20 maio, 2008

Grifos

"Vê-se o método seguido: consiste em descrever, muito positivamente, o que um imperador paternal faz, o que faz um chefe-guia, e em não pressupor nada mais; em não pressupor que existe um alvo, um objeto, uma causa material (os governados eternos, as relações de produção, o Estado eterno), um tipo de conduta (a política, a despolitização). Julgar as pessoas por seus atos e eliminar os eternos fantasmas que a linguagem suscita em nós. A prática não é uma instância misteriosa, um subsolo da história, um motor oculto: é o que fazem as pessoas (a palavra significa exatamente o que diz). Se a prática está, em certo sentido, "escondida", e se podemos, provisoriamente, chamá-la "parte oculta do iceberg", é simplesmente porque ela partilha da sorte da quase-totalidade de nossos comportamentos e da história universal: temos, freqüentemente, consciência deles, mas não temos o conceito para eles. Do mesmo modo, quando eu falo, eu sei que geralmente estou falando e não estou em estado de hipnose; entretanto, não tenho a concepção da gramática que aplico intuitivamente; acredito exprimir-me naturalmente para dizer o que é preciso; não estou consciente de que aplico regras estritas. Assim, também, o governo que distribui pão gratuitamente a seu rebanho ou lhe recusa gladiadores acredita fazer o que se impõe a todo governante, com relação aos governados, pela própria natureza da política; ele não sabe que sua prática, se a observamos tal qual é, se conforma a uma certa gramática; que é uma certa política, do mesmo modo que, acreditando falar sem pressuposto, para dizer o que se impõe e que nos causa pesar, só rompemos o silêncio para falar em uma certa língua, o francês ou a língua latina.

Julgar as pessoas por seus atos não é julgá-las por suas ideologias; é também, não as julgar a partir de grandes noções eternas - os governados, o Estado, a liberdade, a essência da política - que banalizam e tornam anacrônica a originalidade das práticas sucessivas. Com efeito, se tenho a infelicidade de dizer: "diante do imperador, havia os governados", quando constatar que o imperador dava a esses governados pão e gladiadores e me perguntar por quê, concluirei que era por uma razão não menos eterna: fazer-se obedecer, os despolitizar ou fazer-se amar.

Efetivamente, temos o costume de raciocinar em função de um alvo ou a partir de uma matéria. Por exemplo, eu acreditei e escrevi, erradamente, que o pão e o circo tinham a finalidade de estabelecer uma relação entre governados e governantes ou respondiam ao desafio objetivo que eram os governados. Mas, se os governados são sempre os mesmos, se têm os reflexos natuais de todo governado, se têm, naturalmente, necessidade de pão e circo, ou de se fazerem despolitizar, ou de se sentirem amados pelo Mestre, por que, só em Roma, eles receberam pão, circo e amor? Portanto, é preciso inverter os termos do enunciado: para que os governados sejam percebidos pelo Mestre unicamente como objetos que devem ser despolitizados, amados ou conduzidos ao circo, é preciso que tenham sido objetivados como povo-rebanho; para que o Mestre só seja percebido como devendo fazer-se popular junto a seu rebanho, é preciso que tenha sido objetivado como guia e não como rei-pai ou rei-sacerdote. São essas objetivações, correlatos de uma certa prática política, que explicam o pão e o circo, que não se chegará nunca a explicar partindo dos governados eternos, dos governantes eternos e da relação eterna de obediência ou de despolitização que os liga, pois essas chaves entram em todas as fechaduras".
(Paul Veyne, "Foucault Revoluciona a História". Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história: Tradução de Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. 4ª edição: Editora UnB, Brasília, 1998: 248-249)

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