20 dezembro, 2013

assino embaixo

do que a Noemi Jaffé escreveu: por outro lado, esse "tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas", é bem careta. cativar é tornar cativo, aprisionar. é a definição clássica, grega mesmo, de paixão - uma doença que aprisiona o sujeito. daí que cativar não tem nada a ver com amizade, que é, por natureza, livre. assim sendo, sugiro: "tu te tornas temporariamente irresponsável por aquilo que libertas". isso sim é amizade.

24 novembro, 2013

na beirada da semana

(a trilha inteira do filme é ótima - assim como o filme, ainda melhor do que o primeiro. mas essa música é de colocar no modo repeat, ad infinitum).
(bom domingo chuvoso para você, que também está trabalhando).
(e ótimo domingo chuvoso para você, que não está trabalhando, claro!).


10 novembro, 2013

paragem

“Nada em nós ventila, só o vento dentro do vento nos alcança, sem notícia, nem claridade, nem viagem nem sal marinho” (Nuno Ramos).

Coloco o grão-de-bico deixado de molho, desde ontem, pra cozinhar na panela de pressão. Histórias antigas de panelas explodindo passam rápido pela minha memória, a pele solta do grão inchado entupindo os buracos por onde o ar deveria escapar. Penso no meu irmão, sempre tão mais artesão de virar o sentimento em palavra. Penso nele conversando com a mãe. Tateando a coragem. Pedindo ajuda pra se desvencilhar de si mesmo e colocar um pé adiante de outro pé adiante. As conversas lentas na cozinha onde a luz do dia fazia contraste e em vez de iluminar, protegia as sombras.
Eles conversavam naqueles meios de tarde, a louça já lavada, as panelas de alumínio brilhando, o café já começando a pingar no bule comprido, também ele de alumínio. Eles conversavam e eu ouvia. Do que falavam não era nenhum segredo, mas ainda assim eu me esgueirava para escutar, espichava o ouvido, o coração quase atrapalhando a missão de tanto que tum-tum-tum.
Pego na cesta um gengibre já querendo murchar, tanta secura por dentro. Vou no quintal, agora mato alto, e encontro coentro, florindo brancuras. Também ele meio amarelando, o sol do meio dia paralisando até a vontade tênue. Faz calor. Um calor modorrento.
Penso no meu irmão para desviar de pensar na mãe. Em seus sabimentos. No jeito de ensinar as coisas mais duras, mais fundas, como quem ensina a cortar a lenha ou a dar ponto de tricô. Ela nem lia. Nem escrevia. O mundo não era um livro aberto – as páginas brancas ordenadas em sentenças, encadeamentos, sentido. O mundo dela era cheio de recônditos e entranhas. Sentidos só vezemquando revelados. A mãe era toda poesia, os cabelos soltos, as mãos rugosas, os olhos transluzindo todos os universos que ela tornava habitados.
Pensar nela me paralisa, agora. Devia ser o contrário: sem ela, sem o pai, eu navio subindo as âncoras e capaz de errar, tantos mares. Mas lembro dela, lembro essa minha orfandade e ai. Falta o ar.
Na caçarola jogo cebola, gengibre, cominho. Também duas folhas de louro. Três dentes de alho, inteiros. Azeite, bem pouquinho.
Quando eu tinha medo, ela falava de sol e chuva, de secas e umidades, de estações. Eu entendia, sem entender. Que o presente é frágil. Que a vida é ciclo. Que tem tempos de aridez e estio. E outros de festa úmida e florescências. Que a coragem está no passo, mas também na espera – pelo tempo certo e oportuno.
O ar que me falta, há de voltar a soprar? Quando eu doente, um amor derramado em caldos, nem todos bons. A canja, claro, imitando um sol desmaiado, pra não provocar a doença. O chá grosso de açúcar queimado, cravo, canela e gengibre. Tomado quente, só quando a cama já feita e o sono já próximo. A suadeira exorcizando o que quer que estivesse ali, roubando as forças. O chá de alho também – no limiar entre o ruim e o bom.
O irmão dominava as palavras e assim arrancava da mãe bonitezas e filosofias – ele queria aprender a viver, e mãe lhe passava as chaves com que abria o cada dia. Eu sempre fui de silêncios. De dores apertadas no peito ou no pescoço. Da mãe eu só arrancava os cuidados práticos – os remédios na doença; a comida no todo dia; o cerzido nas roupas; a cama feita nas manhãs.
Corto em cubinhos a cenoura e a vagem. Ponho pra cozinhar no vapor. O ponto certo entre o nem cru, nem cozido demais.
Penso na mãe, no pai e nessas podas à revelia. Eu agora menos afeito à minha terra, à casa e à rua onde cresci. Mas incapaz ainda assim de me lançar.
Acendo o fogo debaixo da caçarola e sinto o cheiro do gengibre, do cominho, da cebola. Todos os cheiros misturados, tão fortes, tão bons. Coloco o grão de bico. A cenoura. As vagens. O dahl vai ganhando corpo, o caldo grosso, os sabores intensos.
Antecipo o gosto, sabendo o calor, preparando as bochechas e o estômago quentes. Sabendo, sem saber, que é comida de curar. Cortando o coentro e jogando ali, ainda que nem faça sentido comer comida tão quente num dia tão quente. É estranho. Tão estranho que pra criar refresco, seja necessário ainda aumentar o calor.
Sento pra comer. Sozinho, na mesa onde aprendemos a ser família. O irmão, bem ensinado nas coragens, agora do outro lado do mundo. A comida aquece a boca, desce esquentando peito e barriga. Fervura. O gengibre, o cominho, o coentro clareando as maçãs do rosto, ensinando ao ar os caminhos por onde inflar os pulmões.
Dentro de mim, algo faz vento e finalmente sou capaz de respirar.

30 outubro, 2013

que não sou árvore para deitar raiz

para v.

que não sou árvore para deitar raiz. ela me diz. e eu, minhas raízes aéreas, entendo. escuto o desejo de outrar-se em novas terras, novos ares, nova água. de transplantar-se pra saber o que fica o mesmo e o que muda. e o que muda é a parte em nós que se deixa carregar - o acaso, o destino, a vontade. as raízes em suspenso, encolhidas como as pernas no avião, esperando novo porto pra espreguiçar amplo. esse jeito de não pensar, pensando, que ir é diferente de chegar. porque se a gente chega, é sempre em algum espaço dentro de nós mesmos, quando a pele cabe macia, recobre de conforto a fragilidade do que então, a cada vez, somos. era esse o trecho que eu tateava quando cheguei às margens de um rio: "os livros que a gente lê são uma espécie de raiz. outra espécie é das pessoas que a gente conhece e que vão arando a gente, plantam e quando você percebe já floresceu ficou podre caiu virou adubo. meu objetivo de vida é virar adubo, te digo"*. ela não é árvore pra deitar raiz. mas o silêncio fértil, a terra úmida, o novo que inaugurou em mim afirmando o contrário.

