Se te pareço noturna e imperfeita/
Olha-me de novo. Porque esta noite/
Olhei-me a mim, como se tu me/ olhasses. E era como se a água
Desejasse/ Escapar de sua casa que é o rio / E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo/ Entendo que sou terra. (Hilda Hilst)
- Hoje eu bem queria que o mundo acabasse num barranco...
- A dica do James, como sempre, é ótima: Florence and the Machine, Dog Days. A música é boa, e o clipe melhor ainda!
- E o Mauricio fez o post sociológico mais cheio de mel do mundo. [O que me lembrou que em algum momento eu tenho que ler As Palavras e as Coisas. Mas acho que vai ficar pra depois de outros cursos e, quem sabe, depois do História da Loucura. Ou seja: a pessoa sem noção vai passar o resto da vida tentando chegar n'As Palavras e as Coisas...].
- E além de ontem um aluno ter me chamado de "professorinha", hoje recebi uma mensagem de uma aluna que começava com "oi, profi". Tudo bem que eu tenho essa cara de quem nem saiu da graduação, mas, pô! Onde está o decoro, minha gente? :-)
- Hoje eu vi a Cecilia e toda a Familia Rillo Alencar!!! Vocês não têm ideia de como ela está fofa e querida... Doçura total, minha gente. E como ela não gostou do meu colo, joguei a carta básica do "vou te mostrar umas coisas legais", e aí ela curtiu tentar pegar a estrela do mar pendurada na parede do restaurante e as rebarbas de um quadro de tapeçaria... Igualzinha à mãe dela: não pode ver tirinhas de tecido que já sai querendo pegar...
- Hoje o dia foi corrido, cheio de atrasos, mudanças de rumo. Mas inesperados que não chegam a trincar a sensação inteireza, ao contrário: parece que tudo era parte de um mesmo fluxo. Estranho. Mas inteiro.
O Rodrigo não anda a fim de sair de casa. Simples e definitivo assim: não importa qual seja a proposta, o ser prefere ficar dentro de casa, brincando ou mesmo assistindo filmes (agora ele entrou na onda de "Princípes e Princesas", do Michel Ocelot, que é lindo e divertido mesmo). Não quer ir ao parque, não quer ir a aniversários.
Eu e o Edu já estávamos ficando preocupados. Ainda que achemos que é só uma fase, sabe como é: já estávamos cogitando problemas - em casa, na escola, sei lá - , tecendo hipóteses, imaginando soluções... Mas ontem, conseguimos convencê-lo a ir à festa de um amiguinho de quem ele gosta bastante.
Chegamos lá, mas os amigos da escola mesmo não tinham chegado. Ele então ficou tomando chocolate quente (a festa era às 10h da manhã, então era um café-da-manhã, delicioso) e se ambientando. Disse não a todas as nossas tentativas de fazê-lo experimentar os brinquedos, fez birra para a mãe do amiguinho, mas pelo menos não deu chilique nenhum, só ficou observando...
Os amiguinhos dele começaram a chegar, e, num passe de mágica, de repente ele estava brincando, pulando, correndo. De vez em quando checando para ver se não sumíamos, mas ainda assim se divertindo muito com as brincadeiras propostas pelos monitores.
[A festa foi em um buffet muito bacana, que trabalha numa linha antroposófica, então não tem nada de brinquedos barulhentos, quilos de açucar, crianças alucinadas etc. Tinha sucos naturais, espaço amplo, contação de histórias e brinquedos em sua maioria de madeira, para estimular a imaginação. Muito, muito bacana. Ao invés da exaustão de um tempo que foi vorazmente consumido, a gente sai com a sensação de paz, gratidão e encontro].
Em uma certa altura, vejo o Rodrigo passar e se aproximar de um dos amigos da escola. Aí, ele estendeu a mão e perguntou: "E., vamos brincar lá fora?". Mais que depressa, E. ignorou os apelos da mãe dele, que queria que ele parasse para comer alguma coisa, deu a mão para o Rô e lá foram os dois, explorar o quintal. Tão doce, vê-los correndo de mãos dadas! Tão queridos, em sua aprendizagem de companheirismo e amizade...
