15 novembro, 2008

Aqueles Dois


Ontem fomos, Maurice e eu, assistir ao espetáculo Aqueles Dois, baseado no conto homônimo do Caio Fernando Abreu.

Confesso que estava bem com medo. A única vez em que vi uma montagem de textos do Caio foi "O Homem e a Mancha", encenada pelo Marcos Breda. Mas "O Homem e a Mancha" é um texto escrito para teatro e foi dirigida pelo Luiz Arthur Nunes, que era amigo e co-autor de peças do Caio. Lembro-me que também já houve uma montagem de "Dama da Noite" que fez bastante sucesso, mas não cheguei a ver. Ir assistir montagens baseadas em contos ou romances de nossos autores preferidos é sempre meio desconfortável pois significa dar corpo e voz a personagens que a gente, ao ler, recria. Se for bom, a gente acaba colando pra sempre o corpo à personagem. E se for ruim, às vezes a gente até perde o gosto da leitura...

Mas a montagem da Cia. Luna Lunera foi bastante fiel ao espírito do conto, acho. De fato, acho que essa é a primeira qualidade da montagem - um sentimento de respeito ao conto e ao autor, embora não um respeito paralisante que impeça a criação e a "tradução" do texto literário em linguagem cênica.

É claro que as leituras podem variar, mas "Aqueles Dois" é um conto muito, muito delicado. Fala de encontro, de reconhecimento. E talvez fale mais de amizade do que de amor (para seguir uma pista obscura que o Maurice me lançou há algum tempo).

Ao contrário de outros contos do Caio em que o sexo irrompe no texto, sempre expondo os personagens de um jeito um tanto cru, nesse conto não há sexo. Há talvez o susto do desejo, mas o Caio, super sacana, termina o conto deixando o leitor em suspense, só pra ver se a gente cai na mesma armadilha de mediocridade e, ao invés de apreciar a boniteza da relação, vai ficar se perguntando, mas "é namoro ou amizade?". Porque o conto todo é sobre essa violência de uma sociedade que só entende as coisas pelo viés do sexo e é incapaz de acolher o convívio de duas pessoas sem rótulos. Duas pessoas que se gostam muito, que convivem cotidianamente, que juntas são melhores do que separadas têm que ser amantes. Independente do sexo.

Fossem "aqueles dois" um homem e uma mulher e não haveria conflito; fofoca, talvez; as mulheres até suspirariam aliviadas, sentindo-se menos rejeitadas; mas ninguém se sentiria ameaçado, o mundo continuaria a rodar. E é por isso que o conto tem como subtítulo "História de aparente mediocridade e repressão".

Voltando à peça, ela flui. Momentos divertidos se alternando com momentos mais intensos, mas achei tudo afinado. Às vezes o volume (real) é um pouco alto demais, mas ainda assim, o importante é que não se perde o tom (metafórico) de que se trata de uma história de encontro e reconhecimento.

Apesar da história ser sobre "aqueles dois", são quatro atores no palco e achei que funcionou bem. A alternância dos papéis, o ritmo, acho que foi mais interessante do que se fossem só dois em cena. Mas mais do que isso, acho que esse recurso deu leveza para a idéia de que é preciso o tempo todo estar atento para se reconhecer no outro e reconhecer o outro. De algum modo, a contínua mudança de quem enunciava as falas de Raul e Saul parece sugerir que eles são especiais apenas por terem se reconhecido e, a partir daí, não terem recusado a aventura de mergulharem um no outro.

Mergulho que o sexo talvez não tivesse permitido, sendo fusão tão intensa E aqui torno de novo a essa sensação de que, no conto, não é que seja necessário recusar o sexo, mas certamente é limitador e empobrecedor desconfiar que (1) ele esteja presente em todas as relações e (2) ele seja o elemento definidor das relações.

Quando, ao final do conto, ele vão embora e todos os outros ficam ali naquela repartição, inquietos e angustiados, com a sensação de que seriam infelizes para sempre, é desses limites e dessa pobreza que se trata. A pobreza de colocar o sexo e o desejo no centro da identidade.

Apesar de na hora ter achado que de vez em quando o recurso à uma espécie de dança-capoeira era desnecessário, depois também fiquei achando que esse tatear mútuo era bem interessante, dando corpo ao exercício de tatear, marcar limite: o corpo do outro como limite. A ambiguidade de querer se aproximar e querer marcar distância.

E eu continuo me perguntando, Maurice, meu companheiro: do que é feita a amizade?

Bom. Para concluir, mesmo que abruptamente - já que tenho que voltar a trabalhar - gostei da peça e recomendo! Eles ficam em cartaz até 14/12, no Sesc da Avenida Paulista.

Para quem quiser ler, o conto está no Morangos Mofados. Eu tenho uma edição muuuuito velha, comprada em sebo na época em que o livro estava esgotado (para vocês terem uma idéia, a edição é do Círculo do Livro e a capa é a mais homoeroticamente inclinada possível! Tipo: um cara loiro de bigode olhando pela janela onde a chuva escorre. Sentiu?). A Agir, que tem reeditado as obras do Caio, já deve ter republicado, naqueles volumes imensos e irritantes divididos por década.

Imagem: www.gettyimages.com.br

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