* Marcos Visnadi, na Biblioteca do Mundo do Saturnália, há muito tempo (o link não existe mais).

25 outubro, 2013

baloiço

o sol ensaia sua aparição:
hoje deu pra borboletas
no estômago
e não reúne a coragem
necessária, tão necessária
quando a gente precisa das as caras
para bater.

enquanto ele não vem,
venta.
na rede encharcada, o ar
se deita, se espalha
faz dela balão
dançando lento
como quem se embala
sozinho, em meio à casa vazia.

pra colorir a sexta-feira



23 outubro, 2013

política abissal II (conversas chilenas)


Foto: Cristiane Fernandes
nós sempre falamos muito de política. sempre. mas o exercício de memória por ocasião desses quarenta anos quase torna a política um tabu: não tem mais discussão, parece torcida organizada. mal se começa a falar e já se está brigando. tudo muito dolorido. houve especiais de tv, alguns muito bonitos e bem-feitos, falou-se muito de tudo que passou, mas não apenas as vozes então silenciadas se manifestaram e alguns, aqueles, saíram à rua para reconhecer "exageros" ou até mesmo pedir perdão. perdão. e a resposta foi clara: não perdoamos. não é possível perdoar, ao menos não assim, como o pedido sugere - como se um aceno de cabeça ou um meneio de mãos dissipasse toda dor, ainda insepulta.

***

Foto: Cristiane Fernandes

os cachorros de santiago são muitos. e grandes. e bonitos. e saudáveis. andam entre os transeuntes, altivos. alguns têm roupas. outros, morada coletiva em casas construídas nas praças. provavelmente para que se abriguem no frio. não brigam entre si, ao menos não cotidianamente. os latidos que ouvi, somente dos cachorros com dono. esperam o sinal fechar para latir com veemência para a fila de carros. dormem, em meio à calçada, com serenidade que revela a confiança de que estarão seguros. não recebem afagos a todo o tempo, mas de vez em quando alguém se senta para lhes coçar a orelha. são parte da paisagem. são signo vivo de certa forma de tratar a vida?

***
creio que não ia gostar do brasil. o chile é um país maravilhoso: caminhando para um lado, temos sol forte e calor; caminhando para o outro, temos frio e neve. meus tios me convidam sempre, mas eu nunca vou. prefiro aqui. vou pegar um azul para você, que está muito lindo. sou gráfico, faço silk para camisetas. mas ganho dinheiro mesmo aqui, vendendo sapatos. quase o dobro. para passar as férias, prefiro o chile, já estou acostumado. meus pais vão sempre ao brasil, eu não. fico aqui. e o vermelho? você não gosta? é couro, todo sapato chileno é feito de couro de verdade. aqui nesse país, agora é assim: se as coisas estão bem ou se estão mal, depende de pra quem se pergunta. e não tem a ver com posição social, não, é uma questão de fé. há os que crêem que tudo vai melhorando e está bem. há os que crêem que tudo está piorando e está mal. e a verdade é que ninguém entende nada do que está se passando. por isso vivo cada dia de uma vez, me concentro no que estou fazendo agora. acho que o verde é que ficou bom, não é verdade?

***
nos ônibus que passam, vários, a placa lembra que tentar viajar sem dinheiro para a passagem é crime, dá multa vultuosa e faz o barato sair caro. no jornal entregue na porta do metrô, ficamos sabendo de lei recentemente aprovada, que torna todos os cidadãos doadores compulsórios de órgãos, a menos que eles se dirijam a um cartório e paguem uma pequena quantia para registrar seu desejo de não doar. é uma pequena quantia mesmo, entre seiscentos e cinquenta e oitocentos e cinquenta pesos. mas juntando o conhecimento da lei, o deslocamento, o tempo de ir ao cartório, a taxa, o custo aumenta e torna os pobres apenas doadores compulsórios. os pobres que a gente quase não vê nas ruas centrais de santiago e que minha amiga me explica que é porque estão longe. que é porque sabem o seu lugar. que é muito importante saber seu lugar. dormirão tão tranquilos quanto os cachorros nas esquinas? terão a coragem de provocar os motoristas dos carros, enfileirados, em sua inexorável rota?

19 setembro, 2013

04 setembro, 2013

ainda Agamben (só que Nuno Ramos)

E daí que lendo "O que é um dispositivo?", me distraio e escuto mesmo o primeiro texto de Ó, livro do Nuno Ramos que a Ellen, uma aluna querida que tive por companhia no semestre passado, gentilmente me emprestou e que vou lendo aos poucos, antes de dormir - alternando com algumas HQs e o estranhíssimo Contos para crianças impossíveis, de Jacques  Prévert (descaradamente emprestado do filho, que por sua vez trouxe da biblioteca circulante da escola e não estava com cara de quem ia ler).

"Como todos os processos excessivamente contínuos, é preciso que nos lembremos do envelhecimento de um ponto de vista absolutamente exterior (em frases como “Não tenho idade para”, “Naquela época” ou “Quando eu era menino”) ou, ao contrário, de um interior imediato, muitas vezes corpóreo - na completa falta de ar após uma corrida, no rompimento estúpido de algum músculo. Mas é então, sob a sentença de um envelhecimento inevitável, que alguma coisa em mim parece querer, e poder, sobrevoar meu corpo, livrar-se dele - um misto de olhar para longe e de respiração, um amálgama aflito de palavras, a melodia como porta ou túnel, o instante que cava minha pegada numa paisagem imensa e posso então devorar nas plantas a sua carne amarga e lançar meu pêlo molhado sobre a minha vítima. Mas esta alegria progressiva precisa de alimento constante e o próprio corpo, em sua casca, parece não resistir bem a ela, tornando-se inquieto, ofegante e, aos poucos, cansado e deprimido. Como um balão cujo gás vai escapando, a energia insana de nossa alegria física procura abrigo - nas imagens, nos braços de outra pessoa e, no limite, pois é a isto que sempre recorre, na linguagem. É ali que a tentamos prender, antes que o gás escape de uma vez e sejamos tão somente os espectadores de nossa própria decrepitude, de nossa fusão indeterminada na matéria.