Vão vendo que o único problema que o Rodrigo aparentemente tinha era um bastante comum: preguiça :-)
Marido, na Livraria, procurando um presente para mim. Antes, porém, ele resolveu passar pela seção de Sociologia, porque vício é vício... Como ele estava com ares de perdido (segundo o próprio, que eu e o Rô estávamos nos divertindo na seção de literatura infantil e não testemunhamos nada), o atendente veio perguntar a ele se podia ajudar.
Então, Edu teve a ideia de procurar algo que me ajudasse em minhas variadas manias - fazer velas, costurar softies, fazer cadernos ou álbum de fotos com papel reciclado... - e soltou:
- Eu queria ir na seção de hobbies.
Reparem vocês que ele estava na seção de Sociologia e que quando a gente fala, ninguém passa embaixo a legenda. De maneira que o moço se animou e convidou-o a seguir-lhe até a seção em que estavam todos os livros de... Thomas Hobbes :-)
Edu riu e explicou o mal-entendido (super honesto, diga-se de passagem). Tentando ser mais claro, Edu pediu então para ir à seção de "passatempos". Alguma aposta sobre onde ele foi parar?
Na seção de Sudoku!
Rindo, mais uma vez tentou explicar o que tinha em mente: trabalhos manuais. E só então, finalmente, foi levado à seção onde estavam os livros que ele realmente queria encontrar.
(E, antes que alguém pergunte, ele não me comprou nada, não, porque resolveu - depois de toda essa saga - que não seria coisa de um bom marido contribuir para a procrastinação da própria esposa...).
Talvez seja esse cinza, esse frio, essa vontade de ficar encolhida - cachecóis azuis, roupa mole (que me rendeu a indignação do meu filho, perguntando porque raios eu ia levá-lo a escola "de pijamas"), chá quentinho para confortar o corpo...Talvez seja porque é preciso inventar aconchegos e bonitezas para tornar a vida um bocadinho mais larga.
Fato é que hoje, ao escrever um post sobre Agosto que será publicado amanhã, lá no Margens, encontrei uma crônica linda do Caio, que não vou resistir a colocar aqui, e fiquei sorrindo sozinha da precisão que ele tem em dizer aquilo que a gente também sente, mas com ele aprende a sentir mais bonito e mais denso. E fiquei curtindo, junto com ele, a sensação boa de inventar presenças, de guardar delicadezas, de não temer clichês e cuidar de aveludar por dentro a saudade e a esperança.
E é tão mansa essa felicidade de ler um texto bonito, de rememorar canções, de me pegar sorrindo sozinha, que de repente me dou conta: já é Setembro-por-dentro.
A crônica é para ser lida ao som de "Melodia Sentimental", cantada pela Olivia Byington (linda!). Finalmente consegui subi-la no goear. Não é maravilhosa?
Carta Anônima
Caio Fernando Abreu
Tenho trabalhado tanto, mas penso sempre em você. Mais de tardezinha que de manhã, mais naqueles dias que parecem poeira assentada aos poucos e com mais força enquanto a noite avança. Não são pensamentos escuros, embora noturnos. Tão transparentes que até parecem de vidro, vidro tão fino que, quando penso mais forte, parece que vai fazer assim clack! e quebrar em cacos, o pensamento que penso de você. Se não dormisse cedo nem estivesse quase sempre cansado, acho que esses pensamentos quase doeriam e fariam clack! de madrugada e eu me veria catando cacos de vidro entre os lençóis. Brilham, na palma da minha mão. Num deles, tem uma borboleta de asa rasgada. Noutro, um barco confundido com a linha do horizonte, onde também tem uma ilha. Não, não: acho que a ilha mora num caquinho só dela. Noutro, um punhal de jade. Coisas assim, algumas ferem, mesmo essas que são bonitas. Parecem filme, livro, quadro. Não doem porque não ameaçam. Nada que eu penso de você ameaça. Durmo cedo, nunca quebra.
