30 maio, 2008

Milagres


Mulher:
em caso de dor ponha gelo

mude o corte de cabelo
mude como modelo
vá ao cinema dê um sorriso
ainda que amarelo, esqueça seu cotovelo

se amargo foi já ter sido
troque já esse vestido
troque o padrão do tecido
saia do sério deixe os critérios
siga todos os sentidos
faça fazer sentido
a cada milágrimas sai um milagre

em caso de tristeza vire a mesa
coma só a sobremesa coma somente a cereja
jogue para cima faça cena
cante as rimas de um poema
sofra penas viva apenas
sendo só fissura ou loucura
quem sabe casando cura ninguém sabe o que procura
faça uma novena reze um terço
caia fora do contexto invente seu endereço
a cada milágrimas sai um milagre

mas se apesar de banal
chorar for inevitável sinta o gosto do sal do sal do sal
sinta o gosto do sal
gota a gota, uma a uma
duas três dez cem mil lágrimas
sinta o milagre
a cada mil lágrimas sai um milagre
cante as rimas de um poema
sofra penas viva apenas
sendo só fissura ou loucura
quem sabe casando cura ninguém sabe o que procura
faça uma novena reze um terço
caia fora do contexto invente seu endereço
a cada milágrimas sai um milagre


(Alice Ruiz e Itamar Assumpção)

29 maio, 2008

Acabou.

É. Acabou. Ufa!

Nem estou acreditando muito...Houve tantos momentos em que achei que não, que não ia acabar.

Mas acabou.

28 maio, 2008

Boniteza


"rede ao vento

se torce de saudade
sem você dentro".
(Alice Ruiz)

Eu adoro a Alice Ruiz. Tá aí um bom projeto para quando este texto finalmente acabar (nesta madrugada? amanhã?) - ler Alice Ruiz. Direito. Mergulhando. Para sair dela embebida, plena de novas imagens.

E como na sexta-feira de madrugada minha energia se esgotou e a saudade dos meus homens falou mais alto, fui para São José no sábado de manhã. Fui lendo Carpinejar, Meu filho, minha filha. Fui ouvindo música, lendo. E chorando uns bocadinhos, porque o Carpinejar é preciso no que nomeia. O espaço se ampliando por dentro com o céu escandaloso de azul lá fora. Uns silêncios bons. De rede vazia, mas não torcida: nhec, nhec de embalo.

Brevíssima

Ontem, eu estava lavando os tênis do Rô. Ele viu e pediu para me ajudar, já trazendo a escada para perto do tanque.
Tudo bem. Aí ele começa a tentar abrir a torneira no máximo, e eu explicando que não podia, que gastava muita água, que ia inundar a casa porque o ralo estava tampado e tal.
Depois de uns minutinhos, ele se conformou. E aí começou a mexer na água, no sabão, a esfregar o chinelo. Tudo isso dizendo:
- Eu vou te ajudar, mamãe. Eu quero fazer igual você...
No meio de tudo, ele solta:
- Mamãe, estou adorando essa brincadeira.

27 maio, 2008

Qualquer bobagem

Sabem o que eu adorava cantar para o Rodrigo quando ele era pequenininho? Uma versão nada a ver da música do Elefante-que-incomoda-muita-gente:

Um Rodriguinho faz muito bem pra gente;
dois Rodriguinhos já não faz tanto mais...
O que explica essa coisa tão estranha
é a lei dos rendimentos marginais...
Porque um Rodrigo já é suficiente,
porque um Rodrigo já nos satisfaz!

Agora, o que explica uma pessoa que põe conceito de microeconomia no meio da música pro filho?

Também tinha outra, que eu cantava durante a troca de fraldas, que era uma versão de Flor de ir embora (da Fátima Guedes):

Rô de bum-de-fora
É o Rô tão bonitinho que a mamãe adora...

E eu adoro brincar com as letras das músicas. Acho que foi muito gibi da Mônica quando eu era pequena...Quem se lembra da versão do Chico Bento para Disparada, do Geraldo Vandré?

Prepare seu carroção
pras coisa que eu vou botá
premero vai o leitão, premero vai o leitão...

Rio sozinha todas as vezes que me lembro.

25 maio, 2008

Meu Pai (3)

Num dos intervalos dessas madrugadas de trabalho, topei com o blog da Cris. Ela perdeu o marido três meses antes do filho nascer e começou a escrever este blog para transformar a falta em presença para o filho, Francisco. É tudo lindo - ela, o que ela escreve, o amor deles: força e delicadeza transbordando a morte.

Num dos posts ela comentava sobre a música "Quando papai vai viajar", gravada pelo Grupo Curupaco, num CD com o estranhíssimo nome de "O vôo do Pterodáctilo". A música também é linda: doce-doce ao falar de saudade.

Depois de ligar para algumas pessoas em Belo Horizonte, finalmente consegui um dos últimos CDs da primeira edição (segundo me informaram, uma reedição deve chegar ao Instituto Kairós no próximo mês. Mas também encontrei uma entrevista com o Paulo Tatit em que ele dizia que vai licenciar o CD para o selo Palavra Cantada).

Chegou faz uma semana e Rô e eu já ouvimos várias vezes. E, talvez porque o Edu tenha estado viajando, ele sempre me pede para ouvir "Quando papai vai viajar":



Quando papai vai viajar/coração chora baixinho./Sei que amanhã quando acordar, longe, sem o seu carinho/vou me lembrar de você.

Com o coração chorando baixinho, me lembrei de quando meu pai viajava. Vira e mexe ele fazia pequenas viagens, para testes e lançamentos de balões (ai, gente, nem adianta perguntar que raios de balões eram esses; no meu caso, filho de peixe, peixinho não é, e não entendo nada física).

Como as viagens eram pro interior do Vale do Paraíba, me lembro dele trazer bonecas de personagens do Sítio do Picapau-Amarelo. Não eram bonecas para brincar e sim para pendurar na parede. Bonecas estranhas, de palha, mas que à distância do tempo têm cheiro de nostalgia: têm cheiro do trabalho de mulheres, de mãos que colhem e trançam a palha, e que figuram o mundo no que produzem de bonito.

A cada dia que passar/ Sem ter você comigo/Qualquer estrela que brilhar/Trazendo o seu sorriso/Vou me lembrar de você.

Porque lembrei dos balões, lembrei também das visitas que fazíamos ao INPE. Lembrei da sala de trabalho do meu pai, abarrotada de papéis, uma imensa bagunça impressa naquelas impressoras matriciais antigas, nos papéis enormes, com aqueles furinhos destacáveis do lado que registraram a maior parte dos desenhos da nossa infância.

E os vãos dos dedos dos meus pés se lembraram do gelado de quando entrávamos numa salinha e meu pai nos deixava caminhar em uma nuvem de nitrogênio líquido: festa e diversão garantidas.

Da alegria de toda manhã/Do bom dia, gosto de maçã/ Noite fria cobertor de lã/ Saudade não tem fim/ Não demoro espere/ por mim.

Saudade pode ter fim? Depende. Mas sei que, por mais tempo que passe, o ato de voltar apaga qualquer demora.

("Quando papai vai viajar", Paulo Santos e Ana Lúcia Braga)

22 maio, 2008

Edu (2)


Como eu ando nesta fase de encontrar uns pedaços de passado espalhados pela casa (só para em seguida perceber o quanto o passado é atual), encontrei várias mensagens queridas de um tempo em que Edu e eu nem namorávamos.

Cuidados, carinhos, descobertas...Tanta coisa gostosa.

Lembrança puxa lembrança e lembrei de uma coisa que o Edu sempre dizia no começo do nosso namoro: "e o melhor é que está apenas começando".

E essa semana me peguei pensando nisso: sete anos depois, tantas coisas pelo caminho, e umas explosões de carinho e vontade de estar perto que me dão a certeza - está apenas começando; vai estar sempre apenas começando...

Imagem: http://ideiasemdesalinho.blogs.sapo.pt/arquivo/258088.html

Pensar

Já perceberam que de vez em quando pensar dói? Mas também dá um prazeeeer.