Chegamos então à beira do velho precipício - o entusiasmo das palavras vagas. É a este antigo último recurso que recorremos sempre – exclamações ou frases compulsivas que não conseguimos deixar de dizer. Talvez seja melhor tratar agora desta estranha ferramenta, a linguagem, que me põe para fora do meu corpo - tentar apreendê-la, indeciso entre o mugido daquilo que vai sob a camisa e a fatuidade grandiosa de minhas frases. Sem conseguir escolher se a vida é bênção ou matéria estúpida, examinar então, pacientemente, algumas pedras, organismos secos, passas, catarros, micro-organismos onde a vontade é una, pegadas de animais antigos, desenhos que vejo nas nuvens, cifras, letras de fumaça, rima feita de bosta, imensidão aprisionada numa cerca, besouros dentro do ouvido, fosforescência do organismo, batimento cardíaco comum a vários bichos, órgãos entranhados na matéria inerte, olhando a um só tempo do alto e de dentro para o enorme palco, como quem quer escolher e não consegue: matéria ou linguagem? [...]

Mas talvez não importe tanto fabular sobre a origem da linguagem quanto compreender a enorme cisão que ela causou. Pois uma vez amarrada esta corda entre todos, uma vez expulsos ou mortos aqueles que não quiseram valer-se dela, não há mais qualquer possibilidade de retorno, pois é próprio da mais estranha das ferramentas, da mais exótica das invenções (a linguagem), parecer tão natural e verdadeira quanto uma rocha, um cajado ou uma cusparada. Este é seu verdadeiro fundamento, sua, digamos, astúcia - a de substituir-se ao real como um vírus à célula sadia. Há aí uma potência de esquecimento que não pode ser diminuída, uma armadilha na agonia que serviu a alguns (e não a todos), sacrificando violentamente aqueles que não a utilizaram.

Restam hoje apenas algumas pistas desta origem ou, para dizer de outro modo, alguns sinais fora da linguagem. Parece uma experiência cotidiana, ainda acessível a todos, estranhar subitamente o som de determinada palavra como demasiado abstrato ou inverossímil em relação àquilo que designa, e o velho jogo infantil de repetir indefinidamente um mesmo vocábulo até que perca completamente qualquer ligação com aquilo que procura indicar talvez queira nos conduzir, apenas, de volta a uma época em que cada coisa tinha seu peso sinestésico, e tanto a cor como o sabor como a imagem eram o índice livre para aquele pássaro flechado. A própria diversidade de línguas, absolutamente cômica para quem as escuta sem entender, remete também à arbitrariedade de origem, a esta reunião primeva de feridos em busca de consolo e proteção que expulsou para longe, ou mesmo matou, os primeiros heróis mudos. Quando entramos em choque com algo inaceitável ou excessivamente belo e ficamos, literalmente, sem palavras, estamos recuperando esta etapa adormecida da nossa natureza.

O problema, no entanto, é que mesmo então, por vício de origem, queremos comunicar o que está acontecendo. E para isto precisamos dela, e tudo recomeça novamente. Há aqui uma astúcia ainda mais escondida, que precisa de explicação. Voltemos à comunidade dos doentes. É claro que, passada a epidemia ou passadas as conseqüências de algum cataclisma ou ataque, os doentes vão aos poucos tornando-se sãos, ganhando de volta a antiga confiança e desprezando aqueles sinais coletivos acumulados nos últimos tempos. Querem agora retornar à existência nômade, à barca forrada de peles que os leva rio abaixo, entre animais e pomos dourados. Por que não o fazem? Por que não retomam sua condição e seguem os passos daqueles que expulsaram? Porque já não podem, contaminados pelo novo vírus? Talvez, mas o mais provável é que tenha sido por temor àqueles que expulsaram. O irônico disto tudo é que o instinto de algum modo coletivo da linguagem só pôde desenvolver-se ao transformar em vítimas os primeiros heróis mudos. É o anel de seu exílio, circundando os novos povos falantes (como Polifemos em torno da gruta de Ulisses), que preservou a linguagem, tornando-a imprescindível à sobrevivência.

Talvez estes heróis mudos, que nunca exprimiram dor, rancor nem pasmo diante da natureza, organizando-se em núcleos extremamente isolados, tenham se distanciado cada vez mais das comunidades onde grassava a linguagem, que temiam, enfrentando as adversidades a seu modo, sem qualquer previdência. Cercados por seus antigos pares, que agora já plantavam e caçavam com armas muito mais refinadas do que as suas, devem ter provado da melancolia e da tristeza que têm as vidas em extinção. E devem ter provado disso integralmente, em seus próprios ossos, na aspereza de sua pele, sem a anestesia das palavras. E o último deles, ao morrer sozinho, terá lançado àqueles estranhos seres falantes, que já lhe tomavam a gruta, uma terrível maldição calada. O enigma deste rancor, que paradoxalmente não chegou a ser exprimido em sons articulados ou gestos reconhecíveis, açoda de perto todas as línguas vivas ou mortas, amaldiçoando o seu pacto de origem" (Nuno Ramos. Ó. São Paulo: Iluminuras, 2008).

Este primeiro texto do livro você encontra na íntegra na revista Modo de Usar & Co, onde também há uma bonita resenha. 

