desde janeiro, elegi 2014 como um ano de cultivar a rememoração.
cultivar no sentido da cultura como cuidado com o os vivos e o presente,
mas também como respeito aos mortos - o que também significa ouvi-los no
presente, deixar-se ser interpelado pelo sentido trágico de suas
vidas. afinal: em 2014, são cem anos desde o início da I Guerra
Mundial. cinquenta desde o golpe civil-militar no Brasil. vinte desde o
genocídio em Ruanda.
tenho lido por isso muitos livros e assistido muitos filmes sobre tais
assuntos. sempre me dividindo entre reunir coragem para enfrentar tais
horrores - e enfrentá-los como horrores humanos, também meus - e me
dando espaço para também, por vezes, olhar para outro lado: ler gibi,
assistir seriado, passar um dia plantando e replantando flores e
matos...
e aí, por razões que não têm exatamente a ver com essas, embora tenham
tudo a ver com o problema do presente e da memória, meu amigo julio me
falou de
incêndios.
edu e eu assistimos o filme há uns dez dias e é, de fato, um filme
lindíssimo. e muito perturbador. e por isso mesmo bastante potente.
depois de ver o filme, acabei lendo também a peça de wadji mouawad e as
reflexões que se seguem foram provocadas tanto pelo filme quanto pela leitura.
é difícil falar do filme e do livro sem remeter ao enredo, em especial
porque se trata de um filme que se estrutura sobre a descoberta da
verdade. mas vou tentar.
também é difícil falar do filme e do livro sem remeter a Édipo Rei, que
Aristóteles toma como modelo da tragédia. não vou tentar evitar o
assunto, ainda mais porque a comparação com Édipo é reveladora de alguns
de nossos dilemas presentes.
depois de assistir o filme e acabar de ler a peça, em algum momento da
noite acordei pensando que Foucault ficou tão interpelado pelo Édipo
Rei, pela questão da verdade.
mas há também uma certa tradição que pensa a peça de Sófocles como o
acontecimento que dá forma a categoria "vontade" que vinha se
constituindo na experiência ocidental: Jocasta e Laio tentam
escapar de seu destino, terrível e revelado por um adivinho, e é por
isso mesmo que eles todos são levados inexoravelmente a
ele. a vontade humana, insurgente, é também inútil: essa tentativa de
fuga ao destino é obscurecida numa rede de segredos e lealdades e -
central para o desenvolvimento da trama - compaixão, deixando todos os
seus participantes cegos e incapazes de fazer frente à força dos fatos
que a própria
tentativa de escapar desencadeia. Jocasta e Laio
tentam fugir da verdade em Tebas; Édipo tenta fugir da mesma verdade em
Corinto e a fatalidade se impõe a partir de um mau encontro numa
tríplice encruzilhada.
de todo modo, quando a verdade reaparece, ela revela a todos que o
destino se cumpriu. um horror
de algo que, apesar de tudo, estava de acordo com uma espécie de vontade
dos deuses (ou má vontade em evitá-lo). Em Édipo, há no destino, senão
coerência, um sentido de
necessidade. Mas em Édipo há o problema da vontade desorganizadora,
tanto mais porque contrária a uma vontade maior e mais forte, inescapável,
superior. esse é o cerne da tragédia: o embate entre uma vontade
impotente e uma vontade que nunca desvia, certeira. a verdade, assim, é a
recomposição da trilha de vontades que leva ao desfecho; as peripécias
são essa caminhada de volta - tudo aquilo que se revela no refazer dos caminhos. é assim que o
estrangeiro se encontra em casa.
incêndios é o trágico mais contemporâneo, que ao mesmo tempo repete e
desloca os problemas colocados pelo Édipo. há uma questão subjacente que
é a da imanência do mundo: não há referência a deuses ou a um deus em
nenhum momento, que eu me lembre. A cultura, a tradição são forças
presentes, mas elas não são referidas a outro mundo: estamos aqui,
irremediavelmente aqui, nessa terra, nesses tempos, muitas vezes em
guerras que não escolhemos, nossa vontade atravessados por práticas das
quais não temos como escapar. nós, seres trágicos, a faca no pescoço.