Daí penso coisas bobas quando, sentado na janela do ônibus, depois de trabalhar o dia inteiro, encosto a cabeça na vidraça, deixo a paisagem correr, e penso demais em você. Quando não encontro lugar para sentar, o que é mais freqüente, e me deixava irritado, descobri um jeito engraçado de, mesmo assim, continuar pensando em você. Me seguro naquela barra de ferro, olho através das janelas que, nessa posição, só deixam ver metade do corpo das pessoas pelas calçadas, e procuro nos pés daquelas aqueles que poderiam ser os seus. (A teus pés, lembro.). E fico tão embalado que chego a me curvar, certo que são mesmo os seus pés parados em alguma parada, alguma esquina. Nunca vejo você - seria, seriam?
Boas e bobas, são as coisas todas que penso quando penso em você. Assim: de repente ao dobrar uma esquina dou de cara com você que me prega um susto de mentirinha como aqueles que as crianças pregam umas nas outras. Finjo que me assusto, você me abraça e vamos tomar um sorvete, suco de abacaxi com hortelã ou comer salada de frutas em qualquer lugar. Assim: estou pensando em você e o telefone toca e corta o meu pensamento e do outro lado do fio você me diz: estou pensando tanto em você. Digo eu também, mas não sei o que falamos em seguida porque ficamos meio encabulados, a gente tem muito pudor de parecer ridículos melosos piegas bregas românticos pueris banais. Mas no que eu penso, penso também que somos meio tudo isso, não tem jeito, é tudo que vamos dizendo, quando falamos no meu pensamento, é frágil como a voz de Olívia Byington cantando Villa-Lobos, mais perto de Mozart que de Wagner, mais Chagal que Van Gogh, mais Jarmush que Win Wenders, mais Cecília Meireles que Nelson Rodrigues.
Tenho trabalhado tanto, por isso mesmo talvez ando pensando assim em você. Brotam espaços azuis quando penso. No meu pensamento, você nunca me critica por eu ser um pouco tolo, meio melodramático, e penso então tule nuvem castelo seda perfume brisa turquesa vime. E deito a cabeça no seu colo ou você deita a cabeça no meu, tanto faz, e ficamos tanto tempo assim que a terra treme e vulcões explodem e pestes se alastram e nós nem percebemos, no umbigo do universo. Você toca minha mão, eu toco na sua.
Demora tanto que só depois de passarem três mil dias consigo olhar bem dentro dos seus olhos e é então feito mergulhar numas águas verdes tão cristalinas que têm algas na superfície ressaltadas contra a areia branca do fundo. Aqualouco, encontro pérolas. Sei que é meio idiota, mas gosto de pensar desse jeito, e se estou em pé no ônibus solto um pouco as mãos daquela barra de ferro para meu corpo balançar como se estivesse a bordo de um navio ou de você. Fecho os olhos, faz tanto bem, você não sabe. Suspiro tanto quando penso em você, chorar só choro às vezes, e é tão freqüente. Caminho mais devagar, certo que na próxima esquina, quem sabe. Não tenho tido muito tempo ultimamente, mas penso tanto em você que na hora de dormir vez em quando até sorrio e fico passando a ponta do meu dedo no lóbulo da sua orelha e repito repito em voz baixa te amo tanto dorme com os anjos. Mas depois sou eu quem dorme e sonha, sonho com os anjos. Nuvens, espaços azuis, pérolas no fundo do mar. Clack! como se fosse verdade, um beijo.
- Final de semana passado foi de preguiça... Marido e eu tangenciando gripes, Rodrigo mal-humorado sem querer sair de casa... Mas no fim, acho que era o que precisávamos mesmo.