O trabalho de parir o texto continua. Marido e filho passeando na avó, e eu aqui, com as minhas contrações...

Está chegando ao fim. Ô se tá.

20 maio, 2008

Trajeto


Deveria ser apenas uma carona – essa espécie de milagre que por instantes une o caminho de duas pessoas. Ao entrar naquele carro, porém, seu corpo se tornara subitamente consciente do extremo perigo: a excessiva proximidade, o confinamento no espaço pequeno, o alheamento do resto do mundo...Tudo agora se transformara numa perigosa abertura de possibilidades, como se só ali, só naquele momento, estivessem pela primeira vez sozinhos um com o outro.

Enquanto o trânsito surpreendentemente fluía, conversaram amenidades: clima, a loucura da cidade, o excesso de trabalho e a falta de paz...Consensos fáceis na idade em que estavam, no momento em que estavam, na vida que viviam. A noite se tornando mais escura e a cidade se tornando mais iluminada, em outdoors, painéis eletrônicos e carros em alta velocidade – com eles o que ocorria era parecido: enquanto chegavam aos lugares mais cheios de gente e de carros e de luzes e de barulhos, maior o silêncio dentro do veículo, maior o escuro que caia por sobre ambos. Tudo tão desencontrado.

O silêncio prolongado – e não, não incomodava – pontuado de perguntas, curiosidades, descobertas. “Então você não é daqui?”, “Jura que você lia Caio Fernando Abreu?, “Cinco sobrinhos?”, “Dez irmãos?”, “Uma namorada?”...Pipocavam luzes na noite escura do interior do carro.

O trânsito agora parado, benevolente com a ansiedade de ambos. Mal se olhavam – apenas se ouviam, interrogavam-se, tateavam-se com palavras. Mergulhados no escuro do carro, vez em quando arriscavam um olhar de soslaio, só para ver o outro inteiramente absorvido pelas inúmeras sensações que passeavam por dentro daquela bolha de sabão que os separava do restante do mundo.

Os carros em volta e o tempo parados, suspensos – como se Deus suspendesse a respiração e, nesse intervalo, tudo se tornasse infinito. Não importava mais o trajeto, não importava mais o destino, não importava mais chegar em algum lugar. A única coisa que realmente importava era estarem ali, ao alcance das mãos um do outro, embora nenhum dos dois se dispusesse a fazer o movimento que interromperia a suspensão do tempo. Tocarem-se seria estourar aquela bolha.

Então, apenas conversavam, escorrendo devagar os assuntos, derramando-se um no outro com calma e alguma dor.

Olhando-a, ele sabia exatamente o que ela queria. Olhando-o, ela sabia exatamente o que ele queria – aquilo que os levaria a ambos numa direção completamente diferente, a um ponto de chegada que nem sabiam imaginar. Para longe dali, longe do momento escuro e úmido no qual estavam mergulhados.

Era estranho: quando ele lhe perguntara, inocentemente, “para onde você está indo?”, ela não hesitara nenhum momento em responder. E agora se encontrava assim, perdida, à beira do abismo.

Ele também se sentia estranho – não era mais um menino, como é que podia estar se sentindo assim, tão...perturbado? Era essa a palavra?

O trânsito completamente parado e os dois ali, preservados pelas janelas fechadas, mergulhando cada vez mais fundo naquelas sensações.

Muito tempo depois, quase uma vida inteira, chegaram ao lugar onde ele a deixaria. Era difícil sair do carro; era difícil deixá-la ir. Ela já abrira a porta, pondo uma das pernas para fora, e agora se virava para ele, para despedir-se. Ele tentou sorrir, comentando algo sobre ter que comprar alguma coisa antes de ir para a casa e inclinou-se para dizer tchau.

Sem saber muito bem por que, talvez um certo brilho ou um certo desespero nos olhos dele, ela estacou. Pôs a perna para dentro, fechou com força a porta e a travou – como se para ter certeza que não cairia na tentação de fugir. “Para onde você está indo?”, ele disse, num fio rouco de voz. Ela não tinha a menor idéia. Mas sabia que não queria nunca mais se sentir como quando ameaçou sair do carro: como se a vida estivesse toda escorrendo pelas suas mãos. Sorriu e respondeu, sincera, “não faz a menor diferença”.

Imagem: http://letrasimples.blogs.sapo.pt/arquivo/1074655.html


Grifos

"Vê-se o método seguido: consiste em descrever, muito positivamente, o que um imperador paternal faz, o que faz um chefe-guia, e em não pressupor nada mais; em não pressupor que existe um alvo, um objeto, uma causa material (os governados eternos, as relações de produção, o Estado eterno), um tipo de conduta (a política, a despolitização). Julgar as pessoas por seus atos e eliminar os eternos fantasmas que a linguagem suscita em nós. A prática não é uma instância misteriosa, um subsolo da história, um motor oculto: é o que fazem as pessoas (a palavra significa exatamente o que diz). Se a prática está, em certo sentido, "escondida", e se podemos, provisoriamente, chamá-la "parte oculta do iceberg", é simplesmente porque ela partilha da sorte da quase-totalidade de nossos comportamentos e da história universal: temos, freqüentemente, consciência deles, mas não temos o conceito para eles. Do mesmo modo, quando eu falo, eu sei que geralmente estou falando e não estou em estado de hipnose; entretanto, não tenho a concepção da gramática que aplico intuitivamente; acredito exprimir-me naturalmente para dizer o que é preciso; não estou consciente de que aplico regras estritas. Assim, também, o governo que distribui pão gratuitamente a seu rebanho ou lhe recusa gladiadores acredita fazer o que se impõe a todo governante, com relação aos governados, pela própria natureza da política; ele não sabe que sua prática, se a observamos tal qual é, se conforma a uma certa gramática; que é uma certa política, do mesmo modo que, acreditando falar sem pressuposto, para dizer o que se impõe e que nos causa pesar, só rompemos o silêncio para falar em uma certa língua, o francês ou a língua latina.

Julgar as pessoas por seus atos não é julgá-las por suas ideologias; é também, não as julgar a partir de grandes noções eternas - os governados, o Estado, a liberdade, a essência da política - que banalizam e tornam anacrônica a originalidade das práticas sucessivas. Com efeito, se tenho a infelicidade de dizer: "diante do imperador, havia os governados", quando constatar que o imperador dava a esses governados pão e gladiadores e me perguntar por quê, concluirei que era por uma razão não menos eterna: fazer-se obedecer, os despolitizar ou fazer-se amar.

Efetivamente, temos o costume de raciocinar em função de um alvo ou a partir de uma matéria. Por exemplo, eu acreditei e escrevi, erradamente, que o pão e o circo tinham a finalidade de estabelecer uma relação entre governados e governantes ou respondiam ao desafio objetivo que eram os governados. Mas, se os governados são sempre os mesmos, se têm os reflexos natuais de todo governado, se têm, naturalmente, necessidade de pão e circo, ou de se fazerem despolitizar, ou de se sentirem amados pelo Mestre, por que, só em Roma, eles receberam pão, circo e amor? Portanto, é preciso inverter os termos do enunciado: para que os governados sejam percebidos pelo Mestre unicamente como objetos que devem ser despolitizados, amados ou conduzidos ao circo, é preciso que tenham sido objetivados como povo-rebanho; para que o Mestre só seja percebido como devendo fazer-se popular junto a seu rebanho, é preciso que tenha sido objetivado como guia e não como rei-pai ou rei-sacerdote. São essas objetivações, correlatos de uma certa prática política, que explicam o pão e o circo, que não se chegará nunca a explicar partindo dos governados eternos, dos governantes eternos e da relação eterna de obediência ou de despolitização que os liga, pois essas chaves entram em todas as fechaduras".
(Paul Veyne, "Foucault Revoluciona a História". Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história: Tradução de Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. 4ª edição: Editora UnB, Brasília, 1998: 248-249)

19 maio, 2008

Edu (1)

(Ainda bem, na voz da Vanessa da Mata)

Ainda bem
Que você vive comigo
Porque se não
Como seria esta vida?
Sei lá, sei lá
Se há dores tudo fica mais fácil
Seu rosto silencia e faz parar
As flores que me manda são fato
Do nosso cuidado e entrega
Meus beijos sem os seus não dariam
Os dias chegariam sem paixão
Meu corpo sem o seu uma parte
Seria o acaso e não sorte

Neste mundo de anos
Entre tantos outros
Que sorte a nossa hein?
Entre tantas paixões
Esse encontro
Nós dois, esse amor.

