04 agosto, 2009

I hate to say...

Estava lendo a Susan Sontag, A doença como metáfora e AIDS como metáfora (Companhia de Bolso,2007. Tradução: Rubens Figueiredo/Paulo Henrique Brito) . Comecei naquele dia em que Rodrigo dormiu na Livraria Cultura e, conforme lia, me impressionava como o ensaio é vigoroso e pode nos aproximar, por vezes com mais clareza, de questões que estão no cerne da experiência do presente.

Se isso era verdade no primeiro ensaio, escrito em 1976, logo após ela ter se descoberto com câncer, quando cheguei ao "AIDS como metáfora" (que é de 1986), as coisas foram ficando assustadoramente próximas. Em parte, é claro, porque as observações que ela faz dialogam com a percepção que eu tinha, ainda que fosse criança, a respeito da "novidade" introduzida pela AIDS. Mas principalmente porque, num ensaio quase despretencioso, ela apanha tensões e transformações centrais para compreendermos o que nos acontece hoje e ilumina muito tanto sobre o funcionamento de todo o dia das relações sociais quanto sobre as significações e reações aos surtos de gripes atípicas.

Em alguns trechos, sua análise me fez lembrar o Zizek de Bem vindos ao deserto do real. Embora analisando eventos muito distintos - ela, a AIDS; ele, o 11 de setembro - como focam seu olhar sobre a sociedade americana, parece que apanham mecanismos muito semelhantes. Vejam lá:

"[...] A vontade de fazer previsões pessimistas reflete a necessidade de dominar o medo do que é considerado incontrolável. Exprime também uma cumplicidade imaginativa com o desastre. A sensação de mal-estar ou fracasso cultural dá origem à vontade de começar do zero, de fazer tábula rasa. Ninguém quer uma peste, é claro. Mas é bem verdade que seria uma oportunidade de começar algo novo. E começar algo novo é bem moderno, e bem americano, também.
É possível que a AIDS esteja tendo o efeito de nos acostumar ainda mais à idéia da destruição global, uma perspectiva à qual já fomos acostumados pelos armamentos nucleares. Quanto maior a inflação da retórica apocalíptica, mais irreal se torna a perspectiva do apocalipse. Eis uma situação que se repete constantemente no mundo moderno: o apocalipse aproxima-se... e não chega a acontecer. E continua a aproximar-se. Pelo visto, estamos sofrendo de um dos tipos de apocalipse moderno. Temos um que não está acontecendo, cujo resultado permanece suspenso: os mísseis que descrevem órbitas em torno da Terra, com uma carga nuclear capaz de destruir todas as formas de vida sobre a Terra várias vezes sucessivamente, e que (até agora) não dispararam. E temos ainda aqueles que estão acontecendo, e no entanto não tiveram (até agora) as consequências mais temíveis - como a dívida astronômica do Terceiro Mundo, a superpopulação, os desastres ecológicos; e também os que acontecem e depois (segundo nos dizem) não aconteceram - com o o colapso da bolsa de valores de outubro de 1987, que foi um crack, como o de outubro de 1929, e não foi. O apocalipse agora virou uma novela: não "Apocalipse agora", mas "Apocalipse de agora em diante". O apocalipse passou a ser um evento que está e não está acontecendo. Talvez alguns dos eventos mais temidos, como os danos irreversíveis ao meio ambiente, já tenham acontecido. Mas ainda não sabemos, porque os padrões mudaram. Ou porque ainda não conhecemos os índices apropriados para medir a extensão da catástrofe. Ou simplesmente por se tratar de uma catástrofe em câmara lenta. Ou que dá a impressão de ser em câmara lenta, porque sabemos que está acontecendo, podemos prevê-la; e agora temos que esperar que ela aconteça, para que venha a se concretizar aquilo que julgamos saber.)", (p.145-6)

Susan Sontag também apanha as condições para que a AIDS seja usada eficazmente para atualizar a metáfora da "peste", numa formulação que, para mim (que venho lidando com a noção foucaltiana de biopolítica), é muito precisa: "[...] A idéia de que a AIDS vem castigar comportamentos divergentes e a de que ela ameaça os inocentes não se contradizem em absoluto. Tal é o poder, a eficácia extraordinária da metáfora da peste: ela permite que uma doença seja encarada ao mesmo tempo como um castigo merecido por um grupo de "outros" vulneráveis e como uma doença que potencialmente ameaça a todos. [...] Mais do que o câncer, e de modo semelhante à sífilis, a AIDS parece ter o poder de alimentar fantasias sinistras a respeito de uma doença que assinala vulnerabilidades individuais tanto quanto sociais. O vírus invade o organismo; a doença (ou, na versão mais recente, o medo da doença) invade toda a sociedade" (p. 127-8). Mais atual, impossível.