ainda
assim, parece haver uma vontade superior à nossa, emaranhados que
estamos aos fios da
própria história: ao ciclo de ofensas e vinganças, interminável,
inescapável. mas é bonito, porque o que conduz o destino não é o esforço
em escapar ao vaticínio, mas uma promessa (e depois outras) também
imanentes, pois feitas entre pessoas: é da ordem propriamente ética que
se desdobra o drama, do esforço de ser fiel à promessa de romper a
tradição, romper o encadeamento das ofensas e vinganças ("incêncios" é a terceira parte de uma tetralogia que se chama, justamente, "o sangue das promessas"). a promessa de tornar
possível uma outra forma de estar juntos. pois a peça volta e meia
retoma essa frase-testamento dita por Nawal: "agora que estamos juntos,
melhorou".
é muito bonita (e dolorosa e intensa) como Nawal leva esses
filhos que ela ama e que não ama à verdade - como se a falta de amor
abrisse a possibilidade de conduzi-los à verdade; como se o amor pudesse
brotar possível depois da verdade pesar até o ponto do esmagamento. um
silêncio que é uma pedra no peito - e que faz a gente perder o fôlego só
de cogitar enunciar a verdade.
abrindo as pistas de um caminho que é ao mesmo tempo retorno e passo
adiante, Nawal abre a seus filhos a possibilidade de inscreverem seu
lugar no mundo, alfabetizados e letrados nas durezas e na verdade. eles
também começam a construir um lugar fora daquele atribuído à vítima
(pois que vítimas também foram) - essa figura que sofre as dores
inevitáveis do acidente e se vê despojada de potência e vontade. os
filhos de Nawal não são esmagados pela verdade: terminam a peça ouvindo o
silêncio da mãe, esse silêncio eloquente e intenso.
em tempos tão cínicos - quando a verdade é
escancaradamente dita porque evidente, porque é "assim mesmo que as coisas são", e
por isso mesmo nada causa escândalo ou faz tabu - é
notável que a verdade, finalmente clara, não seja dramatizada com
excessos e psicologismos. ela simplesmente está a luz, e interpela no
presente cada uma das personagens. o propriamente trágico está no fluxo
do tempo, na historicidade onde a gente vive mergulhado. e é sempre
presente.
lembrei de um trechinho da Jeanne-Marie Gagnebin:
Não temos que pedir desculpas quando, por sorte, não somos os
herdeiros diretos de um massacre; e se, ademais, não somos privados da palavra,
mas, ao contrário, se podemos fazer do exercício da palavra um dos campos de
nossa atividade (como, por exemplo, na universidade), então nossa tarefa
consistiria, talvez, muito mais em restabelecer o espaço simbólico onde se
possa articular aquele que Hèléne Piralian e Janine Altounian chamam de
“terceiro” – isto é, aquele que não faz parte do círculo infernal do torturador
e do torturado, do assassino e do assassinado, aquilo que, “inscrevendo um
possível alhures fora do par mortífero algoz-vítima, dá novamente um sentido
humano ao mundo. No sonho de Primo Levi, deveria ser a função dos ouvintes,
que, em vez disso e para desespero do sonhador, vão embora, não querem saber,
não querem permitir que essa história, ofegante e sempre ameaçada por sua
própria impossibilidade, os alcance, ameace também sua linguagem ainda
tranquila; mas somente assim poderia essa história ser retomada e transmitida
em palavras diferentes. Nesse sentido, uma ampliação do conceito de testemunha
se torna necessária; testemunha não seria somente aquele que viu com seus
próprios olhos, o histor de Heródoto, a testemunha direta. Testemunha
também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração
insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num
revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas
porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do
sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos
ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar outra história, a
inventar o presente (GAGNEBIN, 2006: p.57; grifos meus).