06 maio, 2008

Pobre do homem que é amado por uma poeta


"Nem é justo, Dionísio, pedires ao poeta

Que seja sempre terra o que é celeste
E que terrestre não seja o que é só terra".
(Canto VIII, na voz linda de Olívia Byington)


Ainda não consegui escrever direito sobre o CD dos poemas da Hilda Hilst, musicados pelo Zeca Baleiro. Tenho algumas primeiras impressões, outras tantas segundas, terceiras e quartas...Mas está difícil transformá-las em palavras.

Deixo aqui então só um pedacinho do canto IV, cantado pela Jussara Silveira:

"Porque te amo, Dionísio,
É que me faço assim tão simultânea

Madura, adolescente

E por isso talvez
Te aborreças de mim"
, (Hilda Hilst, Canto IV, Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé)

Como já disse, adoro esses amores que despertam a imensa liberdade de se experimentar, de ser várias, de parecer outras.

E, anunciando uma primeira impressão, uma das sensações que tive escutando o CD pela primeira vez foi: pobre do homem que é amado por uma poeta. Porque ele pode se sentir escolhido, enaltecido pelas virtudes de quem está lhe amando. Mas o fato é que o amor está na poeta, à espera de objeto mas, em certo sentido, à despeito de qualquer objeto.

Os poemas da Ode Descontínua... falam mais sobre ausência e falta do que sobre a presença de Dionísio. Em parte porque foram escritos para um amor clandestino - biograficamente falando. Mas poeticamente falando, é a falta que dá impulso às palavras. O primeiro canto, aliás, diz:

"É bom que seja assim, Dionísio,
que não venhas",
(na voz de Rita Ribeiro)

E ela segue dizendo que, se o amado estivesse ali, presente, ela estaria com ele mas perderia o mundo. O próprio mundo que ela usa (em palavras) para se preparar, para estar sempre preparada quando ele vier.

E no canto II (Verônica Sabino):

"(...) Tu sabes,
Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira
Poeta".

E no canto III (Maria Bethânia), é como poeta que ela vai se inconformar com a ausência (igualada à falta de amor):

"A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla e argonauta

Por que recusas amor e permanência?"


A referência a si mesma como poeta é constante. Não é apenas uma mulher apaixonada que fala, louvando ou cobrando o amado. É a poeta que fala, é a poeta que ama, é a poeta que constrói um universo inteiro a partir de um amor que poderia nem existir de fato:

"E fingindo altivez digo à minha estrela
Essa que é inteira prata, dez mil sóis
Sírius pressaga

Que Ariana pode estar sozinha
Sem Dionísio, sem riqueza ou fama
Porque há dentro dela um sol maior:

Amor que se alimenta de uma chama
Movediça e lunada, mais luzente e alta

Quando tu, Dionísio, não estás".
(Canto VI, lindamente cantado pela Ná Ozzetti)

Essa mulher que aparentemente espera e suporta a ausência, é ativa na criação e na transfiguração da vida:

"Tenho meditado e sofrido (...)
Pensando

Que se a mim não me deram
Esplêndida beleza
Deram-me a garganta
Esplandecida: a palavra de ouro
A canção imantada
O sumarento gozo de cantar
Iluminada, ungida".
(Canto IX, na voz da Mônica Salmaso).

Embora fale de falta, não há falta alguma: há sim a presença do amor, encarnado nas palavras e cantos. Uma preparação constante para um Outro, Dionísio; mas tanto faz se ele virá ou não porque se ele viesse, não apenas a poeta continuaria atuando, como se transfiguraria ela mesma em melodia:

"Se todas as suas noites fossem minhas
Eu te daria, Dionísio, a cada dia
Uma pequena caixa de palavras
Coisa que me foi dada, sigilosa

E com a dádiva nas mãos tu poderias
Compor incendiado a tua canção
E fazer de mim mesma, melodia"
(Canto X, na voz de Ângela Maria).

Se o amado estivesse presente, portanto, não lhe restaria alternativa a não ser se transformar também em poeta: o que essa mulher quer mesmo é ser transformada em pura poesia, consubstanciar-se com a palavra (e não com qualquer homem...).

Portanto: pobre do homem que é amado por uma poeta. Julga estar sendo amado por quem é, mas apenas merece amor por dar corpo ao imenso amor que na poeta sempre se prepara.

Bom. Não consegui ainda falar do CD propriamente dito. Mas já foi um começo...

* Este post é dedicado à Juliana B., meu anjo torto. Há muito tempo que não nos vemos, mas ela continua sendo minha companhia nessa beira de estrada, desse lado ensolarado que eu achei para caminhar.

Imagem: http://astronomia-algarve.blogspot.com/2007/04/o-sol-2.html

2 comentários:

  1. Ilusão tão boa...
    QUe a vida sempre nos faça surpresas. Gratas surpresas. E se engana quem pensa que não caminhamos pelo mesmo lado ensolarado.
    Um beijo, coração.
    Estou emocionada. Muito.
    Ju Biscardi

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  2. Felicidade pode estar pelo sim, meu amor. Eu quero sim, eu digo sins.

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