Igualmente fecunda é a análise que a autora faz a respeito das análises e projeções estatísticas e seus efeitos:

"A vida moderna nos habitua a conviver com a consciência intermitente de catástrofes monstruosas, impensáveis - porém, conforme nos afirmam, bem prováveis. Cada acontecimento importante tem seu duplo, além de sua representação enquanto imagem (uma duplicação já antiga da realidade, que começou com a invenção da câmara fotográfica, em 1839). Ao lado da simulação fotográfica ou eletrônica dos eventos, temos também o cálculo de suas consequências eventuais. A realidade bifurcou-se, na coisa real e em sua versão alternativa, duas vezes. Temos o evento e sua imagem. E temos o evento e sua projeção.
[...] A capacidade de avaliar o modo pelo qual as coisas evoluirão no futuro é o subproduto inevitável de uma compreensão mais sofisticada (quantificável, testável) dos processos, tanto sociais quanto científicos. A capacidade de projetar eventos futuros com certo grau de precisão ampliou a própria definição de poder, por ser ampla fonte de instruções a respeito da maneira de se lidar com o presente. Mas, na verdade, a capacidade de antever o futuro, antes associada à noção de progresso linear, transformou-se - com a aquisição de um volume de conhecimentos maior do que se poderia imaginar - numa visão da catástrofe. Cada processo é uma perspectiva que aponta para uma previsão apoiada em estatísticas. [...] Tudo na história ou na natureza, capaz de ser encarado como um processo de mudança constante, pode ser visto como algo que caminha em direção a uma catástrofe. (Ou o insuficiente, cada vez menor - decréscimo, declínio, entropia -, ou o excessivo, maior do que podemos enfrentar ou absorver - crescimento incontrolável.). A maioria dos pronunciamentos dos peritos a respeito do futuro contribui para essa nova apreensão dupla da realidade - que vem somar-se à duplicidade, à qual já nos habituamos, criada pela abrangente duplicação em imagens de todas as coisas. Temos o evento que está acontecendo agora, e temos também aquilo que é pressagiado por ele: o desastre iminente, mas não real ainda, nem completamente apreensível" (p.146-7).

Nesse modelo de conhecimento - estatístico - que altera a forma de colocar em relação passado, presente e futuro e também modifica a relação entre os elementos que são definidos como "variáveis", a duplicidade está na distância que vai das probabilidades ao acontecimento. A distribuição estatística das probabilidades é lida como duplicação da estrutura social - e dessa maneira nos é possível compreender a importância central que adquirem nos discursos, termos que estão ligados ao cálculo das probabilidades sociais, "empregabilidade', "vulnerabilidade". A ambiguidade da palavra "chance", ao mesmo tempo "oportunidade" e "probabilidade", dá notícia da importância que a idéia de jogo adquiriu em nossa sociedade. É também a ambiguidade que se expressa na idéia de que o merecimento se liga tanto ao mérito das ações, quanto à força com que se "pede ao universo"... Mas já estou misturando as estações.

Pra terminar esse post muito longo (e que talvez ainda acabe indo parar também no Margens)., vou destacar apenas mais um ponto da análise de Susan Sontag: sua observação de que o aspecto novo na utilização da AIDS como atualização da metáfora da "peste" se relaciona ao fato de ser um vírus reconhecidamente portador de duas características - a latência (sendo possível ser portador, sem estar doente) e a mutação.

[...] "Mais promissor ainda do que a idéia de latência é o potencial da AIDS como metáfora da contaminação e da mutação. O câncer continua sendo usado como metáfora para referir-se a coisas temíveis ou condenáveis, muito embora a doença seja menos temida do que antes. Se a AIDS terminar sendo utilizada para fins semelhantes, será menos por ser ela invasora (uma característica que tem em comum com o câncer), ou mesmo por ser infecciosa, mas por causa da imagística específica que se desenvolveu em torno do vírus.
A virologia fornece todo um novo repertório de metáforas medicinais que não dependem da AIDS em particular, mas que assim mesmo reforçam a mitologia sobre ela. Foi muito antes da AIDS que William Burroughs afirmou, em tom de oráculo, e Laurie Anderson repetiu, que a 'linguagem é um vírus'. E a explicação viral é invocada cada vez mais. Até recentemente, a maioria das infecções virais conhecidas manifestava seus efeitos rapidamente, como a raiva e a gripe. Mas coma expansão da categoria dos vírus de ação lenta, a lista está aumentando. Muitas doenças progressivas e invariavelmente fatais do sistema nervoso central, algumas doenças degenerativas do cérebro capazes de se manifestar na velhice e as chamadas doenças de auto-imunização agora está sendo encaradas como possivelmente causadas por vírus lentos. [...] O vírus não é apenas um agente da infecção, da contaminação. Ele transporta "informação" genética, ele é capaz de transformar uma célula. E em muitos casos o próprio vírus evolui. [...]
Talvez não seja de surpreender o fato de que o mais novo fator de transformação do mundo moderno, a informática, esteja utilizando metáforas extraídas de nossa mais recente doença transformadora. Também não admora que as descrições do processo de infecção viral agora utilizem a linguagem da era do computador, como quando se diz que o vírus produz "cópias de si próprio". Além das descrições mecanicistas, a maneira como os vírus são caracterizados de modo animista - como uma ameaça à espreita, mutável, furtiva, biologicamente inovadora - reforça a idéia de que uma doença pode ser algo engenhoso, imprevisível, inaudito" (p.131-2).