03 setembro, 2013

Amizade*

"A amizade é tão estreitamente ligada à própria definição da filosofia que se pode dizer que sem ela a filosofia não seria propriamente possível. A intimidade entre amizade e filosofia é tão profunda que esta inclui o philos, o amigo, no seu próprio nome e, como frequentemente ocorre para toda proximidade excessiva, corre o risco de não conseguir realizar-se. No mundo clássico, essa promiscuidade e quase consubstancialidade do amigo e do filósofo era presumida, e é certamente por uma intenção de alguma maneira arcaizante que um filósofo contemporâneo - no momento de colocar a pergunta extrema "O que é a filosofia?" - pode escrever que esta é uma questão para ser tratada entre amis. De fato, hoje a relação entre amizade e filosofia caiu em descrédito, e é com uma espécie de embaraço e de má consciência que aqueles que fazem da filosofia uma profissão tentam acertar as contas com este partner incômodo e, por assim dizer, clandestino de seu pensamento. [...]
É possível que para esse incômodo dos filósofos modernos tenha contribuído o particular estatuto semântico do termo "amigo". É notório que ninguém jamais conseguiu definir de modo satisfatório o significado do sintagma "eu te amo", tanto que se poderia pensar que este tenha caráter performativo - isto é, que o seu significado coincida com o ato do seu proferimento. Considerações análogas poderiam ser feitas para a expressão "sou seu amigo", mesmo se aqui o recurso à categoria do performativo não pareça possível. Ao contrário, penso que "amigo" pertença àquela classe e termos que os linguistas definem não-predicativos, isto é, termos a partir dos quais não é possível construir uma classe de objetos na qual inscrever os entes a que se atribui o predicado em questão. "Branco", "duro", "quente" são certamente termos predicativos; mas é possível dizer que "amigo" defina, nesse sentido, uma classe consistente? Por estranho que possa parecer, "amigo" compartilha essa qualidade com uma outra espécie de termos não-predicativos, os insultos. Os linguistas demonstraram que o insulto não ofende quem o recebe porque o inscreve numa categoria particular (por exemplo, aquela dos excrementos, ou dos órgãos sexuais masculinos ou femininos, segundo as línguas), o que seria simplesmente impossível ou, de qualquer modo, falso. O insulto é eficaz exatamente porque não funciona como uma predicação constativa, mas sim como um nome próprio, porque chama na linguagem de um modo que o chamado não pode aceitar, e do qual, todavia, não pode se defender (como se alguém insistisse em me chamar Gastone, sabendo que me chamo Giorgio). Isto é, aquilo que ofende no insulto é uma pura experiência da linguagem, e não um referimento ao mundo.
Se isso é verdadeiro, "amigo" compartilharia essa condição não apenas com os insultos, mas com os termos filosóficos que, como se sabe, não têm uma denotação objetiva, e, como aqueles termos, que os lógicos medievais definiam "transcendentes", significam simplesmente o ser. [...]
[Seguindo o desenvolvimento de Aristóteles, na Ética a Nicômaco] Os amigos não condividem algo (um nascimento, uma lei, um lugar um gosto): eles são com-divididos pela experiência da amizade. A amizade é a condivisão que precede toda divisão, porque aquilo que há para repartir é o próprio fato de existir, a própria vida. E é essa partilha sem objeto, esse com-sentir originário que constitui a política. [...].
(Giorgio Agamben, O amigo. In: ___. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. 5ª reimp. Chapecó: Argos, 2013. Trad.: V. N. Honesko, p.79-82).
* Com gratidão ao amigo Mauricio, por ter falado do livro com entusiasmo, por ter me levado à livraria e literalmente por ter me posto o livro às mãos. E, claro, por tudo que nos condivide.

mais projeto para um final de semana



Distribuindo capas charmosas para livros em três, dois...

28 agosto, 2013

em fogo brando


Quarta-feira, que é o dia possível, sem filhos para pegar na escola, sem pai para levar ao médico. Eu e ela, em pontas diversas da vida. Mas a gente se encontra, nessa mesa aqui de casa – a toalha de chita, os pratos brancos, a saudade grande de papear sem pressa.
Ela chega, eu abro a porta, a gente para, a olhar o verde crescendo. O louro, que ela conheceu quando ainda era muda. O alecrim, que temperou tantas sopas de abóbora. O manjericão, que perfumava saladas e molhos. O hortelã, coitado, um pouco sofrido e precisando se recuperar do inverno seco. Tudo isso olhamos juntas, a conversa animada nessa atenção aos ciclos. Aproveito para colher um pouco de coentro e ela já adivinha: vamos ter moqueca.
Entramos, a bolsa dela no sofá, as chaves no móvel, e já nos encaminhamos para a cozinha. Faço e ofereço café, que o convite é para o almoço, mas tudo ainda está por fazer. É bom aquele quente e aquele amargo. Sempre achei que café fosse uma espécie de preâmbulo. Ou de pretexto, ela comenta, rindo ao me lembrar que foi esse o convite que fiz ao meu marido, da primeira vez que saímos, e que naquele dia o café virou lanche e sobremesa e petisco antes do jantar e retornou sobre si mesmo no desjejum do dia seguinte. Também rio dessa história antiga, que ela ouviu em primeira mão, mal eu tinha chegado em casa, o cansaço e a alegria no corpo.
Se não é preâmbulo, perco a desculpa e começo a ajeitar as coisas. Pego as cebolas e vou cortando, bem fininhas, enquanto ela ao lado vai desprendendo as camadas em anéis. Os tomates, vermelhos e maduros, também corto em rodelas.
Conto dos filhos, crescendo imensos e tão outros que perco o fôlego e não os reconheço no que dizem, no que fazem, no que falam. Falo do marido, os cabelos cada vez mais brancos, e a ternura funda de ver cumprir as promessas de envelhecer juntos. Ela fala do pai, do acostumar-se com o susto de reconhece-lo tão velho. Senil, é a palavra, a que as manchas e rugas nas mãos e o lapsos de memória dão corpo. Um corpo envelhecido, e tão frágil, ela vê.
Abro o vidro de pupunha. Mais círculos na nossa comida, penso. Mas não falo, pois continuo a escutar o que ela me diz, agora sem palavras, apenas os lábios que se apertaram ao falar do pai ainda em linhas finas, enquanto ela vai descascando as bananas da terra e cortando em pedaços. En trozos, penso, sem querer. Talvez porque ela, seu tanto destroçada.
Respiro fundo, me estendendo para pegar a panela de barro. Depois de lavar, coloco sobre o fogão. E vou deitando o azeite, as cebolas, os tomates, a pupunha, as bananas. E depois mais azeite, mais cebolas, mais tomates, mais pupunha, mais banana. Ela começa a picar cebola para o arroz, enquanto eu derramo mais azeite, mais cebola, mais tomate, mais pupunha, mais banana. E leite de coco. E sal. E também umas azeitonas pretas, que não estão na receita, mas sabem a remédio pra pressão baixa. E agora, bem agora, a energia querendo escapar na tristeza pesada que dividimos.
Acendo o fogo, baixo. Não tem nada que precise realmente cozinhar – tudo macio, tudo delicado. O calor é para tirar do tomate e da cebola o mel e, umedecendo, temperar. Então, espero ferver em fogo brando. Devagar e lento.
Enquanto coloco o arroz para cozinhar, ela pica o coentro e o cheiro de barro e moqueca se desprende pela casa. Ela espia, conta que aquele tanto de círculo montou mesmo foi uma mandala, e que soube que os monges budistas traçam cuidadosos essas formas na areia só para depois desfazê-las, também ritualmente. Sorrimos diante da ideia. Mas não por acharmos graça. Eu, pelo menos, acho é bonita essa consciência do perecível que valoriza o exercício sem necessidade de duração. Exercitar para sondar os mistérios, não para fixar as respostas.
Como convidar uma amiga para o almoço e dividir com ela cada tarefa, falando e ouvindo, sem descuidar do silêncio. Como esperar eternidades a fervura levantar, e só então jogar o coentro e fechar a panela. Abafando o borbulhar para dar novamente lugar à conversa. Esperando sem pressa a comida estar pronta, para desmanchar, colher a colher, o diagrama concêntrico. A nossa mandala, era ri, ao menos se desfaz em saciedade.

