22 abril, 2012

talho

a semana passa rápido e o leite que ia ser iogurte se recusa a ferver: erra em soro e azedo. o inesperado acorda atavismos e decido fazer doce de leite. não sem antes consultar a minha avó - na casa dela, o leite direto da fazenda da D. Helena a borbulhar longamente, espalhando pela cozinha o cheiro doce da espuma assanhada na fervura. ela me manda colocar uma xícara de açúcar e me explica que, se eu quiser que fique pronto mais rápido, melhor é tirar o soro. eu agradeço, desligo o telefone e logo vou tratar de transformar o que estava coalhado em grãozinhos de doçura: sem pressa, misturo açúcar, acendo o fogo, e me distraio com o almoço, com as bolachinhas de chocolate, com o bolo de fubá. uma, duas, três horas pro que era azedume coagular em brandura. o branco amarelando, amarelando, até o marrom característico. o cheiro bom perfumando o domingo cinzinha e úmido, fazendo a alegria do filho pequeno a roubar uma colherada da compota recém-feita.
me talhou o leite, mas o que era catástrofe cotidiana virou festa: guiando a minha mão, os hábitos e habilidades da minha avó e antes dela a tia-avó e antes dela... uma, duas, três gerações pro que era necessidade transfigurar em capricho. no talhar do leite, o talho de uma linhagem.

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