- No sábado à noite assistimos $icko, do Michael Moore, tão interessante quanto assustador. Os americanos realmente são os que mais levam a sério o liberalismo como arte de governo. E o pior é que o nível da discussão provocada pela proposta do Obama para reformar o sistema de saúde americano mostra como essa posição leva a uma espécie de beco sem saída: nem se consegue escapar do discurso da liberdade de comprar serviços no mercado, nem tampouco se avança na ideia de regulação social dos serviços privados... Terra de ninguém. E aí a americana com problemas de saúde adquiridos depois de seu trabalho de apoio no 11 de setembro vai à Cuba e chora com o fato de que o remédio pelo qual ela paga U$ 120,00 custar o correspondente a cinco centavos... Ela acha um insulto. Mas sua reação seguinte já não é a de problematizar as razões pelas quais seu remédio custa um absurdo em seu país, mas sim dizer "vou comprar um estoque"... (Provavelmente, hoje tem resenha do filme lá no Margens).
- Tenho escrito mais no Margens do que aqui... É que lá assumimos um cronograma, para animar as postagens, e também talvez seja porque tem várias ideais que estou precisando amadurecer antes da defesa. Acho que faz parte, né? Ter fases de silêncio, fases de outros interesses.
- Mas ainda quero escrever esta semana sobre um livrinho da Ruth Rocha que eu adorava quando pequena (Faca sem ponta, galinha sem pé) e também sobre um desenho que está passando no Discovery Kids e que eu detesto, tão equivocado ele consegue ser (alguém já assistiu a "Sid, o Cientista"?).
O Maurice, pessoa querida da minha vida, resolveu me deixar super emocionada e decidiu me dar de presente uma bolsa maravilhosa da Denize.
Levei um baita susto quando topei com aquele pacote na portaria, endereçado pra mim, com a cara inconfundível dos pacotes da La Reina Madre. Como ele tinha me avisado que meu presente estava a caminho, logo me dei conta de que tinha sido ele o autor da arte, o que só aumentou ainda mais minha surpresa e emoção.
Então abri o pacote e dei de cara com uma cartinha linda e carinhosa, e com uma Hot Bag My Friend linda, bonita, vermelha e cheirosa.
E eu, que pensei que a emoção de receber e abrir uma La Reina não podia ser maior, percebi que me enganei: para além dos carinhos e cheirinhos que tornam tão especial cada pacote, o presente que o Maurice escolheu pra mim, com tanto cuidado e atenção, trouxe também um pedacinho dele e dessa nossa amizade - tão delicada e fortemente costurada quanto as bolsas da Denize.
As usual, mon cher, pra você o meu carinho infinito.
A casa andou tão abandonada, tanta coisa a ser limpa ou jogada fora, e eu não tinha tido tempo de colocar as coisas no lugar. Na semana passada, finalmente, roubei tempo e consegui: arrumar as estantes dos livros de literatura, pôr ordem no escritório, colocar os textos em pastas, as canetas nos potes, os lápis nas caixas, os pingos nos is. Arrumar por fora, pra ver se o por dentro também encontra alguma ordem.
O corpo cansado e doído, mas recheado de cintilâncias, porque colocar colocar a casa em ordem é quase escavar as diversas camadas de amor que foram se depositando nas estantes e por toda a casa que é nossa: sete anos de vida em comum e nossos começos estão na dedicatória linda que você me escreveu no livro da Adélia Prado; nas mensagens que a gente trocava tão intensamente, até antes do começo (ou vai ver que começou aí, nas palavras cotidianas com as quais a gente se tateou antes mesmo que a paixão nos tomasse); o amor está parafusado, colado e pintado nas coisas que inventamos e construímos para que a casa ficasse mais bonita e com a nossa cara; está nas coisas que sonhamos, escolhemos e compramos juntos; está na confusão das novidades que o Rodrigo trouxe - e arrumar a casa é sempre arrumar também mais espaço para esse nosso filho que não pára de crescer.
Arrumar a casa, nessas arrumações "sérias", só dá pra fazer com muito tempo disponível para aproveitar a paisagem. Tem que ser sem pressa, para que seja possível parar a cada bilhete perdido reencontrado, a cada grifo esquecido no livro predileto, a cada sorriso de surpresa ou saudade.
Sei que você não entende direito, por isso é que venho aqui te explicar: eu arrumo a casa pra passar pano úmido por dentro de mim, pra recolher cada pedacinho e poeirinha desse nosso amor, pra evitar que ele se desgaste, pra nos reencontrar. E, assim, relembrar a certeza boa de quando te conheci e entendi que meu lugar é aqui: do teu lado.
