* estava lavando a louça: esponja, espuma, água. mas na hora de colocar a travessa no escorredor, emborcada para baixo para secar bem direitinho, as costas da mão esbarraram na faca já lavada, a pontinha fina talhando um agora-machucado, uma amanhã-cicatriz.
* acabei de ler "o ano do pensamento mágico", da joan didion e estou lendo "noites azuis". tem angústia, tem desconcerto em todas as linhas. tem também uma certa melancolia em relação à palavra e à literatura - só os poemas e os livros sobre luto não são suficientes: também é necessário recorrer a estudos, a relatos científicos: tão abandonados estamos nessa experiência que a companhia possível está em nossa condição comum de mamíferos racionais, nunca em nossa condição humana. os que doem de saudade e incompreensão pela morte de alguém amado reintroduzem a própria morte no cotidiano; melhor se doerem privadamente.
* no meio da missa (na verdade quase no fim, naquela hora da consagração da hóstia, em que todos se ajoelham e um ar de respeito e adoração dá corpo à igreja), há um momento de recordar os mortos. eu gostava muito, dessa hora reservada em que lembramos dos que já foram. nas últimas vezes em que fui à missa, me espantava ver a lista crescendo, atropelando os tempos do rito: eu começava a pensar nos meus mortos e nunca terminava antes que o padre continuasse, após a breve pausa. da família para os amigos menos próximos; dos mortos mais antigos aos mais recentes; dos mais recentes aos mais antigos; dos mais queridos, aos mais distantes no afeto... não importava a ordem. nunca era suficiente.
* em cima da máquina de costura, à espera de um tempinho ou das férias - o que vier primeiro - a fronha cor-de-rosa com bordados brancos precisando de conserto. o algodão de trama ainda apertada. foi do enxoval da minha mãe, bordada pela minha bisavó em portugal. a bisavó que não conheci a não ser por fotos e nas brechas de relatos do meu avô, da minha avó, da minha mãe. a bisavó que analisou que minha avó seria uma boa esposa por lavar a louça rápido e sem deixar manchas de gordura. a bisavó portuguesa, de roupa escura, pastoreando as cabras. a personagem na paisagem da infância do meu avó, nas poucas fotos já amarelecidas e no meu imaginário sobre os camponeses nessa beirada da europa. o trabalho da minha bisavó materializado em seu bordado, nas costuras da fronha que tantos anos demoraram a vacilar. hoje, finalmente, passo nova costura na fronha cor-de-rosa com bordados brancos. não fica discreto - a engenharia delicada que permite as costuras invisíveis me escapa. a fronha agora cicatrizada, as distâncias descosturadas reunidas. brasil-portugal, três gerações mais tarde. a agulha correndo certa pelos minúsculos furinhos que um dia outra máquina perfurou.
* em cima da máquina de costura, à espera de um tempinho ou das férias - o que vier primeiro - a fronha cor-de-rosa com bordados brancos precisando de conserto. o algodão de trama ainda apertada. foi do enxoval da minha mãe, bordada pela minha bisavó em portugal. a bisavó que não conheci a não ser por fotos e nas brechas de relatos do meu avô, da minha avó, da minha mãe. a bisavó que analisou que minha avó seria uma boa esposa por lavar a louça rápido e sem deixar manchas de gordura. a bisavó portuguesa, de roupa escura, pastoreando as cabras. a personagem na paisagem da infância do meu avó, nas poucas fotos já amarelecidas e no meu imaginário sobre os camponeses nessa beirada da europa. o trabalho da minha bisavó materializado em seu bordado, nas costuras da fronha que tantos anos demoraram a vacilar. hoje, finalmente, passo nova costura na fronha cor-de-rosa com bordados brancos. não fica discreto - a engenharia delicada que permite as costuras invisíveis me escapa. a fronha agora cicatrizada, as distâncias descosturadas reunidas. brasil-portugal, três gerações mais tarde. a agulha correndo certa pelos minúsculos furinhos que um dia outra máquina perfurou.
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