Como andei arrumando o imenso número de cartas guardadas, encontrei uma da Raquel em que ela comentava a primeira conversa que teve com uma amiga sobre a morte de uma amiga nossa, a Fabiana.
A Fá cresceu com a gente: morávamos todas no mesmo prédio, e a Fá era uma das líderes das aventuras e brincadeiras. Ela era linda, e um pouco mandona também. Mas era muito legal, e assim a gente perdoava esse pequeno defeito...
No final de 95, quando ela tinha 16 anos, descobriram um câncer. Só essa notícia já foi um grande choque, pra todo mundo. Logo a Fá, saudável e bailarina formada? Logo a Fá, tão nova e começando a viver? Logo a Fá, que mal começara a desabrochar em mulher?
Eu estava no cursinho e logo depois fui para São Paulo. Ainda conseguia vê-la de vez em quando, nos finais de semana. Às vezes mandava cartas. E embora ela tenha ficado um longo tempo após o transplante de medula num hospital em São Paulo, nunca tive coragem de ir visitá-la. Não no hospital, não na UTI.
No fundo, eu não acreditava na gravidade da situação. Preferia achar que depois do tratamento tudo ficaria bem, ela ficaria curada e aquilo ficaria como vaga lembrança no percurso da vida - dela, de todos nós. Talvez por isso ache tão precisa a expressão da Cris: "a burrice bonita de que é feita a última esperança". Até o último dia, eu não acreditei que era verdade.
Lembro de conversar muitas vezes sobre a Fá com a Ana Lúcia. Ela meio me prevenindo, meio me acalentando, com sua precoce experiência de ter perdido a mãe e conhecer a burrice bonita de se recusar a aceitar.
E então, uma semana antes do meu aniversário, eu estava em São José e me disseram que ela não estava bem. Fui vê-la no hospital, num quarto de enfermaria que abrigava só a ela e sua família, um quarto na penumbra, cercada da mãe, da avó e do irmão. A respiração curta e rápida, o corpo frágil e cansado. Mas ainda assim, um pouco de aconchego.
À noite, no jantar, ainda tentávamos compreender direito o que acontecia quando o interfone tocou. E era a mãe da Rá, avisando que ela acabara de morrer. A casa da Rá virou o ponto de reunião: por medo, por instinto, acabamos ficando todos juntos - a família dela, a Mari e eu, Felipe e Daniel, Paulo, Suzi...Talvez para sufocar a dor com o excesso de presença.
O velório foi na capela bem próxima ao nosso condomínio. Lembro-me de me preocupar com detalhes bobos, como preparar café. Talvez pelo velório ter sido tão próximo de casa, a morte tenha se tornado um pouco mais próxima também, não sei.
O que sei é que depois, passei um longo período como que flutuando sobre a vida. Via os dias se sucederem, mas a morte da Fá me arrancara do fluxo da vida. Uma semana depois, foi meu aniversário. No 7º dia. Minhas companheiras de república não fizeram festa, contentando-se em escrever "feliz aniversário" com catchup no pão de fôrma dos nosso lanches. E não consigo olhar aquela foto, em que seguro o sanduíche, sem notar meus olhos ausentes.
Por outro lado, a morte dela me atirou com intensidade à vida. Eu, sempre tão disciplinada, certinha e séria, aprendi que a vida é curta. "Muito curta pra ser pequena", como gostava de dizer o meu tio. Fiquei querendo uma vida larga, uma vida plena. Pra nunca ser interrompida e estar sempre pronta para a chegada da "indesejada das gentes".
Por muito tempo, ela foi uma das minhas principais interlocutoras. Falei muito com ela, para ver se ela me ensinava, da perspectiva de quem partiu cedo. É que ela adorava conversas filosóficas...adorava conversar para tatear a vida. Durante muito tempo também me culpei de não ter estado mais perto dela, de não tê-la visitado mais, escrito mais, inventado mais presenças. Foi por burrice, Fá: achei que haveria tempo.
