Nem achou que estava distraída até que a dor fininha a acordou. Largou a faca sobre a tábua, ali mesmo por cima dos tomates, e trouxe o dedo para perto dos olhos. O corte tão fino e fundo que o sangue demorou a vir à tona, chegando manso: córrego desaguando lentamente. Enrolou um papel toalha, apertado firme, e retomou o trabalho.
Cortava os tomates grosseiramente e ia colocando no liquidificador.
Todos os doze tomates – a explosão de vermelho respingando no papel toalha,
manchando a tábua e o avental.
A família inteira reunida na sala. Os filhos, a nora e o novo
genro. Os netos – o menorzinho ainda de colo, enquanto o mais velho já
adolescente, o cabelo comprido e meio ensebado, o desajeito de pernas e braços
que se acomodavam mal na poltrona da sala. E o marido, lembrou com um
imperceptível esgar.
Dos trinta anos de casados, há vinte e cinco ela sabia. “Não
suporto a companhia do meu marido”, ouviu-se dizer. Primeiro para si mesma, bem
baixinho, nos primeiros anos de casamento, num dia em que ele – como sempre –
não quis saber de ir com ela ao almoço na Paróquia. Então para a amiga querida,
alguns anos depois, explicando porque estava indo para a praia só ela e os
filhos. De lá pra cá, pra quem quisesse ouvir, que já estava mais velha e não
tinha pudor: não suportava, nunca suportara a companhia do marido. E em vez de
doer, a constatação agora lhe acalmava, pois passados tantos anos, já não
provocava dentro dela nenhum ímpeto de ir embora, nenhuma pena de sua sina.
Nada. Era como abrir a janela e anunciar o tempo.
Pegou os pepinos, cuidando de tirar a casca, que a filha
passava mal, tinha pesadelo depois. Desde pequena era assim. Jogou os dois no
liquidificador, fazendo o vermelho eclodir ainda uma vez.
Na sala, conversas e risadas entremeavam o programa de TV.
Era um domingo bonito, o céu azul sem nuvens e sem vento.
Tirou a casca para descobrir o roxo da cebola. Foi quando
viu o vermelho transbordando a brancura do papel toalha. Droga!
Pensava nele quando o corte a interrompeu. No bom que era a
sua presença. No bom que era o cheiro dele, logo de manhã, quando se
encontravam ao chegar no trabalho. Na textura da voz dele quando disse que a
queria e no oco do silêncio dele quando ela disse não. A vida era mesmo engraçada,
latejou.
Achou no armário do banheiro uma gaze e tornou a enrolar o
dedo, ainda mais firme, os esparadrapos ajudando a contenção.
Suspirou. Pegou os pimentões coloridos, o verde, o amarelo,
o vermelho. Achava graça na leveza deles, tão amplos e plenos de vazios. Não
gostava muito. Mas cortava, metade de cada um, e lavava e tirava as sementes e
lavava de novo e cortava fatias grossas antes de jogá-las também no
liquidificador. Tudo se misturando no mar de vermelho.
Pensar nele já não era atirar uma pedra pesada na água. Ele
ficara lá, em outro lugar, no passado, num futuro que não foi. Ela disse não,
ponto final. E ele então mudou de emprego, de cidade, talvez até de país. Sumiu
no mundo, a não ser por aquela cicatrizinha dentro dela, que ela via sempre
quando um espelho refletia sua imagem – ele era aquela espécie de infelicidade gravada
no fundo do seu olho. Não se arrependia, era o que dizia a si mesma. Fizera o
que era certo e o que era certo era ficar ao lado do marido, ter e cuidar dos
filhos, vê-los crescer.
E picar o alho, com o dedo estendido a se esquivar do
contato, porque alho cutuca a ferida, dá a medida da fundura do corte. Lembrava
da mãe dizendo que alho era antibiótico, recomendando chás nos resfriados e abaixando
a voz para receitar o remédio certeiro para as coceiras lá embaixo durante e depois da gravidez. Alho curativo, não sem
antes levar a dor até o fim. Era domingo, um dia santo, as coisas no lugar: não
precisava ampliar nenhuma dor.
Colocou o alho no liquidificador, junto com o copo raso de
azeite e dois copos de água. Também um pouco de sal, que se misturou à umidade
e fez o corte arder. Droga!
Bateu tudo, fazendo um barulho que fez um dos netos vir à
cozinha e anunciar que fecharia a porta por uns minutos. Suspirou. Viu o que
era vermelho vivo empalidecer em rosa. Depois peneirou o gaspacho, cantarolando
uma canção antiga, de peneiras e namoros e saias voando ao vento. O que era massa
grossa virando creme suave, sem coágulos.
Picou o pão amanhecido, jogou na frigideira, deitando por
cima um pouco de azeite e sal. Ainda lavou a salsinha, picou bem fininho, pra
enfeitar e dar sabor na hora de servir.
Tirava o curativo para cuidar da louça, enquanto a filha
abriu a porta e reclamou dos pimentões em cima da pia “mas mãe, você colocou
todos esses pimentões no gaspacho? Assim não vou poder nem experimentar!”.
Estava distraída mesmo, para lembrar de tirar a casca do pepino e esquecer tanto
de tirar a dos pimentões quanto de diminuir a quantidade prescrita na receita.
Desculpou-se, em palavras e ombros.
A ela também os pimentões não faziam bem, a digestão
atrapalhada, lenta, feito nó na garganta, borboletas no estômago. Foi o que lembrou, já à hora da mesa,
quando sorvia a segunda colherada.
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