sabe, eu tinha um
sonho quando pequena de ter um autorama. nas férias que a gente passava na casa
dos meus avós, eu adorava brincar com o autorama antigo, que era descido de um
armário bem alto quando filhos e netos todos reunidos. a ideia nem era divertir
a meninada – era mesmo pros meus tios voltarem a ser crianças. que nem
acontecia com a minha tia quando, ciumenta, tirava de dentro de uma cômoda de
brinquedo as roupinhas de sua susie para provocar nossa vontade.
o que eu gostava do autorama era da emoção das curvas, das
pequenas faíscas, da falta de pressa de todas aquelas demoradas voltas no
infinito. os ciclos,
sempre eles, dobrando-se sobre si mesmos uma, duas, quantas vezes o desejo. engraçado
lembrar disso agora. agora, enquanto olho pra você e penso que eu queria mesmo
era convidar você pra brincar comigo, pra se juntar a mim nos passeios por
esses trechos que eu armei há tanto tempo e dei o nome de “minha vida”. lembrei
dessa história boba e infantil – quem sabe freud explicasse – pois pensar essas
coisas todas só porque nos encontramos me faz sentir exatamente boba e
infantil.
meu prato predileto quando estou triste é feito de batatas
cozidas até o ponto de desmanchar, misturadas com manteiga, sal e leite: um
purê sem muita densidade, quentinho, onde o garfo ara finos sulcos, onde o
feijão fresco e rescendendo a louro pode escorrer. se ainda um refogado de
tomates e cebolas em caçarola de ferro, onde se derramem umas ervilhas
debulhadas, onde se quebre um ovo caipira e se espere a gema endurecer e
empalidecer... o mundo restaura a ordem que teve uma vez durante a infância: em
volta da mesa, o invólucro uterino de cuidado e proteção. estou falando
demais, eu sei, talvez muito mais do que você gostava de ouvir. as palavras desgovernadas, teimando em descarrilar.
quando assisti central do brasil, lembro de ter achado tão
bonito e duro e de ter especialmente gostado da honestidade quase brutal da dora
em sempre enunciar os fatos crus. mas lembro de também ter achado bonita a rendição
dela a uma espécie de pensamento mágico infantil, que aposta todas as fichas no encontro
e na esperança. todo o contrário da monotonia do ir e vir nos trilhos nesse
desvio de abrir espaço pra acreditar.
queria dizer pra você que também abro esse espaço; veja bem que
enquanto falo vou abrindo picadas em tudo o que até ontem era uma selva de improbabilidade. enquanto falo vou me esquecendo de que cresci, só pra
rearticular os trilhos de modo que caiba você; vou me esquecendo que cresci, e
então posso tirar as calhas já montadas logo à frente e tatear outros destinos;
vou me esquecendo que cresci e então nem bobagem, nem infância – agarro com
força esse sentimento que me desencaminha do infinito ciclo.
esboço o gesto, ainda que sem o engate da coragem que me
conduziria à conclusão:
* título a la Nuno
Ramos.
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