Confissão

Confissão do Itabirano

"Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!" (C. Drummond de Andrade)


E hoje me peguei pensando nas coisas que a gente carrega, histórias, pessoas, dores e alegrias. Coisas que são o que temos a oferecer. E também são as coisas que nos pesam, nos fazem "de ferro", suportando e suportando, como se vida fosse por alguns instantes inescapável ("A vida é uma ordem./A vida apenas, sem mistificação" - Drummond também).

Nas minhas paredes, também há fotografias que doem. Como doem! Mas já não posso me livrar delas: sem o que elas retratam, como é que vou me lembrar de onde vim?

18 maio, 2008

Pra dizer Adeus

E essa história de separação e despedida me fez lembrar uma música do Edu Lobo e do Torquato Neto, na voz dolorida da Elis Regina:

Adeus,
Vou pra não voltar
E onde quer que eu vá
Sei que vou sozinho
Tão sozinho, amor
Nem é bom pensar
Que eu não volto mais
Desse meu caminho
Ah! Pena eu não saber
Como te contar
Que o amor foi tanto
E no entanto eu queria dizer
Vem,
Eu só sei dizer
Vem,
Nem que seja só
Pra dizer adeus.

Muito, muito melhor do que post-it.

TPM + TPQ

A gente tem certeza que está na TPM e estressada quando assiste à Sex and the City e chora no fim do episódio como se fossémos nós, e não a Carrie, que fomos deixadas pelo Berger.

E eu gosto tanto do Berger. Não tanto quanto do Big, claro, que o Big é O homem. Mas pelo menos o Berger tinha suas loucuras e inseguranças, era inteligente e divertido, romântico: uma personagem mais próxima da realidade.

Agora: terminar por post-it é o fim da paçaroca, né não?

E eu descobri que também gosto do Harry.

Não sei porque raios eu nunca vi a última temporada (as cinco primeiras vi enquanto estava de repouso no final da gravidez). Aí resolvi alugar agora para finalmente ver o último capítulo. Assim já fico preparada para a estréia do filme.

TMP = isso mesmo, tensão pré-menstrual. TMQ = tensão pré-qualificação. Entrego o texto na sexta-feira para a Heloísa. E na semana seguinte para os membros da banca. Correndo para não perder o prazo - que está ali, ó, depois daquela esquina.

17 maio, 2008

Primeira Vez

Sofia estava irremediavelmente apaixonada: pensava sem parar no objeto de seu amor, falava dele a quem não perguntasse e tinha o tempo todo colada à cara a expressão de quem vira passarinho verde.
Em toda a sua vida, aquele consistia, sem dúvida, o maior acontecimento. Ela ficava olhando Tiago de longe e derretia a cada vez que ele olhava de volta. Quando se encontravam, ficavam separados pelo abismo da ausência de assunto – parecia que o máximo de curiosidade que tinham em relação ao outro era saber se estavam bem. E sempre estavam, o que dificultava perguntas posteriores.

Naquele dia 12 de junho, Sofia chegou à escola com o coração disparado; dentro da pesada mochila, um cartão cuidadosamente feito à mão (“cartão comprado não diz nada”, ensinou a mãe), em cartolina vermelha e purpurina dourada. Dentro, a simplicidade de um “gosto de você”.

Entrou na escola correndo, para ter tempo de se preparar – escondeu-se por entre as árvores do parque para poder vê-lo chegar sem ser vista. Mas bateu o sinal e nada de Tiago chegar. Sofia se arrastou até a sala com a maior vontade de chorar.

Tiago só chegou na hora do recreio, tendo numa das mãos uma mãe mal humorada e na outra um presente embrulhado.

Sofia esperou que a mãe fosse embora e, então, juntando a coragem mais corajosa, chamou Tiago para conversar debaixo de uma árvore, tão longe quanto possível dos olhos de colegas e professores. Como sempre, descobriram que estavam ambos muito bem. Silêncio.

“Pensei que você não fosse vir hoje”, miou Sofia. “Tive que resolver um assunto primeiro”, desfiou Tiago, com o ar mais sério do mundo, em seguida estendendo para ela o presente que trouxera embrulhado. Sofia sorriu sem jeito e apanhou o presente – um conjuntinho de sachês perfumados, em formato de corações.

“Também tenho algo para você”, disse ela, com o coraçãozinho na boca. Entregou a ele o cartão de vermelho e purpurina. Desta vez foi ele a sorrir sem jeito.

“Eu também” ele disse, com os olhos grudados nos pés. Sofia sentiu o coração transbordar de uma alegria morna e desta vez seu sorriso teve jeito. Foi ela quem estendeu a mão a ele e os dois saíram andando juntos, como se nunca mais fossem se separar e como se tivessem esperado todos os seus longos cinco anos de idade para viver um momento como aquele.

15 maio, 2008

Colo nunca é demais

E a Renata escreveu lá no blog das Mamíferas de um jeito muito bacana sobre colo: Economia de Afeto. Adorei e concordo plenamente.

Eles crescem tão, tão rápido. E é tão bom ter colo quando a gente se sente pequenininho frente ao mundo.

E como este texto de qualificação está me consumindo, um bocadinho de Drummond para vocês e deixo para amanhã a tarefa de explicar porque me lembrei dele agora. É um poema que está em Claro Enigma.

Campo de Flores (Carlos Drummond de Andrade)

Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus-ou foi talvez o Diabo-deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.


Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.


Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.


Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
o sumo se espremeu para fazer vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.


E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.


Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.


Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visão extasiada.


Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde.


Ah, como eu adoro me fazer mais espaçosa e recuperar a maciez das mãos, dos ouvidos, da voz e do olhar, que o "contato furioso da existência"(também Drummond) vai desgastando e tornando áspero. Como adoro retornar aos meus mitos pretéritos e ainda encontrar espaço para novos mitos, novas crenças: fé renovada. Aprendi tudo com ele: a amar diferente.

Maurice, mon cher: se é importante pensar diferentemente, não será igualmente importante aprender a amar diferentemente? ;-)

Imagem: http://www.campusred.net/campusalud/info/info_noticias.asp?idn=1305

14 maio, 2008

Noturnos Imperfeitos


"Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tento tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento"
(Hilda Hilst, primeiro poema de Júbilo, Memória e Noviciado da Paixão).

Sempre gostei deste poema. Muito, aliás. Em tempos de recolhimento e silêncio, essas idéias arranjadas em palavras me ajudam a manter a esperança.

Minhas mãos têm tido desejo de terra; por isso andei comprando argila. E agora, a cada vez que não consigo pôr o que sinto em palavras, corro para a terra úmida e permito que meu corpo aprenda outras formas de dizer. Minhas escrivaninha vai ficando pequena para tantas imagens.

Durante algum tempo, no convívio com este poema, o que me chamava a atenção eram os versos Te olhei. E há tanto tempo/ Entendo que sou terra. Imaginava o espanto de uma mulher apaixonada que, nos olhar do amante, descobre-se outra. Não mais o rio, mas seu transbordamento: a mulher que se entende terra, úmida, vida e morte.

Terra é um elemento que se liga ao desejo: siderare é o nome que se dá aos astros, donde considerare significa ter os olhos fixos aos céus, tendo a vida orientada pelos astros. Finalmente, desiderare: perder o alto como orientação, cessar de ver os astros, estar fixo ao chão. O desejo nada tem de transcendente; ao contrário: ele nos liga à terra e nos condena à errância.

O poema me impressionava, portanto, pela delicadeza com que falava do desejo e do movimento que pode gerar em nós haver um outro que nos olha; me impressionava pela boniteza da imagem de reconhecer-se terra.