Quando, no final daquele ano, a Mari ainda nem tinha certeza de que estava grávida, ela teve um sonho em que a Fá vinha e trazia para ela um bebê. E, de fato, a Juju veio, encheu a casa de vida e de esperança. A vida, seguindo seu rumo.
Ao longo da vida, a lista dos meus mortos foi se alongando. Embora eu já não os sinta como um enorme peso. Fui aprendendo que vida e morte andam juntas. O que, obviamente, não diminui a dor pelos que se foram - por vezes até a aumenta, porque no momento-quando não há nada mais difícil do que saber que será necessário continuar. Mas a vida é ciclo e também é cheia de bonitezas. E ainda que o objetivo da beleza não seja nos salvar da dor, ela nos redime um pouco - relampejo de vida, no meio da vida, no meio da morte.
* E para quem precisa de provas da relação entre vida, morte e beleza, recomendo o Para Francisco, que agora virou livro. A escrita da Cris e o esforço de apresentar ao Francisco o seu pai, são registro e expressão de como vida e morte se misturam. E também de como a beleza - na escrita, mas também em todos os gestos - pode ser tecida para nos amparar.
A Fá cresceu com a gente: morávamos todas no mesmo prédio, e a Fá era uma das líderes das aventuras e brincadeiras. Ela era linda, e um pouco mandona também. Mas era muito legal, e assim a gente perdoava esse pequeno defeito...
No final de 95, quando ela tinha 16 anos, descobriram um câncer. Só essa notícia já foi um grande choque, pra todo mundo. Logo a Fá, saudável e bailarina formada? Logo a Fá, tão nova e começando a viver? Logo a Fá, que mal começara a desabrochar em mulher?
Eu estava no cursinho e logo depois fui para São Paulo. Ainda conseguia vê-la de vez em quando, nos finais de semana. Às vezes mandava cartas. E embora ela tenha ficado um longo tempo após o transplante de medula num hospital em São Paulo, nunca tive coragem de ir visitá-la. Não no hospital, não na UTI.
No fundo, eu não acreditava na gravidade da situação. Preferia achar que depois do tratamento tudo ficaria bem, ela ficaria curada e aquilo ficaria como vaga lembrança no percurso da vida - dela, de todos nós. Talvez por isso ache tão precisa a expressão da Cris: "a burrice bonita de que é feita a última esperança". Até o último dia, eu não acreditei que era verdade.
Lembro de conversar muitas vezes sobre a Fá com a Ana Lúcia. Ela meio me prevenindo, meio me acalentando, com sua precoce experiência de ter perdido a mãe e conhecer a burrice bonita de se recusar a aceitar.
E então, uma semana antes do meu aniversário, eu estava em São José e me disseram que ela não estava bem. Fui vê-la no hospital, num quarto de enfermaria que abrigava só a ela e sua família, um quarto na penumbra, cercada da mãe, da avó e do irmão. A respiração curta e rápida, o corpo frágil e cansado. Mas ainda assim, um pouco de aconchego.
À noite, no jantar, ainda tentávamos compreender direito o que acontecia quando o interfone tocou. E era a mãe da Rá, avisando que ela acabara de morrer. A casa da Rá virou o ponto de reunião: por medo, por instinto, acabamos ficando todos juntos - a família dela, a Mari e eu, Felipe e Daniel, Paulo, Suzi...Talvez para sufocar a dor com o excesso de presença.
O velório foi na capela bem próxima ao nosso condomínio. Lembro-me de me preocupar com detalhes bobos, como preparar café. Talvez pelo velório ter sido tão próximo de casa, a morte tenha se tornado um pouco mais próxima também, não sei.
O que sei é que depois, passei um longo período como que flutuando sobre a vida. Via os dias se sucederem, mas a morte da Fá me arrancara do fluxo da vida. Uma semana depois, foi meu aniversário. No 7º dia. Minhas companheiras de república não fizeram festa, contentando-se em escrever "feliz aniversário" com catchup no pão de fôrma dos nosso lanches. E não consigo olhar aquela foto, em que seguro o sanduíche, sem notar meus olhos ausentes.