Quando eu era pequena e a gente fazia aquelas brincadeiras para descobrir com quem íamos casar, quantos filhos íamos ter, e (não me lembro bem) até qual carro teríamos, a idade que eu chutava era sempre em torno dos 20 e poucos anos. 24, se não me engano. Passar dos 20 anos era atingir o auge da vida adulta. Isso e chegar ao ano 2000, quando então teríamos também 20 e poucos anos. Eram dois marcos e dois alvos, ambos semelhantes em seu significado: "virar gente grande", ser dono da própria vida, casar, ter filhos, trabalhar.
Talvez eu sinta um pouco de saudade, às vezes, da ingenuidade infantil de crer que alcançar uma idade significava alcançar, como que por decreto, tudo aquilo que supostamente vem com a vida adulta. Porque os vinte chegaram e foram embora, os trinta já chegaram há algum tempo, e as metas que marcam a passagem definitiva pra vida adulta são bem mais complicados do que fazer aniversário. Ou talvez a gente é que tenha finalmente se dado conta de que a passagem definitiva não era sentar no novo degrau porque o degrau está numa escada cambiante e muda de forma e lugar na medida em que muda o significado que a gente dá a ser gente grande. E tem muito mais envolvido do que saber com quem vamos ficar, quantos filhos vamos ter, em que cidade vamos morar ou qual carro vamos dirigir.
Pra comemorar, então, já que supostamente o dia é meu (e do Caetano Veloso e da Charlize Theron), 32 micro-coisas sobre mim.
1. Nasci num dia de muito sol e minha alma leonina é viciada no dito cujo.
2. Por isso mesmo, dias cinzas me doem muito por dentro.
3. Ainda no tema "auspícios do signo", sou a terceira geração de mulheres leoninas casadas com sagitarianos (embora minha mãe tenha depois escapado da herança...).
4. Sou tímida até beirar o ridículo.
5. Mas depois que me sinto à vontade, sou palhaça (até beirar o ridículo).
6. Adoro ler gibis.
7. Adoro falar no telefone.
8. Minhas plantas preferidas são as suculentas.
9. Depois que tive o Rô, fiquei com medo de avião.
10. Prefiro subir a serra do que descê-la.
11. Tenho "síndrome de qual é a música". Se você falar alguma coisa, há sempre o risco de que - ao invés de responder - eu comece a cantar...
12. Não consigo começar o dia sem arrumar a cama.
13. Gosto muito de ler.
14. Tenho fases com cada escritor: se gosto, não sossego até ler boa parte de seus livros (mesmo os que são ruins).
15. Adoro livros infantis.
16. Não gosto de matar aranhas, lagartixas ou louva-deus, por causa da Sra. Minha Avó.
17. Cachorros não costumam latir para mim.
18. E por causa disso eu tinha uma encanação de que o diabo andava atrás de mim! (Dean, por favor, me salve!).
19. Tenho medo de chuva forte.
20. Tenho medo de mexer com energia elétrica.
21. Já fui bem mais disciplinada e organizada do que sou hoje.
22. Queria ser mais disciplinada e organizada do que sou hoje.
MP3 pode ser muito mais prático; mas não tem coisa que se compare a fuçar CDs antigos, reencontrar pedaços da gente assim, de surpresa, só por relembrar de músicas (e histórias).
Estava lendo a Susan Sontag, A doença como metáfora e AIDS como metáfora (Companhia de Bolso,2007. Tradução: Rubens Figueiredo/Paulo Henrique Brito) . Comecei naquele dia em que Rodrigo dormiu na Livraria Cultura e, conforme lia, me impressionava como o ensaio é vigoroso e pode nos aproximar, por vezes com mais clareza, de questões que estão no cerne da experiência do presente.