No entanto, das últimas vezes em que voltei ao poema, ele me falou de outra coisa. Me pareceu o apelo dolorido da mulher que teme que seu homem não seja capaz de vê-la em sua inteireza. por isso ela começa: Se te pareço noturna e imperfeita/ Olha-me de novo". Olha-me de novo e me dê a liberdade da noite e da imperfeição. "Olha-me de novo. Porque esta noite/Olhei-me a mim como se tu me olhasses". Olha-me, porque me vendo através de seus olhos, descobri-me outras, tantas; descobri-me água e terra, fogo e ar. Te olhei e o meu desejo por ti me prendeu ao chão, ao barro, ao imoldado. Então, olha-me de novo para que possamos dar forma a esta matéria de que somos feitos. Olha-me de novo para revivermos o gênesis.

Trata-se de um poema de amor e desejo. Mas agora estou mais marcada pelo apelo pungente que, no fundo, é o apelo que nos fazemos reciprocamente, cotidianamente, mudamente: Olha-me de novo. Porque todos entendemos que somos terra. E que um olhar atento nos faria novos, outros, restaurados.

O pedido desesperado dessa mulher apaixonada é o nosso próprio: olha-me de novo para que eu não me acostume com minha própria imagem desgastada, refletida em seu olhar. Olha-me com olhos novos. Olha-me de novo porque não sou sempre a mesma...

O poema é outra forma de dizer aquilo que Ana Cristina César também diz: "Você me ama? Então se concentre".

Olhar de novo exige concentração. Resumindo toda essa falação proponho-nos um novo mandamento: olhemo-nos de novo.

Imagem: "O fazer artístico", Paula Lyn Carvalho. Em: http://www.superimagens.com/sp/galeria/

Tratem bem o Espeto!

Vocês viram o Espeto aí do lado? É o porco-espinho que eu adotei. Achei tão fofo que não resisti: paixão à primeira vista.

Tratem bem dele e o alimentem com moranguinhos que ele vai ficar muito contente.

E um segredo: se você fizer carinho nele, ele dá pulinhos, cada vez mais altos.

Tô encantada com o bichinho.

Entre aspas

"Amor, isto não é um livro, sou eu, sou eu que você segura e sou eu que te seguro (é de noite? estivemos juntos e sozinhos?), caio das páginas nos teus braços, teus dedos me entorpecem, teu hálito, teu pulso, mergulho dos pés à cabeça, delícia, e chega -
Chega de saudade, segredo, impromptu, chega de presente deslizando, chega de passado em videotape impossivelmente veloz, repeat, repeat. Toma este beijo só para você e não me esquece mais. (Walt Whitman).

13 maio, 2008

E para terminar a noite...

Em Sex and the City, eu sou... a Samantha Jones!

Livre, linda e solta, essa é Samantha, personagem fogosa interpretada por Kim Catrall. Pessoas com esse tipo de personalidade são marcantes e brilham quando entram em qualquer ambiente. Você é provavelmente aquela amiga que não deixa ninguém de baixo astral, sempre mostrando o lado bom, divertido e glamuroso de tudo. Autoconfiança e sexualidade à flor da pele revelam uma mulher que sempre faz questão de ser forte e desejável. Mesmo que seja alguém incrível, o medo de se mostrar vulnerável pode atrapalhar seu crescimento pessoal, impedindo de vivenciar sentimentos bons.

Devo ter feito alguma coisa errada nesse teste, porque eu juro de pé junto que eu tenho muito mais da Charlotte que da Samantha.

Fiquei bege.


Para esquecer

Ainda hoje, vezemquando, no finalzinho do dia, com a descida da noite desce também uma sombra por detrás do coração, como se ele batesse mais pesado.

E ainda hoje, um susto quando topo com pedaços de você - uma boca no rapaz da fila; a textura da voz no balconista da farmácia; as mãos no frentista do posto. Um susto e uma alegria ao mesmo tempo - nos seus pedaços neles reencontrando as razões de tanto amor e desejo.

Ainda hoje - tanto tempo - lembrar de você é perder você de novo.


Fausto (2)

O Fausto é mais do que amado: volta e meia o reencontro dentro de mim.

Eu nunca entendi direito porque é que ele gostava de mim e, na verdade, às vezes achava até que ele não gostava (não acho mais, querido, não acho mais). O que obviamente não me impediu de passar três anos completamente intrigada e deslumbrada por ele, misturando admiração, medo e carinho (depois, continuei intrigada e deslumbrada, só aprendi a disfarçar melhor).

Eu morria de medo de decepcioná-lo e foi por isso que não contei para ele que estava pensando em prestar artes cênicas. Porque no fundo eu achava que aquela vida de teatro não era para mim - eu era muito cérebro para estar inteira numa atividade que exigia tanto do corpo e do sentir. Não contei para ele, mas ele acabou sabendo - e por muito tempo me culpei por achar que o tinha magoado ao ir fazer Ciências Sociais (embora essa escolha também passasse por um diálogo com ele, que era também meu professor de geografia).

E agora é que me dei conta: nas duas peças em que tive um papel - "Na Carrera do Divino" e em "Por Causa de Inês" - minhas personagens estavam grávidas. A Sá Rita, uma gravidez simbólica, com direito a um parto no palco para dar a luz à vida na nova terra. Dona Constança, uma gravidez acintosa e sem final feliz.

Afinal, talvez o Fausto soubesse como eu que me faltava uma aprendizagem do sentir, uma travessia que me possibilitasse usar o corpo de uma maneira mais viva. E talvez ele soubesse que, naquela época, o papel que melhor me cabia era esse da mulher em preparação, grávida, ambígua, nem (só) mulher nem (só) mãe - representação do ponto ao meio do caminho onde eu estava.

Doze anos depois, percorrida a Via Crucis do Corpo , acho que aprendi finalmente:

"O corpo. O corpo. O corpo.
O corpo é essa garrafa que eu quebro para viver derramado" (Carpinejar).

Fausto

Sábado passado estive em São José dos Campos. Além de visitar minha mãe, desta vez eu também tinha uma razão especial para estar lá: tinha sido convidada pela minha querida professora de português para ser jurada no Festival de Poesias do colégio onde estudei durante todo o colegial e do qual tenho tantas recordações.

O programa por si só rescendia a saudosismo - ir ao colégio, estar num festival de poesia (do qual participei uma única vez, para a felicidade dos jurados e do público, já que as musas da poesia nunca foram muito com a minha cara...). Mas sobretudo eu tinha um objetivo inconfesso: rever o Fausto.

O Fausto, além de ter sido meu professor de Geografia, foi principalmente meu diretor de teatro. Na verdade, ele era (e ainda é) diretor do grupo de teatro do colégio, mas nem por isso menos meu que enchia tanto a paciência dele, com minha presença insistente na porta da sala dos professores e as inúmeras cartas e bilhetes que enviava para ele (se serve de conforto, meu querido, os períodos mais intensos da minha vida estiveram marcados por essa fúria missivista, uma certa incapacidade de conter o desejo de comunicar a descoberta do mundo).

Depois de chegar ao colégio, encontrar a C., descobrir onde e o que teria que fazer, não demorou muito até ele aparecer: tão ou mais querido do que nunca. Fiquei tão feliz em vê-lo, tão feliz...que não queria mais largá-lo. Abraçá-lo foi como percorrer um longo caminho de volta.

E fiquei pensando se de vez em quando a gente não evita rever as pessoas queridas para não perceber a imensa falta que elas nos fazem. Fiquei pensando se o reencontro mais constante com quem amamos não tornaria a vida de todo dia infinitamente insuportável pois a quem interessam tantos detalhes, tantas "coisinhas" se o que vale mesmo a pena são esses momentos em que a gente se reconhece no outro, se dá conta de que temos passado, presente e futuro - cintilam um milhão de possibilidades pelo simples fato de que nos lembramos que não estamos sozinhos no mundo: estão lá aqueles olhos, aqueles braços, aquela presença que significa estar em casa.

