(post descaradamente roubado de mim mesma, que ontem fui me meter a falar sobre gênero e cotidiano; a primeira parte foi sobre construções de gênero na publicidade dirigida ás crianças e essa segunda é que foi dedicada a essas experiências literárias de gênero).
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Se a gente pensa as experiências de gênero como experiências
que constroem lugares de enunciação, que ensinam a ser homens e a ser mulheres,
e que ensinam práticas, delimitam papéis, circunscrevem o que falar, do que falar e
como falar, vale a pena tomar a produção poética – um tipo de experiência
literária que, em si mesma, já comporta alta dose de transfiguração e, desse
modo, de transbordamento dos limites da palavra – de mulheres que se “atreveram”
não só a escrever, mas a escrever poesia e, por meio de estratégias literárias,
a deslocar os “lugares” possíveis para as mulheres.
Estou aqui, seguindo a definição dada por Lúcia Helena
Vianna, chamando de poética feminista
[...] toda discursividade produzida pelo
sujeito feminino que, assumidamente ou não, contribua para o desenvolvimento e
a manifestação da consciência feminista , consciência esta que é sem dúvida de
natureza política [...], já que consigna para
as mulheres a possibilidade de construir um conhecimento sobre si mesmas
e sobre os outros, conhecimento de sua subjetividade, voltada esta para o compromisso estabelecido
com a linguagem em relação ao papel afirmativo do gênero feminino
em suas intervenções no mundo público” (Vianna, 2003).
Vou trazer aqui poemas de quatro poetas. Comparecem: Alice
Ruiz, Ledusha, Benédicte Houart e Adélia Prado. Quatro mulheres, quatro poetas
que são brasileiras ou escrevem em português, com histórias muito diferentes,
mas de quem podemos identificar algumas poesias feministas, isto é, alguns
poemas em que perscrutaram literariamente a possibilidade de transbordar os
limites de ser mulher.
Começo com dois poemas de Alice Ruiz, ambos de Navalhanaliga, livro de estréia em 1980. Ao final, ainda vou falar
de um outro poema dela.
Alma de papoula
Lágrimas para cebolas
Dez dedos de fada
Caralho
De novo cheirando a
alho
às vezes vem a certeza
a vida agora já foi
vivida
era uma vez uma menina
descobrindo a rotina
De Ledusha, contemporânea de Alice Ruiz, também dois, bem
curtos (e precisos e modernos):
De leve
feminista sábado
domingo segunda terça quarta quinta e na sexta
lobiswoman.
Deslavada
Meu querido Antonio
Não pude ir
Pneu furou
Não sei trocar.
De Benédicte Houart, poeta nascida na Bélgica e moradora de
Portugal, escreve em português.
são as mulheres que
fazem chorar as
cebolas
como se descascassem a
própria vida
e, arredondando-se
então, descobrissem
um corpo, o seu
uma vida, a sua
e, no entanto, nada
que de verdade
pudessem seu chamar
ou talvez sim, mas só
aquela gota de água
salpicando
um canto do avental
onde
desponta uma flor de
pano colorida que
ainda ontem ali não
ardia
e
já penélope não sou
nem ulisses regressa
mudo de nome noite
a noite ao sabor da
saliva
dos meus amantes
de dia troco lençóis
coso bainhas
descanso os olhos
dantes tecia para
enganar a corte que
me servia de prisão
agora chamo-me eu
não tenho estado civil
e
na cela que me tem
cativa
tornei-me finalmente
livre
Finalmente, e para ilustrar melhor o ponto de transgressão
ou ultrapassamento dos limites de gênero que essas mulheres constroem por meio
da linguagem, queria trazer dois últimos poemas, um de Alice Ruiz e outro de
Adélia Prado, ambos referidos a um poeta famoso, Carlos Drummond de Andrade. Primeiro, Drumundana, de Alice Ruiz, que dialoga com o poema
“E agora, José?”.
e agora maria?
o amor acabou
a filha casou
o filho mudou
teu homem foi pra vida
que tudo cria
a fantasia
que você sonhou
apagou
à luz do dia
e agora maria?
vai com as outras
vai viver
com a hipocondria
E, finalmente, “Com licença poética”, da Adélia Prado, que
dialoga com “Poema de sete faces”, do mesmo Drummond.
Quando nasci um anjo
esbelto,
desses que tocam
trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra
mulher,
esta espécie ainda
envergonhada.
Aceito os subterfúgios
que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não
possa casar,
acho o Rio de Janeiro
uma beleza e
ora sim, ora não,
creio em parto sem dor.
Mas o que sinto
escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens,
fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem
pedigree,
já a minha vontade de
alegria,
sua raiz vai ao meu
mil avô.
Vai ser coxo na vida é
maldição pra homem.
Mulher é desdobrável.
Eu sou.
Referências
Bibliográficas
Murgel, Ana
Carolina Arruda de Toledo. A poética feminista em Alice Ruiz, Ledusha e Ana
Cristina César. In: Rago, Margareth (org.). Revista Aulas, Dossiê Estéticas da Existência, 2010, p.25-39. Disponível aqui.
Vianna, Lúcia
Helena. Poética feminista, poética da memória. Labrys, estudos feministas, nº 4, agosto/setembro de 2003.
Disponível aqui.
Adorei! Ainda mais usando a Carô de referência, sou fã dela.
ResponderExcluir❤
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirpoesia feminina de verdade! ❤
ResponderExcluirhttp://sussurros-calados.blogspot.com.br/
Que texto maravilhoso!
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