19 agosto, 2013

mundanidade

O Biscoito agora, quando volta de passear, não quer mais saber de correr pro quintalzinho.
Senta em frente o portão, e me olha como quem diz "é aqui que eu vou ficar".
Espio pela janela e lá está ele, sentadinho, quase solene, observando a rua.
As pessoas. Os carros. Os vizinhos. Os outros cachorros que também passeiam.
De vez em quando late, late, late, late.
E fica muito triste se por causa disso mando ele voltar pro quintal. Faz charme, mostra a barriga, se contorce todo, só pra poder brincar mais tempo.
O Biscoito gosta do mundo. Se interessa por ele: cheira, olha, fuça, cava.
O Biscoito gosta do mundo.
E eu gosto do Biscoito.

18 agosto, 2013

projeto para um próximo final de semana

Vai daí que estava fuçando no site do pessoal do Studio Ghibli Brasil (incrível descoberta do marido) e sei lá como, acabei encontrando um tutorial para fazer inarisushi de Totoro. Morri!

 
Aí,  marido perguntou se não rolava um tutorial ou uns moldes para fazer um Tororo de pano. E a mesma mocinha também ensina. Morri de novo!


E agora, vou esperar a semana passar voando, só para eu fazer um Totoro pra mim. E pro Rô. E pro Edu. E tem grandes chances de eu começar  distribuir Totoros por aí :-)

E esse site, gente, de onde a mocinha tirou os moldes do Totoro? Por que, meu deus, por que eu fui descobrir isso? Efeitos nefastos sobre  meu currículo lattes em três, dois... :-)

15 agosto, 2013

dos cansaços

um monte de prazos, reinício de aulas, filhote doente (já está melhorzinho!) sem ir pra escola por uma semana... o cérebro da pessoa derrete mais que manteiga no fogo.
vai daí que encontrei a seguinte frase no texto que estou escrevendo "França e Inglaterra mantém a manutenção do pleno-emprego...". ó só, que bonita formulação!
e no dia em que fui passear o cachorro, ele fez um cocô muito interessante, e eu disse para ele: "nossa, cocô... que Biscoito bonito!". e ao me dar conta, devo ter sido classificada como a nova louca do bairro, que anda gargalhando sozinha, em plena sete horas da manhã :-)

06 agosto, 2013

política abissal

"O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas" (Carlos Drummond de Andrade).
***
a memória de ter ouvido é vaga, mas o lembrado ficou impresso com força. até acho que eu era pequena, não mais que oito ou nove anos. talvez tenha sido uma reportagem de tv. que dizia que que no ano dois mil muitas pessoas estariam morando e vivendo no lixo. veja bem: não existiam catadores como hoje. naqueles tempos, o lixo não era reciclável – era só fedor e putrefação. era montanha adornada por pássaros imensos de rapina. urubus. eu era pequena, de família de classe média. pais separados e uma certa consciência de decaimento depois disso, o que talvez explique a forte impressão que a imagem me causou. porque ao ouvir aquela informação, eu soube: pode acontecer comigo. a qualquer tempo. independente de qualquer esforço meu para evita-lo. o que se tem é frágil e nenhum destino é improvável. eles e nós não existe. somos todos igualmente sujeitos às vicissitudes disso que a anete ivo definiu tão bem quanto viver por um fio.
***
o pensamento era ingênuo, é claro. eles e nós existe e as chances não são igualmente distribuídas. nem as de galgar degraus acima, nem as de resvalar abaixo. mas é provável que exageremos a distância. que a vida só seja suportável se afastarmos com a mão essa consciência brusca e avassaladora de que pode ser com a gente. o que quer que seja que nos assuste no destino dos pobres: a moradia precária. a fome. o trabalho que mais parece um ciscar às cegas, feito galinha em terreno lavado. o corpo fragilizado pelas necessidades, tantas, mesmo aquelas quase esquecidas diante das mais imediatas. como a de ser visto. como a de se sentir limpo e digno e autossuficiente. bastar-se a si e aos seus. não depender. pra seguir vivendo, os nossos pés virados pro lado oposto desse abismo. olhos no horizonte da terra firme.
***
aí eu leio a história de alguém que caiu nesse abismo. que assistiu, impotente, o pedaço de terra firme se inclinando de modo a lançar primeiro algumas, depois muitas, ainda depois cada vez mais gentes pelo despenhadeiro recém-descoberto. e a quem resta muito pouco. resta a palavra. e a gente gosta de pensar que a palavra é bote. palavra-paraquedas. depois de puxar o cordão de emergência, aliviando ploft a gravidade num ir-e-vir suave na direção do chão. duro e definitivo. linha de chegada para aquém do que... nada. a essa mulher resta a palavra. e os papéis do despejo. e a raiva incontida. e a sopa da cruz vermelha.
***
eu leio e choro. um choro manso. porém árido – as lágrimas rasgando caminho no seco dos olhos e a garganta num travo de banana verde. choro por ela. pelos seus filhos. pelos seus conterrâneos. pela quebra da ilusão da distância do abismo. pela dolorosa consciência, forjada na dor, de ser parte da estatística. de ver acontecer consigo. de ter que abrir mão das explicações que responsabilizam o outro por sua própria situação para reconhecer que aos bons também lhes ocorrem maus destinos. porque não somos tão indivíduos assim. porque calhamos de nascer agora e aqui.
***
eu leio e choro e volto para a rua do sindicato onde eu fazia entrevistas durante o mestrado. a rua por onde eu ia e vinha. por vezes, por onde eu ia e vinha sem sequer entrar no prédio. covarde do ato de abordar quem na beirada desse abismo. incapaz de ver e ouvir sem doer. incapaz de pedir que me dessem o que restava: a palavra. a narrativa bote. paraquedas. salva-vidas. aquela boia onde eu apoiaria meu pensamento, mas inútil para trazer para margem quem em pleno alto-mar. naquele começo de milênio, o frio cortante da manhã, os copos de plástico ainda rescendendo a café ou chocolate, e as pessoas na fila onde ilustram-se as estatísticas. aquelas eram de desemprego. de desalento. de desalojados das certezas que garantiam que a vida seguisse seu curso. dez, quinze, vinte por cento da população economicamente ativa que aprendeu que a crise não é passageira e que por ser duradoura rouba – pouco a pouco, de início, depois com violência – o que se leva uma vida a construir.
***
se a crise passa, a vida até reencontra um normal. demora, mas é preciso seguir em frente e a consciência do abismo atrapalha o fluxo. as mãos doem e sangram do esforço em não cair, ou do esforço em escalar a parede escarpada. mas os pés se esparramam no chão recém-redescoberto e trilham aos poucos o caminho que parece levar para longe daquele desvão. o arrepio nas costas agora somente um pequeno mal-estar. de vez em quando. ou pesadelo, do qual se acorda com o coração acelerado, entre o alívio e o terror.
***
e se a crise não passa? a consciência também se perde? não sei. alguns a tentam fixar, talvez os que mais perderam e os que mais foram tomados de surpresa pela facilidade com que foi possível perder tanto. a narrativa envolvendo cuidadosamente essa consciência frágil, cuidando de advertir e ensinar. a despejada que narra fala daí, desse espaço que só conhece quem perdeu o seu lugar. vira o espelho para mim, para você e diz: somos iguais. suas chances de cair eram as minhas. o mérito não conta tanto mais do que a sorte (e o azar, ela sussurra). a estatística que me engolfou te lambe os pés.
***
o espelho é incômodo e dá vontade de virar o rosto. nos últimos dez anos, caminhamos de costas para o abismo, cada vez mais gente se afastando dessa vertigem e seus perigos. mas talvez seja a consciência da beirada que nos permita ir mais longe do que já viemos. “comunidade de destino”, era o nome que a Ecléa Bosi dava. à duração dessa consciência da artificialidade que separa o nós do eles. à persistência da memória de que enquanto o abismo for largo e fundo, nenhuma distância é segura o suficiente. e que isso deveria pôr nós e eles num movimento comum.