Na crônica "Pequenas Epifanias", o Caio Fernando Abreu diz da felicidade lançada sobre a vida por instantes em que relampeja uma possibilidade de amor - a esperança que se incorpora a nós e nos torna menos sós...Faz como o amor pro João Cabral, nos "Três mal-amados" - come a fome, a dor-de-cabeça e o medo da morte.

Reencontrar o Fausto sem dúvida significou para mim uma pequena epifania - a possibilidade de ter história, de estar marcada pela existência de alguém, de ter construído vínculos tão fortes, tão fortes que sobrevivem ao tempo, à distância e à ausência.

Dor e delícia


Hoje de manhã, Rodrigo acordou, saiu da cama e foi indo para a sala. No caminho, fez alguma coisa fofa que eu nem me lembro mais, mas foi o suficiente para eu dizer: Eu te amo, filho. Ao que ele respondeu, eu te amo também, mamãe.
Com o coração quentinho, consegui fugir do edredom para ir dar um beijão nele.

E na hora do café. Estávamos conversando e ele me dizendo que depois queria ver "o pop" (é o clip do Pop goes my heart!, do filme Letra e Música). Ele adora. Vira e mexe a gente escuta ele cantando pela casa "pópi gos mai art"...No clip tem um coração. E lembrando disso, no café o Rodrigo me deu o coração dele :-)

***

Mais tarde, estávamos brincando de desenhar no tapete, e o menino só queria vir rabiscar no meu papel (e eu estava tão entretida, tentando fazer uma história em quadrinhos da música do "Tomatinho vermelho", que o Rô anda cantando a torto e a direito). Pedi para ele não rabiscar mais o meu papel e o que é que o simpático fez? Jogou o crayon no meu rosto! Ele anda nessa fase de bater quando está frustrado e a não tem sido fácil transformar essa raiva dele em outra coisa...Ele sai batendo em quem estiver na frente.

Fiquei brava, conversamos, ele chorou um montão. Mas depois pediu desculpas.
E a coisa de pedir desculpas é outra novela, né? Às vezes, ele faz algo errado e aí olha para a nossa cara já pedindo desculpa, já dando risada. Grrrrr.


Mas depois dessa briga, brincamos a manhã toda, sem maiores problemas: massinha, cola (ele gastou um tubo de cola e não colou nada! Já eu, fiz uma super paisagem de colagem, sem usar tesoura...excelente treino para a minha psicomotricidade...), legos. Aí ele cansou e foi dormir. Dormiu pouco, mas acordou feliz. E preguiçoooso.

***
E para encerrar este post, uma música de que me lembrei hoje, ao ver o Rodrigo com o casaco marrom que herdou do Diego. Na versão do Trio Esperança, à capela, Casaco Marrom (de Renato Correa / Danilo Caymmi / G. Guarabyra):

Eu vou voltar aos velhos tempos de mim
Vestir de novo o meu casaco marrom.
Pegar a mão da alegria e sair.
Bye bye, Cecy "nous allons"
Copacabana está dizendo que sim
Botou a brisa à minha disposição
A bomba h quer explodir no jardim
Matar a flor em botão
Eu digo que não
Olhando a menina
De meia estação
Alô coração,
Alô coração, alô coração

Vamos lá gente, que num dia cinza que nem hoje, não tem nada melhor que pegar a mão da alegria.

Imagens:
(1) http://www.stuffedsquares.com/index.php?main_page=product_info&products_id=112&language=pt
(2) http://www.canalcontemporaneo.art.br/arteemcirculacao/archives/001284.html

12 maio, 2008

Fome

Fim-de-semana intenso de visita às mães. No domingo, depois do almoço absurdamente delicioso que minha mãe fez, não resisti e fui cochilar. Quando acordei, me contaram que o Rodrigo disse:
-Estou com foooome...de mamãe!
E quando eu acordei, ele veio correndo e me deu um abraço apertado e um sorriso derrete-gelo.

Meu filho aprendeu a falar de falta. E de desejo.

11 maio, 2008

Sobre pais e mães


Animada pelos sentimentos despertados pelos post sobre meu pai, a Renata escreveu lindamente lá no blog dela sobre o seu pai. E foram interessantes os comentários ao que ela escreveu, todo mundo se identificando um pouco - uns mais outros menos reconciliados com essas pessoas e esses personagens que podem ser tão decisivos (pro bem e pro mal) na vida da gente.

Me chamou a atenção um comentário em especial, que dizia ser uma importante descoberta essa de perceber que os homens da geração de nossos pais eram confusos, um pouco meninos e não sabiam bem o que fazer conosco.

Meu marido é um "tantinho" mais velho que eu (está mais próximo em idade e geração à minha mãe do que de mim). No dia em que nos conhecemos, conversamos longamente, ele me contando de sua separação, da falta que lhe faziam as filhas, do imenso esforço em não perder o convívio com elas...Essa certamente foi uma das coisas que me seduziram nele: essa clareza de não perder de vista seu papel de pai só porque o casamento tinha acabado.

Algumas vezes me peguei pensando quanta diferença fazia se separar há 20 anos (quando isso não era comum) e há 10. É pouco tempo, mas estamos separados por um abismo no que se refere às representações de família, casamento, indivíduo...

Separar-se - ou ser filho de pais separados - era um estigma, motivo de pena ou desculpa para maus comportamentos. Era razão para ser mandado para a terapia, para ser discriminado na escola... Ser separado era sinal de fracasso pessoal, da incapacidade de conciliar as diferenças ou egoísmo frente ao desamparo dos filhos. Era partindo dessa constatação que eu entendia, em parte, o comportamento do meu pai logo após a separação.

E por isso também a minha admiração pelo Edu era maior: eu achava que ele era muito moderno, muito cosmopolita nessa coisa de distinguir os papéis e saber manter-se perto; de não ter suportado a idéia de se afastar para "se resolver" com suas dores em nenhum momento. A Bia e a Jú sempre foram filhas dela e ponto. Sem dúvida; sem nem uma sombra de dúvida.

Mas vejam: isso não o torna menos desajeitado em seu amor por elas. Ele não tem nada de menino, é super adulto. Ele não se ausenta - pelo menos não fisicamente. Mas não sabe bem o que fazer com essas duas meninas (na verdade, hoje uma mulher e uma menina-moça), não sabe como chegar perto delas... Podem ser os ecos nipônicos em sua alma; podem ser os reflexos de geração: não sei bem se importa. O fato é que ele é desajeitado e provavelmente elas têm em relação a ele sentimentos tão ambíguos quanto o que nós temos por nossos pais - essa mistura de admiração e distanciamento, de amor e ódio, de aconchego e dureza.

Acho que as dores todas aparecem - em relação a pais, em relação a mães - porque a gente sempre espera (mesmo quando cresce e descobre que eles não são super heróis) que eles nos cuidem, que saibam o que fazer, que nos orientem, que nos protejam...A gente às vezes se relaciona com o papel, e não com a pessoa. Ou nos relacionamos com aquela imagem de pai e mãe que nos ficou da infância, com dificuldades de perceber que mudamos nós, mudaram eles.

Talvez seja por isso que eu aposto numa relação com o Rô que às vezes nem sei bem se é de mãe e filho. Somos nós dois, nos reconhecendo o tempo todo. Isso não significa deixar de cuidar dele, de mostrar a ele o certo e o errado, nem me recusar a oferecer a ele alguns contornos claros sobre o que é a vida. Significa sim um olhar atento, o reconhecimento junto com ele que de vez em quando erro, perco a cabeça, não sou perfeita, enfim. Mas estou aqui, com ele, pro que der e vier.

É tão difícil. O mais comum é se sentir desajeitado diante dos outros, tanto mais diante dos seres pequeninos que nos amam, nos olham tão de perto e esperam de nós toda certeza do mundo. Nessas horas, é mais fácil ser um papel - nos aproximarmos do que imaginamos que são as mães, os pais, e agir como se soubéssemos exatamente o que estamos fazendo. Mesmo que na maior parte das vezes não saibamos. Mesmo que vira e mexe a gente se sinta tão criança quanto o filho que espera de nós uma resposta.

Tem jeito de não ser desajeitado quando a gente contém no corpo tanto amor?