Se isso era verdade no primeiro ensaio, escrito em 1976, logo após ela ter se descoberto com câncer, quando cheguei ao "AIDS como metáfora" (que é de 1986), as coisas foram ficando assustadoramente próximas. Em parte, é claro, porque as observações que ela faz dialogam com a percepção que eu tinha, ainda que fosse criança, a respeito da "novidade" introduzida pela AIDS. Mas principalmente porque, num ensaio quase despretencioso, ela apanha tensões e transformações centrais para compreendermos o que nos acontece hoje e ilumina muito tanto sobre o funcionamento de todo o dia das relações sociais quanto sobre as significações e reações aos surtos de gripes atípicas.
Em alguns trechos, sua análise me fez lembrar o Zizek de Bem vindos ao deserto do real. Embora analisando eventos muito distintos - ela, a AIDS; ele, o 11 de setembro - como focam seu olhar sobre a sociedade americana, parece que apanham mecanismos muito semelhantes. Vejam lá:
"[...] A vontade de fazer previsões pessimistas reflete a necessidade de dominar o medo do que é considerado incontrolável. Exprime também uma cumplicidade imaginativa com o desastre. A sensação de mal-estar ou fracasso cultural dá origem à vontade de começar do zero, de fazer tábula rasa. Ninguém quer uma peste, é claro. Mas é bem verdade que seria uma oportunidade de começar algo novo. E começar algo novo é bem moderno, e bem americano, também. É possível que a AIDS esteja tendo o efeito de nos acostumar ainda mais à idéia da destruição global, uma perspectiva à qual já fomos acostumados pelos armamentos nucleares. Quanto maior a inflação da retórica apocalíptica, mais irreal se torna a perspectiva do apocalipse. Eis uma situação que se repete constantemente no mundo moderno: o apocalipse aproxima-se... e não chega a acontecer. E continua a aproximar-se. Pelo visto, estamos sofrendo de um dos tipos de apocalipse moderno. Temos um que não está acontecendo, cujo resultado permanece suspenso: os mísseis que descrevem órbitas em torno da Terra, com uma carga nuclear capaz de destruir todas as formas de vida sobre a Terra várias vezes sucessivamente, e que (até agora) não dispararam. E temos ainda aqueles que estão acontecendo, e no entanto não tiveram (até agora) as consequências mais temíveis - como a dívida astronômica do Terceiro Mundo, a superpopulação, os desastres ecológicos; e também os que acontecem e depois (segundo nos dizem) não aconteceram - com o o colapso da bolsa de valores de outubro de 1987, que foi um crack, como o de outubro de 1929, e não foi. O apocalipse agora virou uma novela: não "Apocalipse agora", mas "Apocalipse de agora em diante". O apocalipse passou a ser um evento que está e não está acontecendo. Talvez alguns dos eventos mais temidos, como os danos irreversíveis ao meio ambiente, já tenham acontecido. Mas ainda não sabemos, porque os padrões mudaram. Ou porque ainda não conhecemos os índices apropriados para medir a extensão da catástrofe. Ou simplesmente por se tratar de uma catástrofe em câmara lenta. Ou que dá a impressão de ser em câmara lenta, porque sabemos que está acontecendo, podemos prevê-la; e agora temos que esperar que ela aconteça, para que venha a se concretizar aquilo que julgamos saber.)", (p.145-6)
Susan Sontag também apanha as condições para que a AIDS seja usada eficazmente para atualizar a metáfora da "peste", numa formulação que, para mim (que venho lidando com a noção foucaltiana de biopolítica), é muito precisa: "[...] A idéia de que a AIDS vem castigar comportamentos divergentes e a de que ela ameaça os inocentes não se contradizem em absoluto. Tal é o poder, a eficácia extraordinária da metáfora da peste: ela permite que uma doença seja encarada ao mesmo tempo como um castigo merecido por um grupo de "outros" vulneráveis e como uma doença que potencialmente ameaça a todos. [...] Mais do que o câncer, e de modo semelhante à sífilis, a AIDS parece ter o poder de alimentar fantasias sinistras a respeito de uma doença que assinala vulnerabilidades individuais tanto quanto sociais. O vírus invade o organismo; a doença (ou, na versão mais recente, o medo da doença) invade toda a sociedade" (p. 127-8). Mais atual, impossível.
