Deveria ser apenas uma carona – essa espécie de milagre que por instantes une o caminho de duas pessoas. Ao entrar naquele carro, porém, seu corpo se tornara subitamente consciente do extremo perigo: a excessiva proximidade, o confinamento no espaço pequeno, o alheamento do resto do mundo...Tudo agora se transformara numa perigosa abertura de possibilidades, como se só ali, só naquele momento, estivessem pela primeira vez sozinhos um com o outro.
Enquanto o trânsito surpreendentemente fluía, conversaram amenidades: clima, a loucura da cidade, o excesso de trabalho e a falta de paz...Consensos fáceis na idade em que estavam, no momento em que estavam, na vida que viviam. A noite se tornando mais escura e a cidade se tornando mais iluminada, em outdoors, painéis eletrônicos e carros em alta velocidade – com eles o que ocorria era parecido: enquanto chegavam aos lugares mais cheios de gente e de carros e de luzes e de barulhos, maior o silêncio dentro do veículo, maior o escuro que caia por sobre ambos. Tudo tão desencontrado.
O silêncio prolongado – e não, não incomodava – pontuado de perguntas, curiosidades, descobertas. “Então você não é daqui?”, “Jura que você lia Caio Fernando Abreu?, “Cinco sobrinhos?”, “Dez irmãos?”, “Uma namorada?”...Pipocavam luzes na noite escura do interior do carro.
O trânsito agora parado, benevolente com a ansiedade de ambos. Mal se olhavam – apenas se ouviam, interrogavam-se, tateavam-se com palavras. Mergulhados no escuro do carro, vez em quando arriscavam um olhar de soslaio, só para ver o outro inteiramente absorvido pelas inúmeras sensações que passeavam por dentro daquela bolha de sabão que os separava do restante do mundo.
Os carros em volta e o tempo parados, suspensos – como se Deus suspendesse a respiração e, nesse intervalo, tudo se tornasse infinito. Não importava mais o trajeto, não importava mais o destino, não importava mais chegar em algum lugar. A única coisa que realmente importava era estarem ali, ao alcance das mãos um do outro, embora nenhum dos dois se dispusesse a fazer o movimento que interromperia a suspensão do tempo. Tocarem-se seria estourar aquela bolha.
Então, apenas conversavam, escorrendo devagar os assuntos, derramando-se um no outro com calma e alguma dor.
Olhando-a, ele sabia exatamente o que ela queria. Olhando-o, ela sabia exatamente o que ele queria – aquilo que os levaria a ambos numa direção completamente diferente, a um ponto de chegada que nem sabiam imaginar. Para longe dali, longe do momento escuro e úmido no qual estavam mergulhados.
Era estranho: quando ele lhe perguntara, inocentemente, “para onde você está indo?”, ela não hesitara nenhum momento em responder. E agora se encontrava assim, perdida, à beira do abismo.
Ele também se sentia estranho – não era mais um menino, como é que podia estar se sentindo assim, tão...perturbado? Era essa a palavra?
O trânsito completamente parado e os dois ali, preservados pelas janelas fechadas, mergulhando cada vez mais fundo naquelas sensações.
Muito tempo depois, quase uma vida inteira, chegaram ao lugar onde ele a deixaria. Era difícil sair do carro; era difícil deixá-la ir. Ela já abrira a porta, pondo uma das pernas para fora, e agora se virava para ele, para despedir-se. Ele tentou sorrir, comentando algo sobre ter que comprar alguma coisa antes de ir para a casa e inclinou-se para dizer tchau.
Sem saber muito bem por que, talvez um certo brilho ou um certo desespero nos olhos dele, ela estacou. Pôs a perna para dentro, fechou com força a porta e a travou – como se para ter certeza que não cairia na tentação de fugir. “Para onde você está indo?”, ele disse, num fio rouco de voz. Ela não tinha a menor idéia. Mas sabia que não queria nunca mais se sentir como quando ameaçou sair do carro: como se a vida estivesse toda escorrendo pelas suas mãos. Sorriu e respondeu, sincera, “não faz a menor diferença”.
Imagem: http://letrasimples.blogs.sapo.pt/arquivo/1074655.html
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