Imagem: http://familias-online.blogspot.com/2007/05/famlia-ontem-hoje-amanh-sempre.html

10 maio, 2008

A vida é tão bonita


"A vida é tão bonita, basta um beijo e a delicada engrenagem movimenta-se, Uma necessidade cósmica nos protege".

(Adélia Prado)

Foi outro dia, numa conversa com o Mauricio, que percebi: a minha gravidez e o parto do Rodrigo foram minha travessia, minha aprendizagem dos prazeres. Fico cada vez mais radical, no sentido de me aproximar cada vez mais das minhas raízes, do que de fato me faz sentir viva, com sangue/seiva correndo nas veias.

É como se uma porta tivesse sido aberta: talvez porque é difícil ser mãe sem se desdobrar, desdobraram-se em mim outras formas de ser mulher, de ser pessoa, de experimentar a vida, de ser corpo e de ser alma.

Acho que foi com o Rô que redescobri como a vida é bonita. Levando-o ao teatro, cantando canções antigas (como "Minha Canção", dos Saltimbancos) e descobrindo com ele canções novas (como "Só quero ver", do Palavra Cantada), contando para ele histórias que tanto significam para mim (como Chapeuzinho Amarelo, do Chico Buarque) e contando também histórias que passaram a significar para nós (como Raimundo e a Menor Banda do Mundo, do Sérgio Serrano).

É impressionante como a gente pode ir deixando de lado as coisas que ama - eu adoro teatro, literatura, música... Mas só quando o Rô nasceu é que me dei conta de que tinha largado mão de tantas coisas que tinham tanto a ver com quem sou, do que gosto.

Logo que ele nasceu e me olhou com seus olhos de curiosidade e reconhecimento e, depois disso, todas as vezes que ele me olha tentando entender o mundo, me vejo obrigada a reconhecer quem eu sou e o que é o mundo para mim.

Nas peças que íamos ver, eu ficava tão maravilhada quanto ele com as cenas, as delicadezas, as surpresas de cor e som. Nos shows - mesmo os em DVD, como do Palavra Cantada e da Adriana Partimpim - a gente ia descobrindo juntos um trechinho novo de música, uma cara nova, um instrumento novo. E as histórias, são sempre uma delícia, de tempos em tempos ele cisma com uma diferente e aí é um contar e recontar até ele mesmo ser capaz de reproduzir a história, com as minhas próprias caras e bocas, guardando melhor os trechos que para ele significam mais.

E a cada momento desses, eu sei: a vida é tão bonita.

Não tem nada a ver com uma negação da realidade, como no filme "A vida é bela"; não é preciso mascarar a realidade, nem enfeitá-la, nem torcê-la até que pareça que estamos vivendo no interior de uma ficção. Sem comerciais de margarina, please.

(Sou muito mais a franqueza da Dora, de Central do Brasil, dizendo pro menino que sua mãe não vai mais voltar).

Acho que é mais uma coisa meio drummondiana, tipo a flor que nasce no asfalto. O bonito é que mesmo em tanta dureza, feiúra, maldade, dor, nasçam flores. Nasça uma cena que arrepia; um texto que leva às lágrimas; uma música que transforma tudo o mais em silêncio; uma textura que surpreende e encanta. A vida é bonita porque nesse leve assombro que nos entreabre a boca, as margens da vida se ampliam um pouco e a esperança volta a ser possível.

Antes do Rodrigo, acho até que eu era feliz. Mas depois dele, sou muito mais intensa, muito mais corpo, muito mais alma, muito mais leonina: muito mais humana. Sofro mais, gozo mais. O açucar é mais doce e o sal mais salgado.

E eu adoro.

Imagem: Marc Chagall, Springtime in the meadow, 1961
Fonte: http://www.weinstein.com/chagall/marc-chagall.html

09 maio, 2008

Sobre vinte e um gramas


Algumas pessoas saíram no meio da projeção, incomodadas com a violência, reclamando do “peso” do filme (não, não vou tirar sarro dizendo que é leve, só 21 gr). Mas eu gostei do filme, não achei pesado, nem violento. E o Edu me disse que um crítico escreveu que o filme é sobre vingança. Também não acho.

Acho que o filme é sobre a luta que a gente trava com a vida – é um filme sobre a permanência e a mudança; sobre as possibilidades de continuar vivendo e a paralisia; sobre aquilo que a gente recebe por graça e aquilo que a gente se morde para ter. Eu acho que é um filme sobre a vida não dar bola para a gente e seguir seu curso – e é por isso que no meio da vida tem a morte e no meio da morte tem a vida.

Tem um homem que está morrendo e não morre mais, mas depois acaba morrendo. Tem uma mulher que estava morrendo e foi salva pela vida das filhas mas que depois quase perde tudo quando estas morrem para ganhar a vida de novo ali adiante. Tem outro homem que se salvou ganhando a vida eterna e depois a perdeu ao tirar algumas vidas mas que depois, num encontro de todos esses mortos-vivos, ganha vida de novo, não a eterna, mas essa mundana e transitória mesmo.

E toda a tragédia e toda a alegria brotam desse mesmo esforço – que é de todos os personagens – em recusar o que a vida lhes reserva. É o coração novo – graça – e o desconforto com ele que levam Sean Penn a procurar e encontrar Naomi Watts. É o encontro com ele, e a recusa progressiva da felicidade que poderia advir disso, que faz com que ela se perca, no esforço de vingar-se da vida por sua perda. É isso que a leva até Benicio del Toro, que não pode mais viver consigo mesmo e por isso se afasta de todos os laços – suportes da insuportável memória. E é o encontro com ele – é o encontro de todos esses personagens, desgraçados no sentido literal do termo pois perderam as suas graças – que vai mudar tudo de novo.

Se há algum “peso” da narrativa do filme é a sua semelhança com a trajetória dos personagens bíblicos. Como já mostrou Auerbach, comparando Ulisses e Abraão, enquanto o personagem de Homero se desloca no espaço para viver aventuras e retornar ao ponto de partida inteiro, ileso, Abraão verdadeiramente sofre, verdadeiramente goza, verdadeiramente vai ficando marcado pela graça e pela punição divinas. Mas os personagens bíblicos, porque sofrem a miséria, vivem também a glória.

Então, acho que se trata de um filme que consegue falar com delicadeza dessa nossa condição – a vida é assim mesmo, nada é definitivo, as graças vêm e vão, as tragédias vêm e vão e – também à semelhança da narrativa bíblica – jamais saberemos as intenções ocultas por detrás do que nos acontece (se as houver). Por isso, talvez pudéssemos pensar que não adianta tanta luta. Mas aí, deixaríamos de ser humanos.


* Texto escrito há um tempão - quando 21 gramas estava em cartaz.

Imagem: http://www.kboing.com.br/papeldeparede/m_papeldeparede.php?papel=7530sagrado_coracao

Hoje, só amanhã

E eu estou aqui às voltas com o texto de qualificação, num parto longo e demorado mas que já está bem adiantado...

Por isso hoje, ainda que tenha alguns assuntos sobre os quais gostaria de escrever, só amanhã.

Só conto rapidinho uma conversa com o Rodrigo, às 7h da manhã. No meio da madrugada, o bichinho tinhado ficado com frio e tinha pedido vir para a nossa cama (ele ainda perdeu o sono, ficou me cutucando até umas 5h30, mas deixa para lá...). Então, às 7h escuto uma vozinha meio sussurrada: "quero mamaaaar, quero mamaaaar".

Levantei, dei mamá para ele e, como sempre, quando acabou ele ficou jogado no meu colo, rindo muuuito. Mas em seguida pediu a chupeta (um dia conto a saga da chupeta, tanto das razões de termos dado, quanto da dificuldade em ajudá-lo a se livrar do vício).

- Quero a chupeeeta (ainda deitado no meu colo).
- Ah, Rô. Não. Pra que chupeta, vamos tomar café.
- Mas mãe, eu tô com fooome de chupeeeta.

Essa foi nova!

