para j.
entre a surpresa e a preguiça, a amiga notou que precisava muita paciência pra
fazer aquela comida. pra ser sincera nem entendi
direito a observação: era só deixar ferver o litro de água e depois baixar o
fogo e jogar o hondashi e finalmente ir dissolvendo, pouco a pouco, o missô.
pensando bem, beirava a meditação o cuidado em passar a colher de um lado para
o outro sobre o missô depositado na concha. dava para ler o futuro nos desenhos
que se desprendiam da massa de soja e se misturavam ao hondashi – mais grosso,
a gravidade rápida em leva-lo ao fundo da panela. não era difícil, nem
elaborado, mas exigia uma espécie de transe. um tipo de paciência. o respeito
aos mistérios das coisas que se cozinham lentas. aquelas que não adianta
apressar.
uma vez, um amor, quando jovem. daqueles em que tudo erra,
mas não encerra e aí o amor fica ali, cozinhando lento, feito batata doce que a
gente enrola no alumínio com casca e tudo e esquece no fundo do forno enquanto
assa um suflê
de abobrinhas ou um pão. só pra
depois encontrar o alumínio escurecido e se surpreender com a doçura escorrendo
morna, o cozimento completo sem que ninguém tenha programado o timer ou se dado
conta daquela prontidão se instalando devagar. a distração dos outros cheiros e
sabores alimentando o esquecimento. preparando o tempo da rememoração e do
reencontro. foi de lá, desse amor cru e colhido verde, que eu trouxe esse fogo
brando.
e essa paciência infinita pra esperar o tempo de cada coisa.
o
tempo de cada um.
e também uma espécie de medo da morte – do fogo tão baixo
que se apaga sem que a gente se dê conta.
nem tudo porém se coze em fogo brando – só o que é duro
demais, o que é sem gosto demais, aquilo em que é preciso matar a semente pra
melhor saborear o grão.
a lição vem tardia? os dentes de alho separados, protegidos
pela casca roxa. na panela, a xícara de água fervendo com a xícara e meia de
açúcar. e aí os alhos borbulhando em festa, a chama viva, a falta de tampa. a
umidade evaporando para ceder lugar ao que é doce, cada vez mais doce.
essa receita só me é possível enquanto envelheço: deixar a
água secar assim, quase ao ponto da incineração; flertar de tão perto com a
queimadura; chegar a sentir o cheiro e o gosto do carvão. e então interromper –
a meia xícara de aceto balsâmico: avinagrando a fervura só para logo se
misturar às blandícias do açúcar. o caramelo fresco a envolver o que um dia foi
rosa e roxo; a ternura a abraçar o que outrora somente acidez e olor.
não, nem tudo se coze em fogo brando. tem o que valha a pena
que se prepara assim: o fogo temerariamente alto, a calda perigosamente grossa.
tecendo o agridoce de estar vivo com diligência. reservando a paciência para a
fruição de espremer um a um os dentes de alho sobre o pão fresco. abandonando-a
de novo para cravar vorazes os dentes nesse breve festejo.
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