Quando comento a atualidade do ensaio de S. Sontag, não quero sugerir que sua análise sobre a AIDS seja imediatamente "aplicável" ao caso da gripe suína, mesmo porque entre os quadros provocados pela AIDS e os provocados pela gripe, há uma enorme distância. Minha observação é mais em relação à atualidade dos mecanismos de controle e segurança que produzem a duplicidade a que a autora se refere em relação às epidemias e pandemias: ainda que se trate, em princípio, de uma situação atípica, cujo modelo de compreensão é o "surto" ou a "crise", os eixos que a gripe tematiza - controle epidêmico, identificação dos casos e segregação dos doentes, vacinas, identificação da distribuição das vulnerabilidades, restrição da circulação - são eixos fundamentais para a compreensão daquilo que conforma nossa experiência do presente.

A frase final do livro de S. Sontag criticando as métaforas militares com que se descreve a doença e, de outro lado, com que se procura mobilizar a sociedade para combatê-la, também continua atualíssimo (e é mais um ponto de contato com Zizek):

"[...] A metáfora que estou mais interessada em aposentar, mais ainda depois do surgimento da AIDS, é a metáfora militar. Sua utilização inversa - o modelo médico do bem-estar público - provavelmente tem consequências ainda mais perigosas e extensas, pois ele não apenas fornece uma justificativa persuasiva para o autoritarismo, como também aponta implicitamente para a necessidade da repressão violenta por parte do Estado (equivalente à remoção cirúrgica ou ao controle químico das partes indesejáveis pu "doentes" do organismo político). Mas o efeito das imagens militares sobre a conceituação da doença e da saúde está longe de ser irrelevante. Elas provocam uma mobilização excessiva, uma representação exagerada, e dão uma contribuição de peso para o processo de excomunhão e estigmatização do doente.
A idéia de 'medicina total" é tão indesejável quanto a de guerra "total". [...] Não estamos sendo invadidos. O corpo não é um campo de batalha. Os doentes não são baixas inevitáveis, nem tampouco são inimigos. Nós - a medicina, a sociedade - não estamos autorizados a combater por todo e qualquer meio... Em relação a essa metáfora, a metáfora militar, eu diria, parafraseando Lucrécio: que a guardem os guerreiros", (p.150-1).


Para ler ouvindo "I hate to say I told you so", do The Hives.



* Este post é dedicado ao James.

3 comentários:

  1. Êita, mas que cabeça boa a tua! Taí tudo que eu queria falar, inclusive da latência psicólogica da doença, do peso do estigma, etc, e tal, taí! Inclusive a apropriação dos termos militares, isolar, contenção dos focos, etc. e tal... Acabei de descobrir que não estou com o Influeza A e nem o H1N1, mas continuo fulo com a estigmatização toda... (sou uma minoria vulnerável estigmatizada e prejudicada pela violência causada por políticas de Estado, vou pedir um milhão à Viúva que nem o Ziraldo, rsrsrsrs!)

    E nem vem com culpas, encontrar você na quinta, depois de tanto tempo, já valeria qualquer bichinho... Além disso, tava espirrando desde quinta à tarde...

    Beijo,

    James

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  2. James, cabeça boa é a da Susan Sontag! Eu dei sorte de estar lendo o livro nesse momento... Se eu lesse antes, talvez não fizesse tanto sentido, né?
    E hoje de manhã, sabe que me peguei pensando que talvez seja mesmo nas políticas de saúde que essa face biopolítica do bipoder se torna mais visível. Talvez porque o modelo de bem-estar está ligado ao conjunto de saber-poder possibilitado tanto pela estatística quanto pela vacinação, mas o fato é que, como por exemplo nas recentes leis de "microgestão' do governo de São Paulo sobre o fumo, alimentos nas escolas ou mesmo contra o quentão e o vinho quente, agora a gente minorias que são criadas pela própria concepção de saúde e bem-estar. Fumantes, pessoas acima do peso, sedentários... Somos todos, de alguma forma, desviantes.
    Beijos!

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