28 agosto, 2013

em fogo brando


Quarta-feira, que é o dia possível, sem filhos para pegar na escola, sem pai para levar ao médico. Eu e ela, em pontas diversas da vida. Mas a gente se encontra, nessa mesa aqui de casa – a toalha de chita, os pratos brancos, a saudade grande de papear sem pressa.
Ela chega, eu abro a porta, a gente para, a olhar o verde crescendo. O louro, que ela conheceu quando ainda era muda. O alecrim, que temperou tantas sopas de abóbora. O manjericão, que perfumava saladas e molhos. O hortelã, coitado, um pouco sofrido e precisando se recuperar do inverno seco. Tudo isso olhamos juntas, a conversa animada nessa atenção aos ciclos. Aproveito para colher um pouco de coentro e ela já adivinha: vamos ter moqueca.
Entramos, a bolsa dela no sofá, as chaves no móvel, e já nos encaminhamos para a cozinha. Faço e ofereço café, que o convite é para o almoço, mas tudo ainda está por fazer. É bom aquele quente e aquele amargo. Sempre achei que café fosse uma espécie de preâmbulo. Ou de pretexto, ela comenta, rindo ao me lembrar que foi esse o convite que fiz ao meu marido, da primeira vez que saímos, e que naquele dia o café virou lanche e sobremesa e petisco antes do jantar e retornou sobre si mesmo no desjejum do dia seguinte. Também rio dessa história antiga, que ela ouviu em primeira mão, mal eu tinha chegado em casa, o cansaço e a alegria no corpo.
Se não é preâmbulo, perco a desculpa e começo a ajeitar as coisas. Pego as cebolas e vou cortando, bem fininhas, enquanto ela ao lado vai desprendendo as camadas em anéis. Os tomates, vermelhos e maduros, também corto em rodelas.
Conto dos filhos, crescendo imensos e tão outros que perco o fôlego e não os reconheço no que dizem, no que fazem, no que falam. Falo do marido, os cabelos cada vez mais brancos, e a ternura funda de ver cumprir as promessas de envelhecer juntos. Ela fala do pai, do acostumar-se com o susto de reconhece-lo tão velho. Senil, é a palavra, a que as manchas e rugas nas mãos e o lapsos de memória dão corpo. Um corpo envelhecido, e tão frágil, ela vê.
Abro o vidro de pupunha. Mais círculos na nossa comida, penso. Mas não falo, pois continuo a escutar o que ela me diz, agora sem palavras, apenas os lábios que se apertaram ao falar do pai ainda em linhas finas, enquanto ela vai descascando as bananas da terra e cortando em pedaços. En trozos, penso, sem querer. Talvez porque ela, seu tanto destroçada.
Respiro fundo, me estendendo para pegar a panela de barro. Depois de lavar, coloco sobre o fogão. E vou deitando o azeite, as cebolas, os tomates, a pupunha, as bananas. E depois mais azeite, mais cebolas, mais tomates, mais pupunha, mais banana. Ela começa a picar cebola para o arroz, enquanto eu derramo mais azeite, mais cebola, mais tomate, mais pupunha, mais banana. E leite de coco. E sal. E também umas azeitonas pretas, que não estão na receita, mas sabem a remédio pra pressão baixa. E agora, bem agora, a energia querendo escapar na tristeza pesada que dividimos.
Acendo o fogo, baixo. Não tem nada que precise realmente cozinhar – tudo macio, tudo delicado. O calor é para tirar do tomate e da cebola o mel e, umedecendo, temperar. Então, espero ferver em fogo brando. Devagar e lento.
Enquanto coloco o arroz para cozinhar, ela pica o coentro e o cheiro de barro e moqueca se desprende pela casa. Ela espia, conta que aquele tanto de círculo montou mesmo foi uma mandala, e que soube que os monges budistas traçam cuidadosos essas formas na areia só para depois desfazê-las, também ritualmente. Sorrimos diante da ideia. Mas não por acharmos graça. Eu, pelo menos, acho é bonita essa consciência do perecível que valoriza o exercício sem necessidade de duração. Exercitar para sondar os mistérios, não para fixar as respostas.
Como convidar uma amiga para o almoço e dividir com ela cada tarefa, falando e ouvindo, sem descuidar do silêncio. Como esperar eternidades a fervura levantar, e só então jogar o coentro e fechar a panela. Abafando o borbulhar para dar novamente lugar à conversa. Esperando sem pressa a comida estar pronta, para desmanchar, colher a colher, o diagrama concêntrico. A nossa mandala, era ri, ao menos se desfaz em saciedade.

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