maurice não apenas decidiu ler Cem Anos de Solidão, como ainda mudou de idéia sobre a língua espanhola e comprou uma edição em espanhol.

Fita de cetim

Fazia tempo que eu tinha começado a montar esse blog. Mas, no meio de tanta agitação dos últimos tempos, me pareceu que ia ser mais um peso, mais uma coisa reclamando obrigação dentro de mim.
Mas como ultimamente voltei a escrever mensagens coletivas, achei que valia a pena a experiência de escrever aqui: escrever é desde há muito obrigação e se é para escrever nesses impulsos de me comunicar com quem gosto, que pelo menos as pessoas tenham a liberdade de decidir se querem ou não participar dessa história.
Então, corto a fita de cetim e inauguro esse espaço.