02 junho, 2013

pink rabbits

 
depois de um tempo, a gente quase se acostuma a não pensar no assunto e então o perigo de ser surpreendido com algum pedaço do outro. ainda me assusto. sei que nem é mais amor. ou ao menos acho que sei. é mais a saudade do espaço que ela abriu por dentro de mim. saudade de quem eu era ali, naqueles olhos, com aquela mão dada à minha, os cabelos brancos dela que eu amava tanto quando o vento trazia pro rosto e a desculpa de coloca-lo por detrás da orelha, o rosto dela quente e terno. uma saudade que nada nem ninguém amansa. assim que hoje saí de manhã para passear o cachorro e também comprar pão e leite e frutas. e choveu uma chuva que eu não esperava, que me apanhou desprotegido. eu ali no meio da rua, o cachorro tentando correr pra casa. o pão quente encharcando. as frutas melancólicas com as gotas escorrendo pelo saquinho cor-de-rosa. e eu me lembrei dela. sem motivo aparente. talvez porque quando a chuva desabou eu estivesse numa esquina – encruzilhada. talvez porque numa das últimas vezes que nos vimos, a avenida larga, o céu cinza também ele adiando a decisão, o passeio longo, e os passos tropeçando na fundura da tristeza de saber que ela não ficaria. se eu soubesse como, ela me disse. e naquela esquina onde a chuva me alcançou, tantos anos depois, eu ainda sem saber. o que dizer a ela. o que dizer pra mim. a gente acostuma, sim. ainda que desconfiando de tudo o que perdeu. ainda que não parecesse certo pedir que ela se dividisse, o marido, os filhos, toda aquela vida que ele, nenhuma pista. existiam apenas naquele espaço, bolha-de-sabão colorida que agora não mais. encharcados, eu e o cachorro. abro a porta, ponho as compras sobre a mesa da cozinha, pego uma toalha pra secar o cachorro, entro eu mesmo no banho quente, a água aliviando o frio e o desconsolo. pouco, no entanto. saio do banho, me seco, coloco roupas quentes e, já na cozinha, água pra ferver. já tinha casado uma vez, mas só depois dela a consciência da absoluta solidão. na urgência de tê-la sempre perto. na falta de ar de sabê-la longe. na saudade dos abraços lentos e infinitos. no trabalho que dá não pensar nela. tiro dos saquinhos molhados as maçãs, as peras, os maracujás. pra distrair as mãos, pego duas maçãs e duas peras e lavo e corto ao meio e tiro a semente e pico em cubos e levo ao fogo, pra amolecer. a água agora chá-de-cidreira. me vejo no vidro do armário da cozinha, o moletom cinza, o rosto abatido e me sei convalescente. quase dez anos, e ainda convalescente, ainda sujeito a recidivas. ou reincidente no crime, vai saber. vai saber se não sou eu quem cutuca a casquinha, só pra me sentir assim vivo e latejante. pra recuperá-la um pouquinho na lembrança do que fomos. coloco numa vasilha pouco mais de meia xícara de manteiga, um pouco de canela, uma xícara de farinha de trigo, uma xícara de açúcar. demerara, que é o que tem e é o que mais combina com esse crumble. misturo, delicado, os ingredientes até o ponto em que esfarelam. como se fossem memória. como se assim a falta dela me deixasse menos nu na chuva agora virada garoa. sem ela: o inescapável da consciência me lançando em pleno alto-mar. pego outra vasilha, lambuzo os dedos como ela costumava fazer, unto tudo antes de colocar as frutas escorridas, mais o maracujá recém-aberto. pra quebrar o doce. pra ser honesto com os sentidos, pois que não há nada tão apenas-doce. jogo a farofa por cima de tudo e coloco as coisas no forno. sento ali em frente, esperando roubar algum calor. o chá entre as mãos. o nome dela entre os lábios. se o pronunciasse, ela ouviria? saberia dizer de onde aquela voz, se do passado, se de agora? se do futuro que prometi um dia – a gente num barco que nunca aporta, à deriva um do outro, um no outro? na boca, a semente de maracujá atropelando a brandura da maçã e da pera.

27 maio, 2013

pra chover mansinho

Do cd novo do The National. Linda, linda... perfeita pra contrastar com o chumbo do céu ou para fazer par com a garoa mansa. Dá até saudade do que não foi. De andar de mãos dadas pela cidade. De conversar demorado, esquecidos que o tempo existe. De dividir um guarda-chuva rosa-púrpura. De cruzar uma pinguela, uma ponte, um viaduto: qualquer hífen pra articular você-eu. Pra gente abrir os braços e flutuar, infantil, no oceano salgado.


