05 março, 2013

pequeniníssima coleção de poesia feminista

(post descaradamente roubado de mim mesma, que ontem fui me meter a falar sobre gênero e cotidiano; a primeira parte foi sobre construções de gênero na publicidade dirigida ás crianças e essa segunda é que foi dedicada a essas experiências literárias de gênero).

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Se a gente pensa as experiências de gênero como experiências que constroem lugares de enunciação, que ensinam a ser homens e a ser mulheres, e que ensinam práticas, delimitam papéis, circunscrevem o que falar, do que falar e como falar, vale a pena tomar a produção poética – um tipo de experiência literária que, em si mesma, já comporta alta dose de transfiguração e, desse modo, de transbordamento dos limites da palavra – de mulheres que se “atreveram” não só a escrever, mas a escrever poesia e, por meio de estratégias literárias, a deslocar os “lugares” possíveis para as mulheres.

Estou aqui, seguindo a definição dada por Lúcia Helena Vianna, chamando de poética feminista
[...] toda discursividade produzida pelo sujeito feminino que, assumidamente ou não, contribua para o desenvolvimento e a manifestação da consciência feminista , consciência esta que é sem dúvida de natureza política [...], já que consigna para  as mulheres a possibilidade de construir um conhecimento sobre si mesmas e sobre os outros, conhecimento de sua subjetividade,  voltada esta para o compromisso estabelecido com a linguagem em relação ao papel afirmativo do gênero  feminino  em suas intervenções no mundo público” (Vianna, 2003).

Vou trazer aqui poemas de quatro poetas. Comparecem: Alice Ruiz, Ledusha, Benédicte Houart e Adélia Prado. Quatro mulheres, quatro poetas que são brasileiras ou escrevem em português, com histórias muito diferentes, mas de quem podemos identificar algumas poesias feministas, isto é, alguns poemas em que perscrutaram literariamente a possibilidade de transbordar os limites de ser mulher.

Começo com dois poemas de Alice Ruiz, ambos de Navalhanaliga, livro de estréia em 1980. Ao final, ainda vou falar de um outro poema dela.

Alma de papoula
Lágrimas para cebolas
Dez dedos de fada
Caralho
De novo cheirando a alho


às vezes vem a certeza
a vida agora já foi vivida
era uma vez uma menina
descobrindo a rotina

De Ledusha, contemporânea de Alice Ruiz, também dois, bem curtos (e precisos e modernos):

De leve
feminista sábado domingo segunda terça quarta quinta e na sexta
lobiswoman.


Deslavada
Meu querido Antonio
Não pude ir
Pneu furou
Não sei trocar.


De Benédicte Houart, poeta nascida na Bélgica e moradora de Portugal, escreve em português.

são as mulheres que
fazem chorar as cebolas
como se descascassem a própria vida
e, arredondando-se então, descobrissem
um corpo, o seu
uma vida, a sua
e, no entanto, nada que de verdade
pudessem seu chamar
ou talvez sim, mas só
aquela gota de água salpicando
um canto do avental onde
desponta uma flor de pano colorida que
ainda ontem ali não ardia

e

já penélope não sou
nem ulisses regressa
mudo de nome noite
a noite ao sabor da saliva
dos meus amantes
de dia troco lençóis
coso bainhas
descanso os olhos
dantes tecia para
enganar a corte que
me servia de prisão
agora chamo-me eu
não tenho estado civil e
na cela que me tem cativa
tornei-me finalmente livre

Finalmente, e para ilustrar melhor o ponto de transgressão ou ultrapassamento dos limites de gênero que essas mulheres constroem por meio da linguagem, queria trazer dois últimos poemas, um de Alice Ruiz e outro de Adélia Prado, ambos referidos a um poeta famoso, Carlos Drummond de Andrade. Primeiro, Drumundana, de Alice Ruiz, que dialoga com o poema “E agora, José?”.

e agora maria?

o amor acabou
a filha casou
o filho mudou
teu homem foi pra vida
que tudo cria
a fantasia
que você sonhou
apagou
à luz do dia

e agora maria?
vai com as outras
vai viver
com a hipocondria

E, finalmente, “Com licença poética”, da Adélia Prado, que dialoga com “Poema de sete faces”, do mesmo Drummond.

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo.  Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Para concluir, então, esse tema das relações entre gênero e cotidiano, encerro relembrando que se há limites de gênero, há também os esforços em ampliá-los, em fazê-los mais largos e conformes o desejo de liberdade de cada um. Ainda que na maior parte do tempo estejamos sujeitos a uma série de discursos e de práticas que procuram construir as canaletas por onde nossos riozinhos devem correr, há momentos em que a gente se dá conta do absurdo das coisas, e seja por meio de bandeiras, de inversões, de lutas ou das palavras, desperta algo de caudaloso que não corre mais por canaleta alguma; ao contrário, transborda, inunda, umedece e abre espaço para o novo: é quando somos sujeitos no sentido de uma ação sobre nós mesmos e sobre o mundo. Então, que sejamos todos desdobráveis e avessos às maldições e que aos imperativos de “sê homem”, “sê mulher” com os quais nos deparamos desde o nascimento, a gente responda com flexibilidade, liberdade e inventividade.



Referências Bibliográficas
Murgel, Ana Carolina Arruda de Toledo. A poética feminista em Alice Ruiz, Ledusha e Ana Cristina César. In: Rago, Margareth (org.). Revista Aulas, Dossiê Estéticas da Existência, 2010, p.25-39. Disponível aqui.

Vianna, Lúcia Helena. Poética feminista, poética da memória. Labrys, estudos feministas, nº 4, agosto/setembro de 2003. Disponível aqui.
 

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