14 maio, 2008

Noturnos Imperfeitos


"Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tento tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento"
(Hilda Hilst, primeiro poema de Júbilo, Memória e Noviciado da Paixão).

Sempre gostei deste poema. Muito, aliás. Em tempos de recolhimento e silêncio, essas idéias arranjadas em palavras me ajudam a manter a esperança.

Minhas mãos têm tido desejo de terra; por isso andei comprando argila. E agora, a cada vez que não consigo pôr o que sinto em palavras, corro para a terra úmida e permito que meu corpo aprenda outras formas de dizer. Minhas escrivaninha vai ficando pequena para tantas imagens.

Durante algum tempo, no convívio com este poema, o que me chamava a atenção eram os versos Te olhei. E há tanto tempo/ Entendo que sou terra. Imaginava o espanto de uma mulher apaixonada que, nos olhar do amante, descobre-se outra. Não mais o rio, mas seu transbordamento: a mulher que se entende terra, úmida, vida e morte.

Terra é um elemento que se liga ao desejo: siderare é o nome que se dá aos astros, donde considerare significa ter os olhos fixos aos céus, tendo a vida orientada pelos astros. Finalmente, desiderare: perder o alto como orientação, cessar de ver os astros, estar fixo ao chão. O desejo nada tem de transcendente; ao contrário: ele nos liga à terra e nos condena à errância.

O poema me impressionava, portanto, pela delicadeza com que falava do desejo e do movimento que pode gerar em nós haver um outro que nos olha; me impressionava pela boniteza da imagem de reconhecer-se terra.

No entanto, das últimas vezes em que voltei ao poema, ele me falou de outra coisa. Me pareceu o apelo dolorido da mulher que teme que seu homem não seja capaz de vê-la em sua inteireza. por isso ela começa: Se te pareço noturna e imperfeita/ Olha-me de novo". Olha-me de novo e me dê a liberdade da noite e da imperfeição. "Olha-me de novo. Porque esta noite/Olhei-me a mim como se tu me olhasses". Olha-me, porque me vendo através de seus olhos, descobri-me outras, tantas; descobri-me água e terra, fogo e ar. Te olhei e o meu desejo por ti me prendeu ao chão, ao barro, ao imoldado. Então, olha-me de novo para que possamos dar forma a esta matéria de que somos feitos. Olha-me de novo para revivermos o gênesis.

Trata-se de um poema de amor e desejo. Mas agora estou mais marcada pelo apelo pungente que, no fundo, é o apelo que nos fazemos reciprocamente, cotidianamente, mudamente: Olha-me de novo. Porque todos entendemos que somos terra. E que um olhar atento nos faria novos, outros, restaurados.

O pedido desesperado dessa mulher apaixonada é o nosso próprio: olha-me de novo para que eu não me acostume com minha própria imagem desgastada, refletida em seu olhar. Olha-me com olhos novos. Olha-me de novo porque não sou sempre a mesma...

O poema é outra forma de dizer aquilo que Ana Cristina César também diz: "Você me ama? Então se concentre".

Olhar de novo exige concentração. Resumindo toda essa falação proponho-nos um novo mandamento: olhemo-nos de novo.

Imagem: "O fazer artístico", Paula Lyn Carvalho. Em: http://www.superimagens.com/sp/galeria/

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