E na hora de ir para a escola, ele resolveu que ia:
  • - de papetes do homem-aranha, usadas com meia;
  • - de luvas
  • - com o chapéu de caubói que ganhou do pai.
Aliás, ontem o Edu voltou, enquanto ele estava na escola. Quando fomos buscá-lo, o Edu comentou com ele que tinha trazido "um presentinho pro Rodrigo". Tá. Aí, antes de voltar para a casa, fomos buscar a Júlia. Quando o Rô viu que não estávamos indo pra casa, soltou:

- Não! Não quero buscar a Júlia. Quero ir para casa, ver meu presentinho.

Interesseiro?

Aí agora só quer saber do chapéu. De manhã, quando me comunicou que iria levar o chapéu na escola, comentou:
- Vou levar na escola, esse chapéu que é da minha casinha, pra mostrar pro pessoal. Eu vou deixar a A. L. e o P.G. brincarem, tá mãe?

Ai, ai. E não tem nem três anos...

07 maio, 2008

Poema

E como ando ouvindo meus CDs (ia dizer discos...) prediletos, hoje ouvia Ney Matogrosso cantando Poema, do Cazuza:

"Eu hoje tive um pesadelo
E levantei atento, a tempo
Eu acordei com medo
E procurei no escuro
Alguém com o seu carinho
E lembrei de um tempo

Porque o passado me traz uma lembrança
De um tempo que eu era criança
E o medo era motivo de choro
Desculpa pra um abraço, um consolo

Hoje eu acordei com medo
Mas não chorei nem reclamei abrigo
Do escuro, eu via o infinito
Sem presente, passado ou futuro
Senti um abraço forte, já não era medo
Era uma coisa sua que ficou em mim
E que não tem fim

De repente, a gente vê que perdeu
Ou está perdendo alguma coisa
Morna e ingênua que vai ficando no caminho
Que é escuro e frio, mas também bonito porque é iluminado
Pela beleza do que aconteceu há minutos atrás"

Meu pai - II

O Rodrigo tem um livro de canções tradicionais, presente da Martina. E nesse livro tem uma parlenda que é assim: "Era uma vez, três...Ah! Esqueci. Posso contar outra vez?".

É tão bonita essa forma infantil de chamar de esquecimento o que é invenção e experimentação do que poderia ser verdade.

Logo que meus pais se separaram, meu pai se afastou. Acho que ele não sabia ser pai sem ser marido, e precisou de um tempo para aprender.

Eu sentia muito a falta dele. Porque mesmo que me contem histórias de como ele implicava comigo o tempo todo, eu me sentia a "filhota" do papai; me sentia querida por aquele homem desajeitado que eu não conseguia entender. Tanto assim que mentia encontros e presenças - inventava para diminuir a falta.

As más lembranças que tenho são do final do casamento, e não dele. Hoje eu sei.

Dele ficaram pedaços como: o gosto de ficar sozinho (com seus rocks); a inabilidade para cozinhar (sério, lembro dele fazendo uma sopa Maggi e não deu certo); a mágoa quase infantil quando cantávamos, eu e a minha irmã, "Jerônimo, filho de maria-mole" (era só uma brincadeira com a música tema da novela, mas a gente não compreendia o quanto a vó - Maria - era importante para ele); o gosto pela velocidade e pelo risco nas estradas; o senso de humor inteligente, que demorei muito tempo para começar a entender.

Era uma vez três...Posso contar outra vez?

Meu pai era incompreendido. Perdido numa família incapaz de reconhecê-lo; perdido na armadilha de não saber se dar a conhecer. E quando ele se afastou, o que era desconcerto e vontade de descoberta se transformou em abismo.

Um abismo que espero que tenhamos tempo para desfazer. Era uma vez três...Será possível contar outra vez?

06 maio, 2008

Pobre do homem que é amado por uma poeta


"Nem é justo, Dionísio, pedires ao poeta

Que seja sempre terra o que é celeste
E que terrestre não seja o que é só terra".
(Canto VIII, na voz linda de Olívia Byington)


Ainda não consegui escrever direito sobre o CD dos poemas da Hilda Hilst, musicados pelo Zeca Baleiro. Tenho algumas primeiras impressões, outras tantas segundas, terceiras e quartas...Mas está difícil transformá-las em palavras.

Deixo aqui então só um pedacinho do canto IV, cantado pela Jussara Silveira:

"Porque te amo, Dionísio,
É que me faço assim tão simultânea

Madura, adolescente

E por isso talvez
Te aborreças de mim"
, (Hilda Hilst, Canto IV, Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé)

Como já disse, adoro esses amores que despertam a imensa liberdade de se experimentar, de ser várias, de parecer outras.

E, anunciando uma primeira impressão, uma das sensações que tive escutando o CD pela primeira vez foi: pobre do homem que é amado por uma poeta. Porque ele pode se sentir escolhido, enaltecido pelas virtudes de quem está lhe amando. Mas o fato é que o amor está na poeta, à espera de objeto mas, em certo sentido, à despeito de qualquer objeto.

Os poemas da Ode Descontínua... falam mais sobre ausência e falta do que sobre a presença de Dionísio. Em parte porque foram escritos para um amor clandestino - biograficamente falando. Mas poeticamente falando, é a falta que dá impulso às palavras. O primeiro canto, aliás, diz:

"É bom que seja assim, Dionísio,
que não venhas",
(na voz de Rita Ribeiro)

E ela segue dizendo que, se o amado estivesse ali, presente, ela estaria com ele mas perderia o mundo. O próprio mundo que ela usa (em palavras) para se preparar, para estar sempre preparada quando ele vier.

E no canto II (Verônica Sabino):

"(...) Tu sabes,
Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira
Poeta".

E no canto III (Maria Bethânia), é como poeta que ela vai se inconformar com a ausência (igualada à falta de amor):

"A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla e argonauta

Por que recusas amor e permanência?"


A referência a si mesma como poeta é constante. Não é apenas uma mulher apaixonada que fala, louvando ou cobrando o amado. É a poeta que fala, é a poeta que ama, é a poeta que constrói um universo inteiro a partir de um amor que poderia nem existir de fato:

"E fingindo altivez digo à minha estrela
Essa que é inteira prata, dez mil sóis
Sírius pressaga

Que Ariana pode estar sozinha
Sem Dionísio, sem riqueza ou fama
Porque há dentro dela um sol maior:

Amor que se alimenta de uma chama
Movediça e lunada, mais luzente e alta

Quando tu, Dionísio, não estás".
(Canto VI, lindamente cantado pela Ná Ozzetti)

Essa mulher que aparentemente espera e suporta a ausência, é ativa na criação e na transfiguração da vida:

"Tenho meditado e sofrido (...)
Pensando

Que se a mim não me deram
Esplêndida beleza
Deram-me a garganta
Esplandecida: a palavra de ouro
A canção imantada
O sumarento gozo de cantar
Iluminada, ungida".
(Canto IX, na voz da Mônica Salmaso).

Embora fale de falta, não há falta alguma: há sim a presença do amor, encarnado nas palavras e cantos. Uma preparação constante para um Outro, Dionísio; mas tanto faz se ele virá ou não porque se ele viesse, não apenas a poeta continuaria atuando, como se transfiguraria ela mesma em melodia:

"Se todas as suas noites fossem minhas
Eu te daria, Dionísio, a cada dia
Uma pequena caixa de palavras
Coisa que me foi dada, sigilosa

E com a dádiva nas mãos tu poderias
Compor incendiado a tua canção
E fazer de mim mesma, melodia"
(Canto X, na voz de Ângela Maria).

Se o amado estivesse presente, portanto, não lhe restaria alternativa a não ser se transformar também em poeta: o que essa mulher quer mesmo é ser transformada em pura poesia, consubstanciar-se com a palavra (e não com qualquer homem...).

Portanto: pobre do homem que é amado por uma poeta. Julga estar sendo amado por quem é, mas apenas merece amor por dar corpo ao imenso amor que na poeta sempre se prepara.

Bom. Não consegui ainda falar do CD propriamente dito. Mas já foi um começo...

