29 outubro, 2009

Sina é palavra feminina?


Vai daí que tenho pensado uma porção de coisas, provavelmente por estar pensando no que fazer daqui pra frente (e, talvez mais importante, em como fazê-lo), mas também devido aos trabalhos que ando fazendo e às aulas que estou dando, de Sociologia do Trabalho. Ou seja, sincronizaram-se vários fatores e cá estou eu, de novo, pensando bastante sobre o que é ser mulher e, mais central, que raio de mulher quero ser.

Vira e mexe volto aos versos finais de um poema da Adélia Prado, né? "Mulher é desdobrável/ Eu sou". São versos que ressoam muito dentro de mim, me interpelam mesmo (talvez quase tanto quanto o trecho de Amor e Erotismo: a Dupla Chama, do Octavio Paz, em que ele define o amor como intensidade, essa espécie de burrice bonita de perder de vista o fato de sermos feitos de carne e, portanto, mortais).

Os versos me tocam também porque foram escritos como parte de um diálogo com outros versos que também me tocam muito: a sentença do anjo torto, que sai da sombra pra vaticinar, "[...] Vai, Carlos! ser gauche na vida". É o primeiro verso do Poema de Sete Faces (por sua vez, o poema que abre o livro Sentimento do Mundo), e fala bastante dessa condição da poesia no mundo moderno, desse descompasso de nascer poeta em um mundo prático, lotado de desejos e pernas, em que as rimas não representam nenhuma solução, (vale lembrar, o próprio verso de Drummond é diálogo com "O Albatroz", de Baudelaire, que é também um retrato eloquente da inaptidão do poeta à vida ao rés-do-chão).

Quando Adélia Prado escreve o poema "Com Licença Poética", portanto, está dirigindo-se à Drummond, mas marcando uma diferença fundamental em sua condição: mais que poeta, é mulher e, assim, sujeita a sinas diversas. Seu anjo anunciador, por exemplo, não é torto, nem vive à sombra:

Quando nasci um anjo esbelto desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira.

A anunciação do anjo traz um vaticínio estranho, que é menos de condição (ser gauche na vida) do que de missão: carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher, esta espécie ainda envergonhada.

Falando de mulher como uma espécie, a poeta marca a radicalidade da diferença com os homens. O interessante é que nesses versos ela escapa da ideia de essência feminina, ao ligar o peso da tarefa que lhe foi confiada pelo anjo menos à fraqueza de "sexo frágil" do que ao fato das mulheres estarem ainda envergonhadas - de sua própria força ou de chamar a atenção, portando uma bandeira.

Na continuação do poema, a poeta, mineira como Drummond, parece recusar a possibilidade de escapar mineiramente de suas afirmações (como Drummond faz em seu último verso, desconversando ao atribuir à lua e ao conhaque o tom confessional do poema):

Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza
e ora sim, ora não, creio em parto sem dor.

Suas observações sobre si mesma, em primeira pessoa (muito diferente, portanto, do evasivo "homem de óculos e bigode" com que Drummond descreve a si mesmo), referem-se ao universo feminino, falando de aparência (e sua relação com o casamento), de gostos, e da desconfiança em relação a uma dor que é essencialmente feminina: a dor do parto.

Dizendo que ora sim, ora não, acredita em parto sem dor, a poeta fala do evento fisiológico do parto - momento que é intensamente corpo e carne-, mas também parece colocar em xeque a "dor e a delícia" de ser mulher. Muito diferente do significado que a dor assume em Drummond como, por exemplo, em um poema como "Relógio do Rosário", em que o poeta observa que "[...] nada é de natureza assim tão casta/ que não macule ou perca sua essência/ ao contato furioso da existência" para concluir que "vivendo/ estamos para doer/ estamos doendo" (Claro Enigma).

À tudo que em Drummond é essência e condição, Adélia parece opor flexibilidade e fluidez: a dor do parto, afinal, é passageira - sendo verdadeira ou não; mesmo supostamente feia, ela diz que não é tão feia que não possa casar... Nenhuma das identidades ou crenças cristaliza, e isso traz liberdade à poeta.

Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos - dor não é amargura.

Embora tenha sido destinada a carregar bandeira, aqui a poeta afirma que cumpre a sina ao escrever o que sente, nesse movimento inaugurando linhagens e reinos. Mais uma vez à diferença de Drummond, que fala de sua condição de gauche filiando-se de certa maneira à linhagem dos poetas modernos, Adélia Prado recupera o poder criador da palavra, que inventa filiações, não apenas em direção ao passado, mas também ao futuro. E a poeta conclui o verso novamente falando de dor: "dor não é amargura". Se às mulheres é dado a possibilidade de, doendo, colocar um filho no mundo, a elas também parece estar dada a possibilidade de significar a dor de outro modo - não ligando-a à essência da condição humana, mas ao ato gerador, que se lança na direção do futuro: que âncora mais firme na direção do futuro que um filho?

Adélia ensina: dor não é amargura; pode ser libertadora, pode ser criadora, pode sobretudo ser um momento, e não companhia constante como nos versos latejantes do Drummond.

Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô.

Nos versos que vão levando o poema ao final, a poeta mais uma vez foge à tristeza como destino: sua tristeza não tem pedigree, não é essencial nem inescapável. O que lhe parece essencial é a vontade de alegria, herança de uma genealogia exagerada. E vale notar que ela não fala da alegria em si mesma, mas do impulso, da vontade de alegria - a poeta, sem dúvida, é mulher de gostos e desejos. Por isso mesmo, escapa com ferocidade de qualquer prisão:

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Nem venha anjo nenhum me lançar maldição, que mulher é desdobrável! Ao invés da evasiva com a qual Drummond encerra seu poema, atribuindo sua comoção à lua e ao conhaque, escapando menos ao destino do que à expressão de si mesmo, Adélia Prado encerra seu poema com a afirmação da possibilidade de fugir ao destino, numa radical afirmação de si mesma: "Eu sou".

Essa afirmação da condição feminina como possibilidade de transbordamento dos limites me toca fundo. Só não sei se é por eu ser mulher ou por, como Drummond, saber-me gauche, inconforme ao meu próprio tempo e, por isso mesmo, seduzível por uma possibilidade de escapar. Em outras palavras, não sei se sou desdobrável por ser mulher ou pela ferocidade com que procuro ser aquilo que não sou. Acho que não é por essência: é escolha.

Imagem: daqui.

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