14 julho, 2008

Recuperação da Delicadeza

Tanta coisa para dividir, mas hoje não...

Hoje só a voz no Ney Matogrosso, numa canção que aprendi primeiro com o Caio Fernando Abreu ("Depois daquele agosto", em Ovelhas Negras):


Soneto (Chico Buarque)

Por que me descobriste no abandono
Com que tortura me arrancaste um beijo
Por que me incendiaste de desejo
Quando eu estava bem, morta de sono

Com que mentira abriste meu segredo
De que romance antigo me roubaste
Com que raio de luz me iluminaste
Quando eu estava bem, morta de medo

Por que não me deixaste adormecida
E me indicaste o mar, com que navio
E me deixaste só, com que saída

Por que desceste ao meu porão sombrio
Com que direito me ensinaste a vida
Quando eu estava bem, morta de frio


Acho que os contos do Caio de que mais gosto são meio parecidos entre si: "Aqueles dois" (Morangos Mofados), "Depois daquele agosto" (Ovelhas Negras) e "Mel e Girassóis" (Os Dragões Não Conhecem o Paraíso)...E como bem me lembrou o Maurice, a novela "Pela Noite" que aparece em Estranhos Estrangeiros foi publicada primeiro no Triângulo das Águas, um livro cheio de referências astrológicas e que é uma espécie de triângulo das bermudas dos livros: os exemplares simplesmente somem! O meu sumiu e o do Maurice também! O jeito vai ser comprar a edição da LP&M, que é feinha, mas pelo menos ainda existe...

Em comum, o que estes contos têm é serem histórias de encontro. Encontros que acontecem depois de um longo caminho percorrido, em que cada um sofreu e doeu e dilacerou e encontrou forças para continuar mesmo que com as mãos gastas e a alma puída. São encontros que acontecem entre pessoas que passaram a se julgar ou incapazes para o amor ou pouco dignas dele. E então se encontram e se ensinam a viver ("o amor é sobretudo intensidade; não nos presenteia com a eternidade, mas com a vivacidade", Octavio Paz).

E aí lembrei do Drummond de "Campo de Flores", que eu coloquei aqui um dia, mas sem muitas explicações porque foi bem no meio da escrita da qualificação: "Mas, porque me tocou um amor crepuscular,/há que amar diferente. De uma grave paciência/ ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia/ tenha dilacerado a melhor doação".

O que sempre me seduziu neste poema - além da lembrança da voz sexy do meu professor de Brasileira I quando o recitava - era este esforço de recuperação da delicadeza que se tornava possível devido a um encontro. Sabe? Quando a gente encontra alguém que vale tanto a pena que as mesmas asperezas que protegem passam a incomodar? Quando a ironia cotidiana parece faca afiada demais? E então a gente encontra força e coragem para amansar as palavras, as mãos, a voz e todo o corpo?

"Hoje tenho um amor e me faço espaçoso/ para arrecadar as alfaias de muitos amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,/ e ao vê-los amorosos e transidos em torno,/ o sagrado terror converto em jubilação".

Abrem-se espaços insuspeitados dentro da gente - "se você se entrega e vê, mesmo de longe"(Caio também, em algum conto do Inventário do Ir-remediável). E nesse breve instante em que as possibilidades cintilam, a gente pode aprender a graça de dizer "sim". De se colocar fora do tempo, de não ter medo dos clichês (- "Você parece mel. - E você parece um girassol".), de fazer borrar os limites do que entendemos por nós mesmos...

São todas histórias que doem um pouco. Mas são lindas e cheias de esperança. Precisa mais?

* Eu tinha ontem publicado um pedaço deste post, só com a música. E hoje resolvi continuar, por isso o trouxe para cá. O fato é que de vez em quando eu mexo nos posts, mas não aviso e nem anoto que ele sofreu transformações...É que às vezes eu sinto necessidade de mudar para deixar o texto melhor ou mais preciso; muitas vezes nem é nada que mude o sentido das coisas: é só uma espécie de neura mesmo, porque se não mudo, a frase fica lá,na minha cabeça), incomodando-incomodando até eu vir salvá-la do mau português.

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