12 agosto, 2008

Distraindo Agosto

Sugestões para atravessar agosto

Caio Fernando Abreu, Pequenas Epifanias

Para atravessar agosto é preciso antes de mais nada paciência e fé. Paciência para cruzar os dias sem se deixar esmagar por eles, mesmo que nada aconteça de mau; fé para estar seguro, o tempo todo, que chegará setembro -- e também certa não-fé, para não ligar a mínima às negras lendas deste mês de cachorro louco. É preciso quem sabe ficar-se distraído, inconsciente de que é agosto, e só lembrar disso no momento de, por exemplo, assinar um cheque e precisar da data. Então dizer mentalmente ah!, escrever tanto de tanto de mil novecentos e tanto e ir em frente. Este é um ponto importante: ir, sobretudo, em frente.

Para atravessar agosto também é necessário reaprender a dormir, dormir muito, com gosto, sem comprimidos, de preferência também sem sonhos. São incontroláveis os sonhos de agosto: se bons, deixam a vontade impossível de morar neles, se maus, fica a suspeita de sinistros angúrios, premonições. Armazenar víveres, como às vésperas de um furacão anunciado, mas víveres espirituais, intelectuais, e sem muito critério de qualidade. Muitos vídeos de chanchadas da Atlântida a Bergman; muitos CDs, de Mozart a Sula Miranda; muitos livros, de Nietzche a Sidney Sheldon. Controle remoto na mão e dezenas de canais a cabo ajudam bem: qualquer problema, real ou não, dê um zap na telinha e filosoficamente considere, vagamente onipotente, que isso também passará. Zaps mentais, emocionais, psicológicos, não só eletrônicos, são fundamentais para atravessar agostos. Claro que falo em agostos burgueses, de médio ou alto poder aquisitivo. Não me critiquem por isso, angústias agostianas são mesmo coisa de gente assim, meio fresca que nem nós. Para quem toma trem de subúrbio às cinco da manhã todo dia, pouca diferença faz abril, dezembro ou, justamente, agosto. Angústia agostiana é coisa cultural, sim. E econômica. Mas pobres ou ricos, há conselhos - ou precauções- úteis a todos. (...)

Para atravessar agosto ter um amor seria importante, mas se você não conseguiu, se a vida não deu, ou ele partiu - sem o menor pudor, invente um. Pode ser Natália Lage, Antonio Banderas, Sharon Stone, Robocop, o carteiro, a caixa do banco, o seu dentista. Remoto ou acessível, que você possa pensar nesse amor nas noites de agosto, viajar por ilhas do Pacífico Sul, Grécia, Cancún ou Miami, ao gosto do freguês. Que se possa sonhar, isso é que conta, com mãos dadas, suspiros, juras, projetos, abraços no convés à lua cheia, brilhos na costa ao longe. E beijos, muitos. Bem molhados.

Não lembrar dos que se foram, não desejar o que não se tem e talvez nem se terá, não discutir, nem vingar-se, e temperar tudo isso com chás, de preferência ingleses, cristais de gengibre, gotas de codeína, se a barra pesar, vinhos, conhaques -tudo isso ajuda a atravessar agosto. Controlar o excesso de informações para que as desgraças sociais ou pessoais não dêem a impressão de serem maiores do que são. Esquecer o Zaire , a ex-Iugoslávia, passar por cima das páginas policiais. Aprender decoração, jardinagem, ikebana, a arte das bandejas de asas de borboletas - coisas assim são eficientíssimas, pouco me importa ser acusado de alienação. É isso mesmo, evasão, escapismos, explícitos.

Mas para atravessar agosto, pensei agora, é preciso principalmente não se deter demais no tema. Mudar de assunto, digitar rápido o ponto final, sinto muito perdoe o mau jeito, assim, veja, bruto e seco:

***

Maurice, pensando no que você disse, num agosto que já vai longe, você tem toda razão: é realmente nas crônicas que o Caio foi construindo Agosto como experiência.

Mas lembrei de um conto, que está no Ovelhas Negras e que se chama justamente "Depois daquele agosto", em que Agosto aparece, é o momento-quando tudo muda (bem ao estilo da "Primeira Carta para Além dos Muros").


É o momento-quando tudo muda, mas ele não fica aprisionado lá (como em "Sem Ana, Blues"). Quando Aquele Agosto traz a morte para tão perto, estranhamente Ele não dura. Sucedem-se os meses e a continuação da vida dissipa Agosto. Na primavera, no sol e areia, no encontro entre iguais que faz a proximidade possível depois daquele agosto. E então, a esperança: "...porque era cedo demais e nunca tarde. Era o recém no início da não-morte dos dois".

Talvez Agosto seja mesmo essa experiência de adensamento da vida à beira do insuportável, esse doer por dentro que parece que vai durar para sempre, faz parecer tarde demais para qualquer coisa. Mas então, a gente atravessa Agosto - em setembro, em outubro, no próximo ano: o importante é atravessar.

E a vida volta a ser possível. A primavera quando ninguém mais espera, como na música do Wisnik. Explosão de cor e luz. A proteção dos anjos, dizendo Amém.


Imagem: http://www.vallartaonline.com/gallery/photos/buganvilias

Nenhum comentário:

Postar um comentário