Depois de tantos anos de idas e vindas, de distâncias e
aproximações tateantes, finalmente chegaram ali. Aqui, melhor dizendo: aqui
nessa cidade, nesse bairro, nessa casa. Aqui, um frente ao outro.
Os quarenta anos derretidos em vinte, feito o alho-poró que
começava a fritar no azeite e espalhava um cheiro bom de tempero e mato pela
cozinha. “Mas você já fez essa receita antes?” ele desconfiou, com medo que o
trabalho fosse maior que o esperado. “Nunca fiz, mas já comi”. “E adianta,
saber o final?”. “Bom, é mais fácil que não ter menor ideia de como as
coisas devem parecer...”, sorriu, pensando agora não no sabor do prato mas nos
casamentos anteriores – o dele, o dela. Ele, porém, falando só da comida.
Taça de vinho na mão, ele estava em pé ao lado dela,
rodeando a bancada onde descansavam a couve-flor, a vagem cortada grosseiramente,
o pimentão amarelo e os palmitos de pupunha, luas cheias naquele céu de
picadinhos. Entre o morno que emanava do fogão e a respiração dele, também
morna, sentia-se amparada: naqueles parênteses de quentura e aconchego cabia um
infinito.
“O pimentão não devia ser verde ou vermelho? Amarelo na
paella vai ficar apagadinho...”, ele palpitou. Ela sorriu antes dizer “pode até
ser, mas pimentões verdes e vermelhos não me fazem bem, são fortes demais, só
consigo comer se tirar a casca, aferventar... até gosto, mas nessa altura da
vida, só quero o que me vai bem”. De novo, não sabia bem se estava falando da
comida ou daquela novidade de tê-lo ao lado todos os dias e noites, nos dias
úteis e finais de semana, na rotina e nas férias. Sentiu-se de um só golpe
sábia e velha – a recusar a festa completa por pura preguiça.
“Já tem as vagens e as ervilhas: acho que não atrapalha a
paleta de cores...”, desconversou, jogando os legumes, as ervilhas frescas e o pimentão na
panela. E a cozinha ficou inteira perfumada de intensidades. Enquanto isso, pegou
os tomates já lavados, pelados e sem sementes e os passou pelo processador.
Também pegou a água fervente da chaleira elétrica e jogou na pequenina
caçarola, sobre o caldo de legumes congelado.
Cutucou a couve-flor e a vagem, a ver se já estavam macias,
mas ainda não. As coisas têm seu próprio tempo, não adianta a nossa vontade. “Minha
avó sempre vinha com um o apressado come
quente e cru quando a gente circundava a panela com nossa gula”, contou. “A
minha também falava algo como isso. Os adultos, desde sempre a tentar domar
nossas voragens”, ele filosofou, servindo-se de mais um pouco de vinho.
Jogou finalmente as grandes rodelas de pupunha,
não sem antes quebrar uma no meio e dividir com ele – espécie de comunhão. Mal
acreditando no coração disparado no simples gesto, na ternura borbulhando perigosa feito a fervura do caldo de legumes enquanto passava a mão no rosto
recém-barbeado. Quarenta anos e a meninice recém-descoberta.
Virou-se ligeira, numa desconversa de corpos, e jogou o
caldo sobre os legumes. Também um bocadinho de sal, um bocadinho de pimenta.
Cuidadosa, abriu no centro um espaço para mais azeite, o alho bem picadinho a
dourar. Então a páprica, o tomate, o açafrão. A colorir o já colorido,
reforçando tons, descobrindo matizes. Inaugurando o novo no familiar.
“Paella é uma comida tão simples e tão elaborada, né?”, ele mapeou
o caminho de seus pensamentos enquanto ela colocava o arroz na panela. E era
mesmo: arroz, legumes, grãos. Mas os cheiros e cores, tão diversos do nosso tododia,
a prometer ocasião especial. Ela jogou ainda um raminho de alecrim fresco e
colocaram-se a esperar, a conversa cheia de pausas e silêncios, cuidadosa como o cozinheiro diante da receita nova.
Meia hora depois, o
limão siciliano ainda com a casca amarela a espalhar seus gomos por entre a
panela. “Era esse o prato que você imaginava?”, ele perguntou. “É um pouco
diferente”, confessou diante daquela imensidão de amarelo pontuada de verde e
branco. Sentaram-se à mesa, experimentando em pequenas garfadas. “É um pouco
diferente”, ela disse de novo, “mas ainda assim bom”.
Aqui, agora mesmo – o pequeno rito a prometer um para
sempre.
trocou de nome? ou eu que vi outro?
ResponderExcluirtroquei sim! na verdade, quando escrevi, o nome era esse mesmo "festa". foi na hora de colocar o nome do post que me atrapalhei e mudei... beijo!
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