quando as noites de sono inquieto e frágil e os dias cheios
de pausas e suspiros ela sabia bem que nome dar àquele nó – meio expectativa,
meio resignação. flor de ir embora. o
nome tirado de uma música antiga. música que doía um pouco, assim como a falta
de ar provocada por aquela flor nascida por dentro, à revelia da ausência de
sol e de terra. flor que adivinha roxa, na memória de tantas quaresmas a
encobrir os santos, a aprofundar as culpas, a volta e meia cutucar bem funda a
dor – até que o sábado amanheça, trazendo a festa da vida nova. a flor que traz
em si é roxa, disso está certa, e quando dá de abrir, abre num repente: faz
engasgar o todo-dia e pesa o peso do botão recém-aberto, a cabeça pensa no
caule temerariamente fino.
pôs então a toalha de chita sobre a mesa e também dois
pratos de louça branca, garfos e facas, duas xícaras de chá. os guardanapos de
pano vermelho – a bainha costurada por ela numa das vezes em que a flor
nascera. inebriava a todos durante aquelas florações: a vontade de liberdade, a
aflição em despetalar as palavras todas, abrindo picada pelos caminhos da
garganta. às vezes ocupando excessivamente as mãos para esperar o que nasceu
crescer, envelhecer e morrer. insuportáveis estes ciclos, pensa.
e enquanto pensa vai amassando farinha, manteiga, iogurte e água. é quase com violência que abre a massa – o cilindro alisando e esticando o que até há pouco era só nó. coloca a massa sobre a forma, coloca a forma dentro do forno. e espera.
e enquanto pensa vai amassando farinha, manteiga, iogurte e água. é quase com violência que abre a massa – o cilindro alisando e esticando o que até há pouco era só nó. coloca a massa sobre a forma, coloca a forma dentro do forno. e espera.
enquanto espera, abre o
shimeji e derrete a manteiga e sente o cheiro forte e bom do acinzentado refogando:
uma pequena alegria, a floração nascida no úmido e escuro se transformando em
intensidade e maciez. rouba um bocadinho com os dedos, mistura à cebolinha
picada. e reserva. que agora é hora de bater os ovos às natas, também um pouco
de sal e noz moscada. finalmente mistura tudo e derrama sobre a massa, dourada
e fofa. então devolve tudo ao útero quente do fogão.
na leiteira, derrama o leite e o pedacinho de uma fava de baunilha. a
fúria do leite fervendo espumas contrasta com o entalo de sua flor, imóvel.
adivinha o gosto e a textura do leite morninho a descer pela garganta,
carregando consigo qualquer resquício de caule e pétalas, inaugurando um
outono.
hoje não tem café preto. só o leite amansando e umedecendo a
baunilha um pouco ressequida – tanto tempo desde que. a casa vazia, a mesa
vazia. pra pôr o ciclo em movimento é sempre este misto de espera e ação. pensa
nele e o medo e a esperança se pororocam numa única saliva, carregando
finalmente aquela flor dolorida corpo adentro. o espaço, enfim, liberado. a porta
destrancada por dentro.
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