Do dia em que se conheceram só se lembrava de ter chorado muito, horas e horas de lágrimas entrecortadas por soluços e/ou gritos (nem sempre sufocados) de dor e desespero. Era o final previsível de uma série de falhas, erros, medos, sempre tão cuidadosamente escondidos ao longo daquilo que se acostumara a considerar como “sua vida”. Bem, sua vida de mentiras terminava ali e parecia que tudo fora tão de repente, embora sua casa não tivesse relógios na parede que fizessem o tempo passar. No dia em que se conheceram ela não deu importância ao fato de se terem conhecido porque nada podia importar mais que sua dor e suas lágrimas e depois, nada importaria mais que seus olhos cansados e pesados, o sono que cairia sobre ela, sua cabeça que ficaria latejando a noite inteira e o corpo trêmulo – tanto frio e desamparo em meio à solidão.
Do dia que se seguiu àquele que foi o dia em que se conheceram, ela só se lembrava de ter feito tudo igual a todo dia – o show deveria continuar, embora soubesse cada vez com mais certeza que sua vida estava longe de ter qualquer elemento de espetáculo -, com a diferença única e crucial de não estar presente e isso a fazia pensar até hoje, passados tantos anos, anos que ficavam ainda mais longe porque sempre há um abismo nos separando de nossas quedas; isso a fazia pensar em que força estranha e externa a teria movido por sobre aqueles dias, que espécie de energia apática poderia tê-la alimentado até que aquele dia se tornasse ontem. Mas estas perguntas não duravam muito; há sempre mesmo qualquer estranheza a nos mover por sobre cada dia, uma estranheza que ela não se atreveria a chamar de vida, apenas – e esta parte do pensamento era solene -, apenas um vago resíduo, apenas o inominável.
Só então, e já era o terceiro dia, é que se lembrou de haverem se conhecido e esta lembrança sabia à bala de café, tão doce e insone e amarga no fim, estranhamente amarga: haviam se conhecido. Olá, olá, sou Fulano de Tal, e eu sou Fulana. Notara que ele gostava de sobrenomes, tinha quase necessidade deles para uma identificação mais completa, mas ela queria o incompleto aquele dia, queria os pedaços, por isso só lhe dissera seu primeiro nome. Haviam se conhecido na fila de um cinema, nenhum filme importante, nada que pudesse fazer adivinhar o estado na alma de quem iria assistir à sessão. Nada de especial sobre o filme que pudesse aproximá-los por afinidades intelectuais-artístico-culturais, só haviam começado a conversar devido a um incidente com um casal que estava na fila, uma briga, uma discussão, vozes elevadas, um certo constrangimento geral até que eles resolvessem se retirar, o que mesmo assim só ocorreu após a intervenção discreta – eram todos adultos, maduros e civilizados – do segurança. Como se estivessem imediatamente próximos trocaram olhares cúmplices de queabsurdo e ela se voltara para frente, rezando não, porque naquele dia perdera a fé em tudo, então melhor, torcendo intimamente para que o desconhecido não encarasse aquilo como um convite à conversa, já arrependida de ter esquecido seus problemas e ter prestado atenção no “em torno”.
No entanto, já era tarde demais, e o desconhecido engatara uma conversa amena e neutra sobre trânsito, sobre a loucura da Cidade-que-nunca-pára, sobre a nova faixa de bandas do governo; tudo conversa normal entre pessoas integradas e adultas e pensando neste último adjetivo que atribuído a si mesma tornava-se cômico, ela pôde, com um sorriso resignado e cansado, entender porque a lembrança dele sabia à bala de café.
O quase-desconhecido não lhe havia despertado emoção alguma: era moço, good looking (ela nunca conseguia encontrar expressão equivalente a esta para descrever um rapaz), agradável e, afinal, ela estava tão sozinha naquele instante, naquela fila, naquele dia que. Podia ser que o tempo passasse mais rápido, que a fila começasse a andar ou ainda que o mundo se tornasse mais bonito – o mundo encantado porque em algum planeta há uma rosa, em algum canto se esconde um pássaro que se ama. Ela pensava todas estas coisas quando se conheceram, tudo eram hipóteses diante de uma pessoa, e ela repetiu várias vezes em seu pensamento esta palavra, pessoa-pessoa-pessoa, apenas para se dar conta da realidade que era uma pessoa, essa coisa grande e indecifrável.
O semi-conhecido fora tão delicado em não lhe questionar sobre os seus olhos ainda vermelhos que ela quase havia recomeçado a chorar. Mas ela só pretendia fazer isso quando já protegida pelo escuro da sala de cinema ou já escondida por detrás do enredo do filme, quem sabe. As pessoas no cinema estavam lá para tornar a vida mais leve e ela precisava estar lá para poder adensar sua vida e sua dor, para sentir ainda mais contundentemente que tudo poderia ser melhor, para assistir a felicidade e a vida que lhe era negado viver. As quedas eram tantas, como aquela, daquele dia, a música do Paul McCartney que não lhe saía da cabeça so sad, so sad, sometimes she feels so sad, alone in the apartment ..., ‘till the man of her dreams comes along and stay, come on stay, and he comes, and he stays, but he lives the next day, so sad, sometimes she feels so sad... ela que era assim, meio óbvia demais.
Do dia em que se conheceram até o dia em que ela se lembrara havia a distância intransponível e imensurável do descaso e da indiferença, ela o reconheceria caso pensasse mais detalhadamente no assunto. O fato é que ela se lembrara dele como quem é apanhado pelo esquecimento do guarda-chuva num dia de sol escaldante – e depois novamente se esquece.
Não haviam trocado telefones ou confidências, aquele era para ela um péssimo dia e o pseudo-conhecido não constituíra interesse suficiente que a fizesse se desvencilhar das tramas da dor e da angústia.
Assim, ela se lembrou de haverem se conhecido quando seus pés novamente tocaram o chão frio e conhecido do cotidiano; mas lembrou-se sem emoção, remorso ou esperança.
E então o esqueceu.
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Desde o dia em que se conheceram, Ele se coloca todos os dias na fila do cinema, o mesmo cinema, esperando por Ela, sonhando com Ela, profundamente impressionado pelos inconsoláveis olhos ainda vermelhos – e que ele prometera a si mesmo fazer sorrir e brilhar -; do dia em que se conheceram, só era capaz de se lembrar do que ocorreu depois de tê-la encontrado, Ele que queria tanto encontrar alguma coisa: só se lembrava de suas mãos morenas, seu rosto, seu vestido longo, sua voz suave e cansada. E cada vez que se lembrava dela, vinha-lhe à boca um gosto quente, amargo e infantil de bala de café.