para Veronika
Era nas tardes de domingo, aquelas tardes quentes e densas,
o céu azul sem nuvens esticando sobre o tempo sua colcha de infinito. Era
nessas tardes de domingo que doía mais. Doía tanto e tão fundo que às vezes era
difícil caminhar. Mais um domingo em que acordava sem ele, que descia as
escadas sem ele, em que era ela mesma a colocar na cafeteira o filtro, o pó, a
água. E ele fazia falta em cada brecha entre os gestos, de modo que ao final de
meia hora estava já exausta.
No quintal, o cachorro dormindo atento, fazendo menção de se
aproximar ao mínimo sinal de atenção. Já o filho, desde sempre silencioso, sem
vontade alguma de chegar perto. Pra ele também doía, ainda que ele cerrasse o
queixo bem forte e represasse a enxurrada de lágrimas no fundo da pupila negra.
Naquele domingo, enquanto ela acabava de lavar a louça do
café, o filho veio espiar a geladeira apesar da falta de vontade de comer.
Abriu, fechou. Olhou na fruteira, voltou a abrir a geladeira. Inquieto. Até que
comentou “mas pra que tanta maçã?”.
Surpresa, veio de luvas e espuma nas mãos verificar. Contou
três sacos de maçã, de diferentes feiras. Talvez um deles ainda tivesse sido
comprado por ele, pensou e doeu entre a constatação e a decisão. Deixadas ali,
iriam estragar. Que agora eram dois, só os dois, a comer as frutas no café da
manhã ou depois do almoço.
“Acho que vou fazer
uma torta de maçã”, finalmente pensou em voz alta, e o rosto do filho se
iluminou em vontade. “Posso ajudar?”, ele perguntou e ela aceitou, oferecendo a
ele uma cadeira para que a tarefa de lavar com cuidado as maçãs ficasse mais
fácil.
Tirou a manteiga da geladeira, viu se tinha iogurte
natural... Pegou a cerâmica branca e foi colocando, sem medir. Primeiro pouco mais de meio tablete
de manteiga, que foi cortando em cubos e fatias. Depois o mesmo tanto de farinha, que
resolveu peneirar para que o ponto ficasse mais fácil – foi então que se deu
conta, sem pensar, que estava a desejar um domingo sem coágulos. Pôs as mãos na
tigela e começou a misturar.
Na bancada, o filho esfregava as maçãs para depois secá-las,
caprichoso.
Ainda na tigela, colocou uma colher de sopa iogurte natural
e uma colher de chá de fermento químico. E então passou a contar as dez
colheres de água. Uma, duas, três, quatro... sempre perdia a conta. Continuou a
misturar a massa, sentindo o gelado do iogurte indeciso em se dissipar. Já nem
se distinguiam mais os ingredientes, mas a ponta dos dedos sabia que ele estava
ali, sem se decompor. Feito memória que mina água mansa nas brechas da vida a
continuar.
O filhou acabou de lavar as maçãs e se cansou da ajuda. Foi
para a sala, assistir tv.
Ela ficou ali, esticando a massa, colocando farinha, no
esforço de esticar sem esgarçar a massa. Doía um pouco menos ver-se outra:
massa fina e podre a procurar as bordas sem se rasgar. Não era mais ela mesma a
se alongar cotidianamente, a tentar cobrir o buraco que ele deixou. Era só a
massa, a massa de uma inesperada torta de maçã.
Abriu o armário para buscar o leite condensado. Pôs sobre o
fogão a caçarola, a colher de pau atravessada, e a lata de leite condensado a
escorrer. Pensou em chamar o filho, para ver se ele queria raspar o fundo, mas
lembrou de um corte na mão e desistiu. Na geladeira, pegou o leite e os ovos.
Uma lata de leite. Duas gemas, para o creme ter cor. Duas colheres de sopa de
maisena. Mexeu bem antes de ligar o fogo – não queria nada empelotando, só a
maciez do creme. “Creme veludo”, dizia a receita da avó. Sim, era
de um pouco de veludo que precisava. O veludo da companhia dele, da quentura da
sua presença macia. Mas tinha que se contentar com o doce na caçarola.
Mexeu bastante, até engrossar. Enquanto o creme esfriava,
pôs-se a cortar as maçãs em meia-lua: tirou as sementes, cortou as fatias
finas, jogou algumas gotas de limão para atrasar a oxidação.
O filho apareceu para roubar umas fatias, mas não se
interessou em ficar. “já vai ficar pronto?”, mas a resposta negativa o levou de
volta à sala, dessa vez para um desenho colorido.
Assou a massa até dourar. E quando o creme estava frio,
colocou as duas gotas de baunilha e a lata de creme de leite, sem soro.
Misturou bem, regozijando-se na textura lisa e amarelada. Na panela, a vida era
macia e sem tumores.
Suspirou demoradamente antes de pegar a travessa com a massa
e despejar, pão-duro em punho, o creme amarelado até quase as beiradas. Por
cima, arranjou delicada as fatias finas de maçã, concêntricas. E só então se
lembrou da cobertura, então correu para espremer duas laranjas e leva-las ao
fogo com duas colheres de maisena. Ufa! Caldo engrossado, despejou-o sobre a
torta, as meias-luas eclipsadas de laranja, já começando a cozinhar antes mesmo
de entrar no forno.
Quantos anos não fazia aquela torta. Nos vinte anos que
viveram juntos, nunca. Não era nem o trabalho, mas o medo de errar o ponto do
creme, de servir as maçãs dançando soltas no branco aguado. Hoje, porém, o
creme no ponto em poucos minutos. Agora, porém, o arrependimento até pelos
erros não cometidos.
Depois do jantar – o dia chegando ao fim e a ilusão de
eternidade dos domingos a se romper – ela e o filho inaugurando a torta. Meio a
medo, o filho afirma “dessa torta o papai ia gostar”. O peito encharcado
transbordando no olho enquanto corta o segundo pedaço. “Ele ia, não é?”. A
torta derretendo na boca feito a vida no correr tempo.
que coisa linda. fosse toda tristeza uma torta de maçã aveludada...
ResponderExcluirnossa! que lindo! :)
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