24 junho, 2009

São Paulo, por Caio Fernando Abreu



Na sexta-feira passada, na hora do entardecer vermelho-alaranjado que tem feito por aqui, eu estava num prédio em Pinheiros. Era uma sala comercial, cheia de janelas, de maneira que a luz invadia todo o espaço. E em determinado momento, percebi que tinha sido subitamente levada para dentro de um conto do Caio: eu estava lá, ao lado do narrador de "Sem Ana, Blues", presa no momento-quando da despedida, na sala em que Ana nunca mais estaria:

Quando Ana me deixou, eu fiquei muito tempo parado na sala do apartamento, cerca de oito horas da noite, com o bilhete dela nas mãos. No horário de verão, pela janela aberta da sala, à luz das oito horas da noite podiam-se ver uns restos de dourado e vermelho deixados pelo sol atrás dos edifícios, nos lados de Pinheiros (In: O dragões não conhecem o paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, p. 42).

Depois disso, comecei a me lembrar de como sempre penso no Caio quando passo pela Consolação. A palavra talvez não seja nem mesmo pensar, mas sentir. Passo por lá e, não importa a hora, é noite e é frio e é chuvoso...

Tem um ponto específico, então, logo depois do Cemitério, que é impressionante: é passar e estar num conto dos Morangos Mofados, embora eu não tenha conseguido localizar exatamente qual; é que eu tinha a impressão de que era "O dia que Urano entrou em Escorpião", mas agora percebo que provavelmente fui traída pela minha memória. Porque sem dúvida eu deveria ir parar mesmo era em "Pela Noite", que algum crítico um dia aproximou de "Dois perdidos numa noite suja" (mas, de novo, minha memória tá capengando e não vou saber dizer quem é. Será que era na orelha da minha edição perdida de "Triângulo das Águas"?).

Em "Pela Noite", Pérsio e Santiago perambulam a madrugada inteira pela cidade. São Paulo é cenário, mas é também personagem, violenta e solitária, que quase interfere na relação entre eles. São Paulo, escura, fria e úmida, mas ao mesmo tempo veloz, tumultuada e frenética: a cidade se interpõe entre ambos, dificulta a comunicação, porque a noite é tão cheia de possibilidades que incita o desencontro. Ambos são estrangeiros na cidade. Mas o reconhecimento é difícil, ainda que eles falem como quem lança uma corda na direção do outro - uma brecha de delicadeza e salvação no meio do caos.

É muito significativo que o Caio tenha decidido republicar esta novela em "Estranhos Estrangeiros", em que ele quis reunir contos que falam dessa condição de não estar em casa em lugar algum, como explicita a epígrafe: "Pareço uma dessas árvores que se transplantam, que têm má saúde no país novo, mas que morrem se voltam à terra natal" (Miguel Torga).

Em "Onde andará Dulce Veiga?", que também é a história de uma viagem em busca daquilo que falta, São Paulo também é personagem - dura, seca, suja, em que o que se procura pode ser miragem, como Dulce Veiga de braço estendido em direção ao alto, na esquina. São Paulo é o lugar da solidão, da decepção, da luta feroz para sobreviver. É o lugar que se abandona para poder reencontrar o próprio nome (o nome que se perdera quando o outro foi embora - desencontro depois da luminosidade do encontro). A cidade quase estraçalha quem nela vive.

Enfim. Post sem muita lógica - só para registrar essa percepção de que há diversos lugares dessa cidade que eu amo (e de vez em quando também odeio e temo) nos quais encontro o meu autor predileto. O que só me dá ainda mais motivos para amar a ambos.

(Como em "Pela Noite", ao som de Piazolla...)



Imagem: Dimtri Kessel, São Paulo, em 1947. (Dica do Pedro, há um tempão...).

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