17 maio, 2013

voragem

é a imagem dela dentro de mim - essa memória frágil e amarelada - que me dá força pra de vez em quando odiar. a imagem relampeja e logo se fixa no céu da lembrança, feito a primeira estrela na noite nebulosa. ela no chão. ela ajoelhada no chão de uma cozinha. ela e a bacia presa entre os joelhos. ela e as mãos, incansáveis, virando e revirando a massa. a massa de pão. o avental entre o colo e a bacia. e a massa virando e revirando. ela está envelhecendo, mas é uma heroína pros meus olhos infantis. ela e a amplidão de seu espaço. ela e a fazenda de rio gelado, porcos gordos, mato farto. a mulher que no fim da tarde me ensina a modelar a raiva: um quilo de farinha de trigo. três copos do leite gordo e forte que me salvou os olhos quando, ingênua, achei que a pimenta guardava dentro de si o seu ardido. uma colher de sopa de açúcar. dois tabletes de fermento biológico. meio copo de manteiga. sal a gosto. a receita pra aplainar o que farpeja por dentro. os cabelos loiros dela presos enquanto as mãos, ágeis, virando e revirando a massa. ela vê meu olho espantado de criança frente àquele estranho rito e me confidencia: é pra usar bem a fúria. e pára de virar e revirar para socar, bater, lançar plafts a massa no solo duro da bacia. a imagem dela ecoando mais luminosa no prateado do alumínio. a bacia inteira amassada. marcada pelo sem-número de vezes que numa vida, numa vida de mulher, numa vida de esposa, numa vida de mãe, fermenta-se o pão na ebulição do sentimento. ela é tão bonita, assim sem contornos claros na minha memória. sinto falta dela. então recupero, palavra por palavra, essa imagem. especialmente quando eu também viva, uma vida de mulher, uma vida de esposa, uma vida de mãe. fermentando o pão na quentura do sentimento. depois colocando pra descansar a massa. e polvilhando de farinha a ira agora ovalada. cortando xis antes de levar ao forno. depositando a raiva crua no forno pré-aquecido e esperando crescer, crescer. e cozer. e dourar. e por fim recolher ainda quente o milagre. ela de volta, quase viva novamente. e então eu agradeço a ela, por ela. por saber o que fazer do meu rancor. no pão ainda quente, a vida finalmente amansa. o búfalo alimentado se deita amplo e fecha os olhos.

27 abril, 2013

em boa companhia

Trilha sonora para uma noite de trabalho. E para um mês de espera até sair o novo álbum - a ter em consideração as músicas que eles já circularam, vai rapidamente virar vício!


22 abril, 2013

21 abril, 2013

da água para o vinho

(porque trabalhar no domingo vira e mexe incorre em desvio).

(porque não dá para ouvir essa música sem pensar em "depois de agosto", do Caio Fernando Abreu, conto tão cheio de mel e esperança, tão necessários nessa esquina onde o domingo encontra a segunda-feira).

(porque sim). 

embalos de domingo à tarde

Trilha sonora para um domingo de trabalho.


19 abril, 2013

receitas vegetarianas - destempero

mas olha só que perdi a receita inteira nesse fogo alto demais e agora vou ter que começar tudo de novo que disso não se salva nada: tudo com cheiro e gosto de fumaça e ai que tem dia que é assim mesmo que parece que as mãos excretam o limão que trazemos por dentro e azedam tudo e talham tudo que tocam e é que me dá tanta pena o trigo o óleo os ovos as maçãs e todo esse desperdício que chega a me doer e ainda mais porque tudo o que eu queria hoje era um pequenino natal do cheiro da canela espalhando pela casa varrendo as melancolias recentes e agudas e as nozes penetrando doces nas frestinhas das dores antigas feito bálsamo mas agora as pequenas epifanias ressecadas logo hoje que eu acordei precisando tanto-tanto desse milagre de recomeço e me pus a cozinhar ainda de camisola azul de renda acordando os músculos no esforço de mexer essa massa desse bolo que eu adoro e que é tão ruim de mexer mas eu não sabia fazer outra coisa pra espantar os fantasmas dos sonhos e suas sombras no meu dia ainda porvir e assim fui passando na peneira as três xícaras de farinha de trigo ao mesmo tempo em que o café passava pelo filtro de pano que eu trouxe de outras vidas e passei na peneira também a colher de bicarbonato e a colher de sal e a colher de canela em pó já tão fininhas e leves mas também escondendo seus minúsculos nódulos e enquanto o pão esquentava na torradeira eu ia quebrando os ovos numa outra tigela torcendo pra que nenhum deles estivesse estragado que me aflige tanto esse mistério do ovo às vezes galado me enche de tristeza o galo que não foi que mal chegou a ser pintinho mas hoje que eu me esqueci de quebrar num potinho os ovos antes de coloca-lo na tigela definitiva nenhum ovo fecundado só aquela festa de amarelo forte os pequenos sóis ajudando a acordar o dia e então o açúcar que eu também fui peneirando aos poucos já me sentindo mais protegida pela mistura de ovos e açúcar que ia ficando clarinha clarinha e era como se fosse se diluindo o que em mim acordou doendo e me amansassem os medos e os sustos conforme o café quente e doce amornava a boca e o hálito ainda faltava a xícara de óleo que se incorporou fácil à mistura e enquanto tudo isso descansasse fui cortar as últimas três maçãs que tinha em casa tirando a casca e as sementes e fatiando cubos e deixando ainda um pouco de ímpeto para triturar as nozes apenas com as mãos para me livrar do que em mim é violência e com tudo pronto e o café tomado finalmente fui misturando a parte úmida à parte seca bem devagar que essa massa é consistente e pensar bem por que é que fui me meter a fazer isso logo de manhã logo precisada de levezas se a massa é pesada e meus braços reclamaram e nem vai fermento para fazer as pequenas bolhas de ar só bicarbonato pruma massa que mal cresce e só quando a massa finalmente misturada e quando as maçãs finalmente incorporadas e quando as nozes finalmente incluídas caindo na forma untada e enfarinhada é que fui tomar um banho e lavar os cabelos e me arrumar praquela festa que tinha acabado de inventar mesmo que fosse apenas para distrair o chumbo instalado entre o peito e o estômago e já ia me sentindo salva o alívio de ter transformado a dor em bolo e o dia esquisito em celebração quando o cheiro da canela errou em cinza e sem que eu saiba ainda localizar o momento-quando a alegria desviou em acidente agora estou aqui nessa beirada do choro tão-tão espantada que minha chance de recusar a melancolia tenha se transformado em carvão e destampado esse fluxo aberto as comportas de tanta coisa que só precariamente a gente contém e eu sei bem que é porque esse acidente sem vítima o que fez foi reabrir ferida na minha esperança.

