tem um momento que a coisa... pam! sem muita explicação, sem
muita elaboração. como se já estivesse pronta, maturada e precisasse apenas de
um momento-quando pra vir à luz. quando a gente vive uma vida inteira junto,
sabe que não tem só um momento-quando, são vários. não tantos que a coisa toda
seja banal. mas também não tem um e pronto. porque quando a gente vive uma vida
inteira junto, a gente vive várias vidas e não uma só. a gente muda, desmuda,
encontra, desencontra, tem épocas de alegria e vivacidade e outros de tristeza
e melancolia. e ainda nem tô falando de tempo, repare, embora o tempo faça sim
diferença. sessenta e um anos, foi o tempo que eu vivi do lado dele. foram
várias as vidas juntos – várias as cidades, várias as casas, vários os amores.
ele era tão quieto. o homem alto e forte por quem me
apaixonei. pelos olhos dele, o mundo até se organizava, visto lá de cima, com
distância e perspectiva. era um conforto pro meu olhar miúdo, de quem presta
atenção ao feijão e arroz que na minha época ainda se separava, grão e pedras.
meu olhar atento, de quem abre os ovos, peneira a farinha e o açúcar, e
acompanha pelo olfato o que era massa virar pão. ou bolo.
se quisesse acompanha-lo pelos sentidos, dava para adivinhar ainda
da cama o banheiro se encher do cheiro do sabonete predileto e depois a loção pós-barba e ainda o desodorante. a partir daí,
acompanhava-o pelos ouvidos: o som da escova de dentes, na boca, na pia. o som
da respiração dele, aproximando-se de mim, para me acordar com um beijo. o som
da risada dele, no café da manhã. ou do seu suspiro, fossem duros os tempos ou
dolorosas as notícias. a voz dele quase não se ouvia. sua presença era discreta.
mas tão fundamental, descubro agora. agora quando sinto imensa falta do
silêncio dele.
ando com as pernas fracas, parecendo bambas, como se eu tivesse
desaprendido a andar. não é da velhice, não. embora eu esteja velha, claro: não
só nas rugas, nem no cabelo branco, nem nas mãos cheias de veios e raízes. mas
as pernas fraquejam porque agora ando sempre sem chão. o pé se lança à frente e
entre o início e o fim do movimento me lembro, e é aí que a perna falha. essa
consciência de estar sozinha no mundo. de estar num mundo sem ele. ele que é
meu companheiro, que era minha companhia. se eu chorasse tudo o que dói,
escorreria água pela cozinha, pela escadaria da frente de casa, pela rua inclinada
onde acabamos vindo morar, e já faz tantos anos. a gente toda ia achar que era março,
que era o final do verão com seu calor, suas chuvas repentinas, suas enchentes.
não faz diferença o gosto da chuva e o do choro destampado.
em um dia qualquer, cismei de inovar na sobremesa. a gente
já tinha bem uns trinta anos de casado, eu em crise, cansada da fase da torta
de limão. (quando casamos, houve a fase da ambrosia. depois nasceram as crianças,
e houve a fase do chocolate: mousse, bolo, bolacha, creme. também houve o ciclo
do pudim de uva, tão macio e refrescante. as sobremesas entravam e saiam de
moda, conforme o ritmo da vida). os filhos vinham aos finais de semana e resolvi
testar uma receita estranha, que veio num livro de receitas vegetarianas
indianas. acho que era a única receita do livro todo que dava certo. as outras
melavam, desandavam, murchavam. mas o gulab
jamun funcionou. e virou nossa receita de almoços longos e largos por
alguns anos. minhas mãos não eram tão manchadas e enrugadas como agora. lembro
direitinho da sensação que o leite em pó se misturando à manteiga deixava na
minha mão.
no velório, lembrei desse doce. deve ser o cheiro das
flores. a gente começa fazendo a calda doce: um copo e meio de açúcar, um copo
de água, um pouco de cardamomo e duas gotas de água de rosas. primeiro deixa a
água e o açúcar ferverem. só depois coloca o cardamomo e a água de rosas. ainda
é opaco, logo quando desliga. aí tem que colocar a colher de chá de suco de
limão. para preservar a consistência. já naquela época eu pensava uma
estranheza: que aquela calda também sabia a embalsamamentos. que era para
perfumar e adocicar a morte. cada coisa que a gente pensa, mesmo jovem. rá!
agora eu era jovem aos sessenta anos... tudo é mesmo uma questão de
perspectiva.
depois da calda, começa-se a preparar os bolinhos. uma xícara
de leite em pó. uma colher de sopa de manteiga, pois eu nunca tinha ghee. uma colher
de sopa de farinha de trigo e outra de semolina. um quarto de colher de chá de
fermento químico. essa parte sempre me indignava: quem é que pensa em colocar
um quarto de colher de chá? que medida estranha é essa? também vai duas
colheres de sopa de leite morno, ou mais, se precisar, e mais umas gotinhas de
suco de limão. o segredo é deixar o leite umedecido antes de começar a
misturar. e deixar descansar um pouquinho antes de fritar. porque os bolinhos
devem ficar um tantinho aerados, pra absorver a calda. bolinhos-múmia. bolinhos
de chuva encharcados de água doce. bolinhos bons e úmidos e docinhos na medida.
rescendendo suavemente a rosas, distraindo da morte. depois de prontos – vinte quatro
horas mergulhados na calda – e gelados, os bolinhos quase imitavam fruta
madura. nem parecia que eu tinha feito: mas colhido de uma árvore secreta. eu gostava,
gostava mesmo, de cultivar aqueles bolinhos.
o momento em que eu me dei conta, assim, de supetão, de que
ia ficar sozinha nem foi agora, no final. foi antes, muito antes, quase que lá
no começo. um dia acordei mais tarde e a casa estava vazia. nem trinta anos eu
tinha. procurei na sala, na cozinha, nos banheiros. quando ele voltou – do jornal
de domingo e do pão fresco – me encontrou chorando à beça. foi quando eu soube
que seria viúva. desde então foi essa pequena falha entre uma batida e outra do
meu coração. antecipando a falha entre os passos. as gotas de limão no caldo
doce, pra manter lúcida a transparência.
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