Igualmente fecunda é a análise que a autora faz a respeito das análises e projeções estatísticas e seus efeitos:
"A vida moderna nos habitua a conviver com a consciência intermitente de catástrofes monstruosas, impensáveis - porém, conforme nos afirmam, bem prováveis. Cada acontecimento importante tem seu duplo, além de sua representação enquanto imagem (uma duplicação já antiga da realidade, que começou com a invenção da câmara fotográfica, em 1839). Ao lado da simulação fotográfica ou eletrônica dos eventos, temos também o cálculo de suas consequências eventuais. A realidade bifurcou-se, na coisa real e em sua versão alternativa, duas vezes. Temos o evento e sua imagem. E temos o evento e sua projeção. [...] A capacidade de avaliar o modo pelo qual as coisas evoluirão no futuro é o subproduto inevitável de uma compreensão mais sofisticada (quantificável, testável) dos processos, tanto sociais quanto científicos. A capacidade de projetar eventos futuros com certo grau de precisão ampliou a própria definição de poder, por ser ampla fonte de instruções a respeito da maneira de se lidar com o presente. Mas, na verdade, a capacidade de antever o futuro, antes associada à noção de progresso linear, transformou-se - com a aquisição de um volume de conhecimentos maior do que se poderia imaginar - numa visão da catástrofe. Cada processo é uma perspectiva que aponta para uma previsão apoiada em estatísticas. [...] Tudo na história ou na natureza, capaz de ser encarado como um processo de mudança constante, pode ser visto como algo que caminha em direção a uma catástrofe. (Ou o insuficiente, cada vez menor - decréscimo, declínio, entropia -, ou o excessivo, maior do que podemos enfrentar ou absorver - crescimento incontrolável.). A maioria dos pronunciamentos dos peritos a respeito do futuro contribui para essa nova apreensão dupla da realidade - que vem somar-se à duplicidade, à qual já nos habituamos, criada pela abrangente duplicação em imagens de todas as coisas. Temos o evento que está acontecendo agora, e temos também aquilo que é pressagiado por ele: o desastre iminente, mas não real ainda, nem completamente apreensível" (p.146-7).
Nesse modelo de conhecimento - estatístico - que altera a forma de colocar em relação passado, presente e futuro e também modifica a relação entre os elementos que são definidos como "variáveis", a duplicidade está na distância que vai das probabilidades ao acontecimento. A distribuição estatística das probabilidades é lida como duplicação da estrutura social - e dessa maneira nos é possível compreender a importância central que adquirem nos discursos, termos que estão ligados ao cálculo das probabilidades sociais, "empregabilidade', "vulnerabilidade". A ambiguidade da palavra "chance", ao mesmo tempo "oportunidade" e "probabilidade", dá notícia da importância que a idéia de jogo adquiriu em nossa sociedade. É também a ambiguidade que se expressa na idéia de que o merecimento se liga tanto ao mérito das ações, quanto à força com que se "pede ao universo"... Mas já estou misturando as estações.
Pra terminar esse post muito longo (e que talvez ainda acabe indo parar também no Margens)., vou destacar apenas mais um ponto da análise de Susan Sontag: sua observação de que o aspecto novo na utilização da AIDS como atualização da metáfora da "peste" se relaciona ao fato de ser um vírus reconhecidamente portador de duas características - a latência (sendo possível ser portador, sem estar doente) e a mutação.
