07 abril, 2014

dia de visita

quando as noites de sono inquieto e frágil e os dias cheios de pausas e suspiros ela sabia bem que nome dar àquele nó – meio expectativa, meio resignação. flor de ir embora. o nome tirado de uma música antiga. música que doía um pouco, assim como a falta de ar provocada por aquela flor nascida por dentro, à revelia da ausência de sol e de terra. flor que adivinha roxa, na memória de tantas quaresmas a encobrir os santos, a aprofundar as culpas, a volta e meia cutucar bem funda a dor – até que o sábado amanheça, trazendo a festa da vida nova. a flor que traz em si é roxa, disso está certa, e quando dá de abrir, abre num repente: faz engasgar o todo-dia e pesa o peso do botão recém-aberto, a cabeça pensa no caule temerariamente fino.

pôs então a toalha de chita sobre a mesa e também dois pratos de louça branca, garfos e facas, duas xícaras de chá. os guardanapos de pano vermelho – a bainha costurada por ela numa das vezes em que a flor nascera. inebriava a todos durante aquelas florações: a vontade de liberdade, a aflição em despetalar as palavras todas, abrindo picada pelos caminhos da garganta. às vezes ocupando excessivamente as mãos para esperar o que nasceu crescer, envelhecer e morrer. insuportáveis estes ciclos, pensa.

e enquanto pensa vai amassando farinha, manteiga, iogurte e água. é quase com violência que abre a massa – o cilindro alisando e esticando o que até há pouco era só nó. coloca a massa sobre a forma, coloca a forma dentro do forno. e espera.

enquanto espera, abre o shimeji e derrete a manteiga e sente o cheiro forte e bom do acinzentado refogando: uma pequena alegria, a floração nascida no úmido e escuro se transformando em intensidade e maciez. rouba um bocadinho com os dedos, mistura à cebolinha picada. e reserva. que agora é hora de bater os ovos às natas, também um pouco de sal e noz moscada. finalmente mistura tudo e derrama sobre a massa, dourada e fofa. então devolve tudo ao útero quente do fogão.

na leiteira, derrama o leite e o pedacinho de uma fava de baunilha. a fúria do leite fervendo espumas contrasta com o entalo de sua flor, imóvel. adivinha o gosto e a textura do leite morninho a descer pela garganta, carregando consigo qualquer resquício de caule e pétalas, inaugurando um outono.

hoje não tem café preto. só o leite amansando e umedecendo a baunilha um pouco ressequida – tanto tempo desde que. a casa vazia, a mesa vazia. pra pôr o ciclo em movimento é sempre este misto de espera e ação. pensa nele e o medo e a esperança se pororocam numa única saliva, carregando finalmente aquela flor dolorida corpo adentro. o espaço, enfim, liberado. a porta destrancada por dentro.

na hora certa, toca a campainha e ela, menina antiga, só tem tempo de pensar alto: quem vem lá? como se já não soubesse. como se pega de surpresa. como se não tivesse sido ela mesma a mandar o convite.

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