09 maio, 2008

Sobre vinte e um gramas


Algumas pessoas saíram no meio da projeção, incomodadas com a violência, reclamando do “peso” do filme (não, não vou tirar sarro dizendo que é leve, só 21 gr). Mas eu gostei do filme, não achei pesado, nem violento. E o Edu me disse que um crítico escreveu que o filme é sobre vingança. Também não acho.

Acho que o filme é sobre a luta que a gente trava com a vida – é um filme sobre a permanência e a mudança; sobre as possibilidades de continuar vivendo e a paralisia; sobre aquilo que a gente recebe por graça e aquilo que a gente se morde para ter. Eu acho que é um filme sobre a vida não dar bola para a gente e seguir seu curso – e é por isso que no meio da vida tem a morte e no meio da morte tem a vida.

Tem um homem que está morrendo e não morre mais, mas depois acaba morrendo. Tem uma mulher que estava morrendo e foi salva pela vida das filhas mas que depois quase perde tudo quando estas morrem para ganhar a vida de novo ali adiante. Tem outro homem que se salvou ganhando a vida eterna e depois a perdeu ao tirar algumas vidas mas que depois, num encontro de todos esses mortos-vivos, ganha vida de novo, não a eterna, mas essa mundana e transitória mesmo.

E toda a tragédia e toda a alegria brotam desse mesmo esforço – que é de todos os personagens – em recusar o que a vida lhes reserva. É o coração novo – graça – e o desconforto com ele que levam Sean Penn a procurar e encontrar Naomi Watts. É o encontro com ele, e a recusa progressiva da felicidade que poderia advir disso, que faz com que ela se perca, no esforço de vingar-se da vida por sua perda. É isso que a leva até Benicio del Toro, que não pode mais viver consigo mesmo e por isso se afasta de todos os laços – suportes da insuportável memória. E é o encontro com ele – é o encontro de todos esses personagens, desgraçados no sentido literal do termo pois perderam as suas graças – que vai mudar tudo de novo.

Se há algum “peso” da narrativa do filme é a sua semelhança com a trajetória dos personagens bíblicos. Como já mostrou Auerbach, comparando Ulisses e Abraão, enquanto o personagem de Homero se desloca no espaço para viver aventuras e retornar ao ponto de partida inteiro, ileso, Abraão verdadeiramente sofre, verdadeiramente goza, verdadeiramente vai ficando marcado pela graça e pela punição divinas. Mas os personagens bíblicos, porque sofrem a miséria, vivem também a glória.

Então, acho que se trata de um filme que consegue falar com delicadeza dessa nossa condição – a vida é assim mesmo, nada é definitivo, as graças vêm e vão, as tragédias vêm e vão e – também à semelhança da narrativa bíblica – jamais saberemos as intenções ocultas por detrás do que nos acontece (se as houver). Por isso, talvez pudéssemos pensar que não adianta tanta luta. Mas aí, deixaríamos de ser humanos.


* Texto escrito há um tempão - quando 21 gramas estava em cartaz.

Imagem: http://www.kboing.com.br/papeldeparede/m_papeldeparede.php?papel=7530sagrado_coracao

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