[...] "Mais promissor ainda do que a idéia de latência é o potencial da AIDS como metáfora da contaminação e da mutação. O câncer continua sendo usado como metáfora para referir-se a coisas temíveis ou condenáveis, muito embora a doença seja menos temida do que antes. Se a AIDS terminar sendo utilizada para fins semelhantes, será menos por ser ela invasora (uma característica que tem em comum com o câncer), ou mesmo por ser infecciosa, mas por causa da imagística específica que se desenvolveu em torno do vírus. A virologia fornece todo um novo repertório de metáforas medicinais que não dependem da AIDS em particular, mas que assim mesmo reforçam a mitologia sobre ela. Foi muito antes da AIDS que William Burroughs afirmou, em tom de oráculo, e Laurie Anderson repetiu, que a 'linguagem é um vírus'. E a explicação viral é invocada cada vez mais. Até recentemente, a maioria das infecções virais conhecidas manifestava seus efeitos rapidamente, como a raiva e a gripe. Mas coma expansão da categoria dos vírus de ação lenta, a lista está aumentando. Muitas doenças progressivas e invariavelmente fatais do sistema nervoso central, algumas doenças degenerativas do cérebro capazes de se manifestar na velhice e as chamadas doenças de auto-imunização agora está sendo encaradas como possivelmente causadas por vírus lentos. [...] O vírus não é apenas um agente da infecção, da contaminação. Ele transporta "informação" genética, ele é capaz de transformar uma célula. E em muitos casos o próprio vírus evolui. [...] Talvez não seja de surpreender o fato de que o mais novo fator de transformação do mundo moderno, a informática, esteja utilizando metáforas extraídas de nossa mais recente doença transformadora. Também não admora que as descrições do processo de infecção viral agora utilizem a linguagem da era do computador, como quando se diz que o vírus produz "cópias de si próprio". Além das descrições mecanicistas, a maneira como os vírus são caracterizados de modo animista - como uma ameaça à espreita, mutável, furtiva, biologicamente inovadora - reforça a idéia de que uma doença pode ser algo engenhoso, imprevisível, inaudito" (p.131-2).
Quando comento a atualidade do ensaio de S. Sontag, não quero sugerir que sua análise sobre a AIDS seja imediatamente "aplicável" ao caso da gripe suína, mesmo porque entre os quadros provocados pela AIDS e os provocados pela gripe, há uma enorme distância. Minha observação é mais em relação à atualidade dos mecanismos de controle e segurança que produzem a duplicidade a que a autora se refere em relação às epidemias e pandemias: ainda que se trate, em princípio, de uma situação atípica, cujo modelo de compreensão é o "surto" ou a "crise", os eixos que a gripe tematiza - controle epidêmico, identificação dos casos e segregação dos doentes, vacinas, identificação da distribuição das vulnerabilidades, restrição da circulação - são eixos fundamentais para a compreensão daquilo que conforma nossa experiência do presente.
A frase final do livro de S. Sontag criticando as métaforas militares com que se descreve a doença e, de outro lado, com que se procura mobilizar a sociedade para combatê-la, também continua atualíssimo (e é mais um ponto de contato com Zizek):
"[...] A metáfora que estou mais interessada em aposentar, mais ainda depois do surgimento da AIDS, é a metáfora militar. Sua utilização inversa - o modelo médico do bem-estar público - provavelmente tem consequências ainda mais perigosas e extensas, pois ele não apenas fornece uma justificativa persuasiva para o autoritarismo, como também aponta implicitamente para a necessidade da repressão violenta por parte do Estado (equivalente à remoção cirúrgica ou ao controle químico das partes indesejáveis pu "doentes" do organismo político). Mas o efeito das imagens militares sobre a conceituação da doença e da saúde está longe de ser irrelevante. Elas provocam uma mobilização excessiva, uma representação exagerada, e dão uma contribuição de peso para o processo de excomunhão e estigmatização do doente. A idéia de 'medicina total" é tão indesejável quanto a de guerra "total". [...] Não estamos sendo invadidos. O corpo não é um campo de batalha. Os doentes não são baixas inevitáveis, nem tampouco são inimigos. Nós - a medicina, a sociedade - não estamos autorizados a combater por todo e qualquer meio... Em relação a essa metáfora, a metáfora militar, eu diria, parafraseando Lucrécio: que a guardem os guerreiros", (p.150-1).
Para ler ouvindo "I hate to say I told you so", do The Hives.
O Rio de Janeiro continua lindo; o James continua querido e ótima companhia para papear; o Rodrigo já voltou às aulas; o marido já voltou o trabalho e eu já voltei aos milhões de coisinhas e coisonas a serem resolvidas - em pleno inferno astral que termina essa semana.