Por outro lado, a morte dela me atirou com intensidade à vida. Eu, sempre tão disciplinada, certinha e séria, aprendi que a vida é curta. "Muito curta pra ser pequena", como gostava de dizer o meu tio. Fiquei querendo uma vida larga, uma vida plena. Pra nunca ser interrompida e estar sempre pronta para a chegada da "indesejada das gentes".
Por muito tempo, ela foi uma das minhas principais interlocutoras. Falei muito com ela, para ver se ela me ensinava, da perspectiva de quem partiu cedo. É que ela adorava conversas filosóficas...adorava conversar para tatear a vida. Durante muito tempo também me culpei de não ter estado mais perto dela, de não tê-la visitado mais, escrito mais, inventado mais presenças. Foi por burrice, Fá: achei que haveria tempo.
Quando, no final daquele ano, a Mari ainda nem tinha certeza de que estava grávida, ela teve um sonho em que a Fá vinha e trazia para ela um bebê. E, de fato, a Juju veio, encheu a casa de vida e de esperança. A vida, seguindo seu rumo.
Ao longo da vida, a lista dos meus mortos foi se alongando. Embora eu já não os sinta como um enorme peso. Fui aprendendo que vida e morte andam juntas. O que, obviamente, não diminui a dor pelos que se foram - por vezes até a aumenta, porque no momento-quando não há nada mais difícil do que saber que será necessário continuar. Mas a vida é ciclo e também é cheia de bonitezas. E ainda que o objetivo da beleza não seja nos salvar da dor, ela nos redime um pouco - relampejo de vida, no meio da vida, no meio da morte.
* E para quem precisa de provas da relação entre vida, morte e beleza, recomendo o Para Francisco, que agora virou livro. A escrita da Cris e o esforço de apresentar ao Francisco o seu pai, são registro e expressão de como vida e morte se misturam. E também de como a beleza - na escrita, mas também em todos os gestos - pode ser tecida para nos amparar.
Fabi, tocantes tuas palavras.
ResponderExcluirVivenciar a primeira perda assim tão próxima realmente muda nossas perspectivas, faz a gente olhar a vida de outra forma...
Eu nunca tinha passado tanto tempo sem vê-la... minha amizade/amor eram de curta data, mas eram intensos.
ResponderExcluirUma tia teria que ir a São Paulo. Descobri que ela passaria próximo ao Beneficiência Portuguesa. Engoli uma tosse que me perseguia por algum tempo e fui junto, sem avisar ninguém.
Naquela imensidão de hospital fui a procura dela... encontrei-a num jardim. Segurei o choro, queria parecer forte. Mas forte nunca fui.
Foi um dia como nenhum outro... me esqueci de tudo. Platonicamente vivi naquela tarde tudo o que sentia por ela. Quantas não foram as vezes que tinha imaginado ter encontrado a mulher de minha vida... naquela tarde tive certeza.
Eu caí no mesmo buraco que você depois que ela "se foi".
Hoje, felizmente, ela faz parte de minha vida de uma maneira muito positiva e sempre fico feliz em me lembrar das coisas boas que vivi com ela... muitas das quais com você também.
Beijos...
ps: não deveríamos comemorar na semana que vem o 29o aniversário dela?
Minha memória me envergonha...
Querido, talvez seja, sim. Tenho certeza que era dia 16, mas não consigo ter certeza se era em outubro (acho que sim) ou em novembro. Acho mais que era outubro. Eu também tinha me esquecido. Não se envergonhe da sua memória, tem coisas que a gente esquece para poder seguir adiante e, afinal,datas nem importam tanto assim. O que importa, não se perde. Beijo, com carinho, e obrigada por dividir comigo essa lembrança.
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