23 março, 2013

sábado à noite

o laço frouxo do tempo sem pressa me deu chance de achar o encontro dos meus sonhos: Bon Iver e The National juntos. porque boniteza pouca é bobagem :-)


08 março, 2013

criança de novo

Vai daí que a Tata escreveu um ótimo texto no Mamíferas sobre a leveza necessária para encararmos a vida e eu me lembrei da coleção Taba. Eis que por conta disso descobri que tem váários deles no youtube #fortesemoções.

E tava lá, uma das minhas histórias prediletas de quando eu era pequena: uma história de resistência, de insubordinação e de proposição de outros modos de viver. Então, nesse Dia Internacional da Mulher, vamos de Marinheiro Marinho - porque há várias formas de ser mulher, e ninguém é menos marinheiro por usar pintassilgo na cabeça :-)


05 março, 2013

pequeniníssima coleção de poesia feminista

(post descaradamente roubado de mim mesma, que ontem fui me meter a falar sobre gênero e cotidiano; a primeira parte foi sobre construções de gênero na publicidade dirigida ás crianças e essa segunda é que foi dedicada a essas experiências literárias de gênero).

***
Se a gente pensa as experiências de gênero como experiências que constroem lugares de enunciação, que ensinam a ser homens e a ser mulheres, e que ensinam práticas, delimitam papéis, circunscrevem o que falar, do que falar e como falar, vale a pena tomar a produção poética – um tipo de experiência literária que, em si mesma, já comporta alta dose de transfiguração e, desse modo, de transbordamento dos limites da palavra – de mulheres que se “atreveram” não só a escrever, mas a escrever poesia e, por meio de estratégias literárias, a deslocar os “lugares” possíveis para as mulheres.

Estou aqui, seguindo a definição dada por Lúcia Helena Vianna, chamando de poética feminista
[...] toda discursividade produzida pelo sujeito feminino que, assumidamente ou não, contribua para o desenvolvimento e a manifestação da consciência feminista , consciência esta que é sem dúvida de natureza política [...], já que consigna para  as mulheres a possibilidade de construir um conhecimento sobre si mesmas e sobre os outros, conhecimento de sua subjetividade,  voltada esta para o compromisso estabelecido com a linguagem em relação ao papel afirmativo do gênero  feminino  em suas intervenções no mundo público” (Vianna, 2003).

Vou trazer aqui poemas de quatro poetas. Comparecem: Alice Ruiz, Ledusha, Benédicte Houart e Adélia Prado. Quatro mulheres, quatro poetas que são brasileiras ou escrevem em português, com histórias muito diferentes, mas de quem podemos identificar algumas poesias feministas, isto é, alguns poemas em que perscrutaram literariamente a possibilidade de transbordar os limites de ser mulher.

Começo com dois poemas de Alice Ruiz, ambos de Navalhanaliga, livro de estréia em 1980. Ao final, ainda vou falar de um outro poema dela.

Alma de papoula
Lágrimas para cebolas
Dez dedos de fada
Caralho
De novo cheirando a alho


às vezes vem a certeza
a vida agora já foi vivida
era uma vez uma menina
descobrindo a rotina

De Ledusha, contemporânea de Alice Ruiz, também dois, bem curtos (e precisos e modernos):

De leve
feminista sábado domingo segunda terça quarta quinta e na sexta
lobiswoman.


Deslavada
Meu querido Antonio
Não pude ir
Pneu furou
Não sei trocar.


De Benédicte Houart, poeta nascida na Bélgica e moradora de Portugal, escreve em português.

são as mulheres que
fazem chorar as cebolas
como se descascassem a própria vida
e, arredondando-se então, descobrissem
um corpo, o seu
uma vida, a sua
e, no entanto, nada que de verdade
pudessem seu chamar
ou talvez sim, mas só
aquela gota de água salpicando
um canto do avental onde
desponta uma flor de pano colorida que
ainda ontem ali não ardia

e

já penélope não sou
nem ulisses regressa
mudo de nome noite
a noite ao sabor da saliva
dos meus amantes
de dia troco lençóis
coso bainhas
descanso os olhos
dantes tecia para
enganar a corte que
me servia de prisão
agora chamo-me eu
não tenho estado civil e
na cela que me tem cativa
tornei-me finalmente livre

Finalmente, e para ilustrar melhor o ponto de transgressão ou ultrapassamento dos limites de gênero que essas mulheres constroem por meio da linguagem, queria trazer dois últimos poemas, um de Alice Ruiz e outro de Adélia Prado, ambos referidos a um poeta famoso, Carlos Drummond de Andrade. Primeiro, Drumundana, de Alice Ruiz, que dialoga com o poema “E agora, José?”.

e agora maria?

o amor acabou
a filha casou
o filho mudou
teu homem foi pra vida
que tudo cria
a fantasia
que você sonhou
apagou
à luz do dia

e agora maria?
vai com as outras
vai viver
com a hipocondria

E, finalmente, “Com licença poética”, da Adélia Prado, que dialoga com “Poema de sete faces”, do mesmo Drummond.

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo.  Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Para concluir, então, esse tema das relações entre gênero e cotidiano, encerro relembrando que se há limites de gênero, há também os esforços em ampliá-los, em fazê-los mais largos e conformes o desejo de liberdade de cada um. Ainda que na maior parte do tempo estejamos sujeitos a uma série de discursos e de práticas que procuram construir as canaletas por onde nossos riozinhos devem correr, há momentos em que a gente se dá conta do absurdo das coisas, e seja por meio de bandeiras, de inversões, de lutas ou das palavras, desperta algo de caudaloso que não corre mais por canaleta alguma; ao contrário, transborda, inunda, umedece e abre espaço para o novo: é quando somos sujeitos no sentido de uma ação sobre nós mesmos e sobre o mundo. Então, que sejamos todos desdobráveis e avessos às maldições e que aos imperativos de “sê homem”, “sê mulher” com os quais nos deparamos desde o nascimento, a gente responda com flexibilidade, liberdade e inventividade.



Referências Bibliográficas
Murgel, Ana Carolina Arruda de Toledo. A poética feminista em Alice Ruiz, Ledusha e Ana Cristina César. In: Rago, Margareth (org.). Revista Aulas, Dossiê Estéticas da Existência, 2010, p.25-39. Disponível aqui.

Vianna, Lúcia Helena. Poética feminista, poética da memória. Labrys, estudos feministas, nº 4, agosto/setembro de 2003. Disponível aqui.