* Este post é dedicado à Juliana B., meu anjo torto. Há muito tempo que não nos vemos, mas ela continua sendo minha companhia nessa beira de estrada, desse lado ensolarado que eu achei para caminhar.

Imagem: http://astronomia-algarve.blogspot.com/2007/04/o-sol-2.html

05 maio, 2008

Meu pai

Meu pai é desajeitado. Sempre me lembro dele assim. E um desajeito que não tem nada a ver com derrubar as coisas, quebrar copos ou pratos: é um desajeito para a vida e principalmente para o amor.

É raro falar dele - mas quando falo, sou obrigada a reconhecer o quanto o carrego dentro de mim: o orgulho de menina sentada na mesa do bar com ele; a pequeninice da minha própria voz cantando O Caderno em um dueto com ele; o desconcerto em vê-lo chorando quando lhe mostrei meus brincos novos.

Meu pai, gaúcho que nunca se achou em outro lugar, menino que nunca se achou em outra idade, homem que nunca se achou com mulher nenhuma. Meu pai é desajeitado. Mas mesmo há tanto tempo sem vê-lo, a coleção de cacos das pequenas lembranças que tenho dele resta intacta dentro de mim. É uma ausência que espeta, machuca, de vez em quando rasga: mas não a troco por nada-nada-nada.

* Eu realmente quase nunca falo sobre o meu pai. Não por falta de amor, mas porque não nos vemos há muito tempo e é mais fácil viver sem lembrar o tempo todo dessa distância. Mas o Carpinejar acaba de lançar uma reedição revista de Um terno de pássaros ao sul e lançou um desafio lá no blog dele, premiando quem escrever a lembrança mais tocante sobre o pai com o livro, autografado por ele. Então resolvi tentar escrever um bocadinho sobre o meu pai; não para ganhar o livro, mas para lembrar mesmo.

04 maio, 2008

Do Livro das Epígrafes - II



Com essa história de escrever quase todo dia, parece que vai ficando mais fácil encontrar os fios que a vida deixou soltos lá atrás para amarrá-los hoje, nesse esforço de - costurando passado, presente e futuro - consistir um pouco mais.

E então topei com esse pedacinho de poema do Gullar, que estava guardado lá no livro das epígrafes e que eu adoro:

Amigos morrem,
as ruas morrem,
as casas morrem.
Os homens se amparam em retratos.
Ou no coração de outros homens".
(Ferreira Gullar).

Sensação de gratidão e eternidade, olhando a trama, por amparar tanta gente no meu coração. E poder me sentir amparada também: nos olhos, braços, gestos e palavras daqueles que eu amo.

Imagem: http://www.overmundo.com.br/banco/patchwork

02 maio, 2008

Sinceridade é tudo

Hora do lanche, Rodrigo pedindo Coca-Cola:
- Quero Coca-Cola!
- Então espera que a Bia vai pegar outro copo.
Enquanto isso, Rodrigo fica fazendo bagunça com o copo de suco de soja que ele estava tomando. E eu digo para ele parar. Como ele não pára, aviso:
- Se você não parar agora, não vai tomar Coca-Cola. Um. Dois. Três. Não vai mais tomar.
Arrependido, ma non troppo:
- Desculpe, mamãe. Eu quero Coca-Cola.
- Mas você vai se comportar?
- Não.
Como disse a Júlia (a irmã do meio): Sinceridade é tudo.

Do livro das epígrafes - I


Eu tenho um caderno, há muito tempo abandonado, em que anoto trechos e passagens de livros que são tão perfeitos em si mesmos que me parecem passíveis de serem utilizados um dia como epígrafes. Na verdade, é minha coleção de preciosidades literárias.

O caderno tem nome: O Livro das Epígrafes. E é dedicado a duas pessoas: Walter Benjamin e Rodrigo Pereira.

Como hoje continuo trabalhando e não vou conseguir roubar uma horinha para escrever, deixo vocês com a Clarice, num texto tão bonito e certeiro que bem poderia servir de epígrafe para esses meus dias.

"Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço. Além do quê: que faço dessa lucidez? Sei também que esta lucidez pode-se tornar o inferno humano - já me aconteceu antes. Pois sei que - em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade - essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir de modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém" (Clarice Lispector).

Imagem: M.C. Escher, Drawing Hands, 1948. Em
www.rockjwalker.com/.../Escher-DrawingHands.jpg

01 maio, 2008

Abismo

"irei à fronteira
olharei o abismo
então decidirei sobre o salto"
(Paulo Nubile)

E por que é que mesmo depois da decisão tomada me tenta a saudade da beirada, a saudade do impulso de pular?

E por que é que mesmo depois da decisão tomada e dos passos retrocedidos, parece mais é que estou em pleno vôo?
Há um certo desbalanço na maneira com que atualmente temos levado a vida: deixamos de marcar, ritualizar as celebrações de vida e assim ficamos com a incômoda impressão de que só há perdas e mortes a celebrar.

Ultimamente tenho sentido necessidade de revisitar alguns dos meus autores prediletos, entre eles o Walter Benjamin. E ontem me lembrei de um texto da Jeanne-Marie Gagnebin sobre os anjos nos textos do Walter Benjamin.

Lá nas "Teses sobre o conceito de história" aparece o comentário sobre o quadro de Klee, o anjo tosco e deformado, que tem os olhos voltados para o passado mas que é impelido vigorosamente pela tempestade do progresso na direção do futuro. É um anjo caído, mundano, que não vê sentido no passado porque não é capaz de estabelecer uma ruptura no presente, distinguindo um momento em que os acontecimentos se encadeiam, ganham sentido e humanidade.

Já em outro texto - Infância Berlinense - o anjo não é mais do que uma brisa que sopra, trazendo o "pressentimento de uma outra felicidade possível" que não esta que escolhemos para nós.

Ambos os anjos são impotentes uma vez que nesse mundo não há espaço para eles - por isso são toscos, incapazes de fazer cumprir a mensagem que vêm anunciar. Como a Jeanne-Marie sugere, radicalizando a sugestão de Benjamin, são os homens que precisam agora ajudar estes anjos a concluírem sua tarefa.

Esta mensagem celebra os seis anos de vida em comum entre Edu e eu. E por mais que seja estranho escrever uma mensagem de celebração falando de desequilíbrio e anjos impotentes, o início da convivência com o Edu - assim como os primeiros momentos de encontro com alguém que começamos a amar - tinha muito este caráter de brisa. Cada novo dia ao lado dele fazia pressentir uma felicidade plena, infinita e eterna.

Depois de seis anos, um mestrado e um doutorado a meio caminho, a perda de um pai, o nascimento de um filho e mais uma porção de pequenas e grandes coisas que se acumulam nessa vida em comum, bem...a felicidade plena parece um pouco distante. De vez em quando viramos nós mesmos o anjo de Klee, incapazes de sair da tempestade da linearidade do tempo, impotentes para ver com calma o que realmente importa.

Agora, nossa possibilidade de redenção parece novamente se concentrar nos ouvidos e nos olhos atentos, à espera de que uma brisa traga consigo o canto de um anjo, que abra de novo as portas do tempo e do espaço e deixe entrever outra felicidade possível - a realização das promessas dos tempos do começo.

Trazer o passado pro futuro, misturar transitório com eterno, acreditar que pequenas epifanias podem ser tão transformadoras quanto grandes acontecimentos, abrir espaço para celebrar os fatos da vida carregando de sentido a morte - Edu, querido: depois de seis anos, continuo querendo fazer tudo isso do teu lado, para que sejamos mais potentes que os anjos do Benjamin, para que sejamos mais humanos, para que a vida valha a pena, para que transbordemos as margens do possível e da morte.

* Este texto é de novembro do ano passado.
** Como é dia do trabalho, estou trabalhando. Por isso, hoje não tem texto novo. Quem sabe amanhã?
*** E o Edu me deu mesmo o CD com os poemas da Hilda Hilst musicados pelo Zeca Baleiro. Quero escrever sobre isso, mas desde já adianto que a Angela Ro Ro é mesmo tudo de bom nessa vida!

Imagem: Angelus Novus, Paul Klee